O jornal americano Florida Sun Post revelou em seu site no dia 30 de setembro que um casal recém-casado há três meses, em Golden Beach (Miami, Flórida), descobriu suas origens familiares, vindo a saber tratarem-se de avô e neta. Ela (24 anos), de Jacksonville (também da Flórida), reconheceu o pai, que não via há bastante tempo, em um álbum de família do marido (68 anos), quando este, desde que divorciado da primeira mulher, perdera o contato com os filhos.
Os impedimentos civis ao casamento são os fixados por lei e, dentre eles, não podem casar ascendentes com os descendentes, por parentesco natural ou civil (a exemplo do artigo 1.521 do Código Civil brasileiro). Certo, então, que esse “casamento avoengo” desafia a própria natureza das coisas, que deve ser provida por fundamentos racionais, ou seja, uma ordem natural condicionante à necessária distinção lógica do dever-ser. Para além disso, apresenta caráter incestuoso, proibido por lei, afrontando a instituição familiar.
O casal americano, que se conheceu em um site de namoro e foi aproximado por uma agência matrimonial, depois de percebido por seus laços consanguíneos, desafia agora a sociedade local, quando não pretende a anulação do casamento, ou mesmo o divórcio, determinado a viver juntos. Ele, milionário; ela(es) apaixonada(os).
As invalidades do casamento por infringência de impedimento (artigo 1.548, II, Código Civil) são suscetíveis, na lei brasileira, de decreto judicial, mediante ação direta, por parte de qualquer interessado ou pelo Ministério Público. Na lei do estado da Flórida também.
O problema situa-se, todavia, na manutenção das relações incestuosas, por vontade deliberada de ambos. No ponto, a maioria das legislações não pune ou criminaliza o incesto entre pessoas maiores; embora proíba casamentos na espécie, ou mesmo aqueles entre tios e sobrinhos ou entre primos, como proibidos em alguns estados norte-americanos. Em nosso país, o incesto nunca foi configurado como ilícito penal, tendo, inclusive, como anota a história, o sacerdote e regente Diogo Antonio Feijó vivido maritalmente com sua irmã.
A questão subjacente diz respeito ao problema da procriação entre parentes mais próximos (“inbreeding”), ou seja, da endogamia, redutora da variabilidade genética e tendente a riscos eugênicos, inclusive com o surgimento de eventuais patologias mentais. Pois bem. No trato da questão jurídica dos impedimentos cumpre anotar, pontualmente, o seguinte:
I. Casamento avuncular
O “casamento avuncular” é o ocorrido entre tio e sobrinha ou sobrinho e tia, parentes colaterais em terceiro grau. Em nosso país tem sido ele admitido, a depender de autorização judicial vinculada a exame médico. O Enunciado 98 das Jornadas de Direito Civil, promovidas pelo Superior Tribunal de Justiça, preconizou que "o inciso IV do art. 1.521 do novo Código Civil deve ser interpretado à luz do DL 3200/41 no que se refere à possibilidade de casamento entre colaterais de terceiro grau”.
Mais precisamente, como tem afirmado a jurisprudência: "A possibilidade de casamento avuncular é descrita pelo art. 1° e regulamentada pelo art. 2°, do Decreto-Lei 3200/41, o qual exige atestado médico emitido por dois médicos afirmando não existir inconveniente sob o ponto de vista da sanidade e da saúde de qualquer deles e da prole. Cumprida a exigência, mitiga-se o impedimento (STJ – AREsp 417119)”.
II. Casamento em sogradio
A lei proíbe o casamento de parentes afins em linha reta (artigo 1.521, inciso I, CC). Extinto o vínculo conjugal ou convivencial por divórcio ou ruptura da união estável, os cônjuges ou companheiros colocam-se no pretérito, seguindo-se, então, a vida de um e de outro. Entretanto, segundo a lei, tal fato jurídico não faz cessar a relação parental (por afinidade) entre genro e sogra ou entre nora e sogro (artigo 1.595, § 2º, Código Civil). Assim se diz que, por isso mesmo, os sogros serão sempre legítimos, as afinidades não se extinguem e eles continuarão sendo sogros, vida afora.
Perceba-se: a tanto que a cada união, o homem haverá de acumular sogras, em perfeita harmonia intertemporal, e bem por isso, divorciado ou viúvo da primeira esposa, não poderá casar com a mãe daquela ou com qualquer outra que se lhe seguir como sogra. Assim, a doutrina assinala: “há um vínculo perpétuo que configura o impedimento matrimonial do artigo 1.521, II, do Código Civil”. (Flávio Tartuce, 2011).
III. Uniões parentais ascendentes
Também não poderão casar, conforme o artigo 1521, inciso III, do Código Civil, o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante, pelas mesmas razões do óbice da parentalidade ascendente, agora sob o viés do parentesco civil por afinidade em linha reta (não natural).
IV. Uniões fraternais
Não poderá casar o adotado com o filho do adotante (artigo 1.521, IV, CC), certo que entre eles se apura uma verdadeira irmandade socioafetiva. Esse tema tem desafiado uma outra latitude, no caso das denominadas “famílias mosaico”, formada por uniões recompostas, onde cada um dos parceiros traz consigo os filhos das uniões anteriores. Em ser assim, os filhos de cada um deles tornam-se, pela convivência com os novos pais, irmãos socioafetivos, não dispondo, todavia, a lei, impedimentos ao casamento entre eles. Situações dessa ordem estão a merecer maior doutrina e apuração da lei.
De fato. Quando diz o artigo 1.593 do Código Civil: “O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou de outra origem”, retenha-se, de logo, que a expressão “ou outra origem”, com conteúdo jurídico indeterminado, vem exigir do intérprete a definição do seu exato alcance.
V. Uniões concubinárias
O concubinato é definido no artigo 1.727 do Código Civil como uma união impedida (artigo 1.521, VI, CC), porque um dos parceiros (ou ambos) é casado com outrem; embora não excluídos efeitos jurídicos dessa entidade (por muitos havida como entidade familiar), notadamente diante de filhos dela advindos. Todavia, em face dos filhos de cada um deles, nas suas relações entre si, avoca-se a discussão de novos impedimentos sob o cotejo das famílias dúplices ou múltiplas.
É nesse quadro de uniões impedidas, geratrizes de invalidades matrimoniais e de situações outras da realidade fenomênica de famílias atípicas acaso constituídas, quando as uniões impedidas existem de fato e persistem, como no caso recente do casal norte-americano da Flórida, que o Direito é mais desafiado a se pronunciar.
Jones Figueirêdo Alves é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), onde coordena a Comissão de Magistratura de Família.
Fonte: Conjur