Artigo – Da via adequada para correção de erro material na indicação do regime legal de bens no assento de casamento

*Letícia Franco Maculan Assumpção
**Isabela Franco Maculan Assumpção
***Paulo Hermano Soares Ribeiro

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo sustenta a via administrativa como a mais adequada para correção do regime legal de bens adotado no casamento, na hipótese de erro cometido quando do advento da lei 6.515 de26/12/1977 (Lei do Divórcio).
O contexto jurídico deriva das incorreções constantes de inúmeros assentos de casamento realizados nos dias que se seguiram à alteração legislativa, que apontaram para o regime legal de bens como sendo a Comunhão Universal de Bens, quando, por força do art. 50 da Lei do Divórcio, que alterou a redação do art. 258 da Lei nº 3.071 de 1º/01/1916, o regime legal passou a ser o da Comunhão Parcial de Bens, a partir da publicação da Lei 6.515/1977.

Asseveramos que a desordem que ficou – erro material evidente – deve ser corrigida mediante o procedimento previsto no art. 110 da Lei de 6.015 de 31/12/1973 (Lei de Registros Públicos – LRP).

2 DO REGIME LEGAL OU SUPLETIVO DE BENS NO CASAMENTO

O casamento é negócio jurídico de direito de família com múltiplas, abrangentes e invasivas repercussões na vida dos indivíduos que ingressam no matrimônio. Além da comunhão plena de vida, a relação matrimonial alcança irrecusáveis efeitos nas esferas patrimonial e econômica privadas de cada cônjuge, benfazejos nos tempos de harmonia, mas severos nos de desarmonia, quando o casamento encontra seu ocasiona dissolução ou no óbito.

Em razão de sua inevitabilidade, os nubentes são estimulados a firmar previamente um estatuto patrimonial, seja para aderir a um dos regimes típicos oferecidos pela norma, seja para modular um regime específico ou, em casos especiais, se curvar compulsoriamente ao regime da separação total .

Se, podendo fazê-lo, não pactuam o regime de bens, silenciando a respeito, o próprio ordenamento presume um regime adequado – ou socialmente admitido como mais vantajoso – com base no paradigma dominante no momento histórico do casamento. O mesmo ocorre nas hipóteses de defeito no pacto que conduzam à sua invalidade.
O regime supletivo, largamente utilizado no ordenamento brasileiro, desde o período pré-codificado até final do século passado , era o da Comunhão Universal de Bens. Em sua redação original, o artigo 258 da Lei n. 3.071, de 1º/01/1916 (Código Civil de 1916), determinava que, na ausência de convenção antenupcial escrita, ou em caso de declaração de nulidade, vigoraria, “quanto aos bens, entre os cônjuges, o regime da comunhão universal”.

3 DA ALTERAÇÃO DO REGIME LEGAL OU SUPLETIVO PELA LEI 6.515/1977 (Lei do Divórcio)

A Lei nº 6.515, promulgada em 26/12/1977 e publicada em 27/12/1977, alterou o regime legal de bens do casamento, passando da secular presunção de Comunhão Universal de Bens para a de Comunhão Parcial de Bens. O legislador abdicou do prazo de vacatio legis, ou seja, a norma principiou a vigorar sem previsão de lapso temporal para que se desse efetivo conhecimento dela aos afetados ou se permitisse prévia conscientização da população sobre todos os seus aspectos. Do lado do Poder Público, não houve tempo para que as instituições responsáveis por responder às implicações da norma pudessem se preparar para sua aplicação.
Desse modo, a súbita entrada da lei em vigor na data de sua publicação, fez com que elementos impactantes da nova legislação, principalmente a alteração do regime supletivo(comando lateral da norma),gerasse perturbações que ainda hoje, passados mais de trinta anos, ainda carecem de correção.

Merece crítica a falta de cautela do legislador pois uma mudança dessa magnitude jamais deveria ter entrado em vigor na data da publicação. Deveria ter sido proporcionada uma vacatio legis de pelo menos 1 (um) ano, porque, quando da publicação, época não muito distante, sabia-se das notícias pelos jornais e das alterações legislativas pelo Diário Oficial, no obsoleto e deficiente formato de papel. Embora ninguém possa se escusar de cumprir a lei, alegando que não a conhece , o acesso à informação não era tão fácil como ocorre atualmente como ocorre atualmente na era das mensagens instantâneas e das informações quase imediatas pela internet.

Contudo, a Lei do Divórcio foi publicada e entrou em vigor sem que boa parte da população tivesse conhecimento de todos os seus termos. A grande notícia da época não era a alteração de regime legal, mas a mudança paradigmática que representou a possibilidade de divórcio no Brasil. Portanto, no amanhecer do dia 27 de dezembro de 1977 e dos dias subsequentes, celebraram-se casamentos observando a habilitação prévia sob o regramento antigo, e só mais tarde tomou-se conhecimento de que o regime de bens legal, solidificado durante séculos, havia sido alterado.

Até a publicação da Lei, o regime da comunhão universal era o regime legal, supletivo ou dispositivo , e, a partir da publicação, passou a ser o da comunhão parcial de bens, circunstância que, dali por diante, exigiria a novidade de pacto antenupcial para estabelecimento de regime da comunhão de bens.

A desordem que ficou: casamentos realizados sob o regime da comunhão universal de bens, a partir de 27/12/1977, sem pacto antenupcial por escritura pública, atraíram a aplicação do art. 256, parágrafo único da Lei nº 3.071/1916, e o art. 1.640, da Lei 10.406/2002, o que tornava nulo o esperado regime da comunhão de bens, transmutando-o para o inesperado regime da comunhão parcial.

4 DO ERRO MATERIAL

Os oficiais registradores civis, desavisados da alteração ou suas implicações, prosseguiram com celebração e registro de casamentos de pessoas já previamente habilitadas, realizando inúmeros casamentos sob o regime da comunhão universal de bens, como se esse fosse o regime legal, portanto, sem exigência do pacto antenupcial.

Oportuno explicar a diferença entre os dois regimes – comunhão universal e comunhão parcial – para que se entenda a repercussão decorrente do erro na indicação do regime legal que constou no livro de registros de casamento.
No regime da comunhão universal de bens, regime legal até 26 de dezembro de 1977, comunicam-se, com exceções taxativas, todos os bens adquiridos antes ou durante a constância do casamento, inclusive heranças e doações recebidas, nos termos do art. 1.667 do Código Civil Brasileiro de 2002:

Art. 1.667. O regime de comunhão universal importa a comunicação de todos os bens presentes e futuros dos cônjuges e suas dívidas passivas, com as exceções do artigo seguinte.

No regime da comunhão parcial de bens, diversamente, a comunicabilidade fica restrita aos bens adquiridos onerosamente na constância do casamento, seguido de uma longa lista de bens incomunicáveis:

Art. 1.658. No regime de comunhão parcial, comunicam-se os bens que sobrevierem ao casal, na constância do casamento, com as exceções dos artigos seguintes.

Art. 1.659. Excluem-se da comunhão:
I – os bens que cada cônjuge possuir ao casar, e os que lhe sobrevierem, na constância do casamento, por doação ou sucessão, e os sub-rogados em seu lugar;
II – os bens adquiridos com valores exclusivamente pertencentes a um dos cônjuges em sub-rogação dos bens particulares;
III – as obrigações anteriores ao casamento;
IV – as obrigações provenientes de atos ilícitos, salvo reversão em proveito do casal;
V – os bens de uso pessoal, os livros e instrumentos de profissão;
VI – os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge;
VII – as pensões, meios-soldos, montepios e outras rendas semelhantes.

Resta claro, portanto, que a indicação incorreta do regime de bens resulta em graves consequências patrimoniais, de forma que o erro cometido em virtude da falta de informação sobre a alteração de regime pela Lei do Divórcio pode afetar de forma significativa o patrimônio, e o porvir patrimonial, dos casais que celebraram casamento em 27 de dezembro de 1977 e nos dias seguintes.
Tendo em vista que o regime da comunhão parcial de bens passou a ser o regime legal vigente no momento da celebração do casamento, conforme lei n.º 6.515/1977, que entrou em vigor no dia 27 de dezembro de 1977, deve ser este a reger o casamento realizado.

De fato, para afastar o regime legal, teria sido necessária a lavratura de pacto antenupcial por escritura pública, devidamente juntado aos autos do processo de habilitação para casamento, sendo mencionado no registro do casamento respectivo .

Sobre o tema, opinam Renata Barbosa de Almeida e Walsir Edson Rodrigues Júnior:
Até a Lei do Divórcio (Lei n.º 6.515/1977 de 26 de dezembro de 1977), o regime legal supletivo ou dispositivo, ou seja, aquele estabelecido pela lei na ausência de pacto antenupcial ou diante de pacto inválido, era o da comunhão universal. Com o advento da Lei do Divórcio, o regime legal supletivo ou dispositivo passou a ser o da comunhão parcial. Portanto, desde o dia 26 (sic) de dezembro de 1977, no Brasil, na ausência de pacto antenupcial ou diante de pacto invalido, prevalece o regime legal supletivo de comunhão parcial de bens. (ALMEIDA; RODRIGUES JÚNIOR, 2010, p, 179)

Determinava o art. 258 do Código Civil de 1916, com a redação dada pela Lei nº 6.515/77:

Art. 258 – Não havendo convenção, ou sendo nula, vigorará, quanto aos bens entre os cônjuges, o regime de comunhão parcial. (Redação dada pela Lei nº 6.515, de 1977) .

O Código Civil atual repetiu a mesma norma:

Art. 1.640. Não havendo convenção, ou sendo ela nula ou ineficaz, vigorará, quanto aos bens entre os cônjuges, o regime da comunhão parcial.
É exatamente o caso, pois, como não havia convenção, deveria vigorar entre os cônjuges o regime legal da comunhão parcial de bens, daí, o erro material.

5 DOS CENÁRIOS POSSÍVEIS

Os cenários de indicação equivocado do regime legal podem ser sintetizados assim: a) celebração do casamento anteriormente à vigência da Lei do Divórcio, com registro posterior; b) celebração do casamento posteriormente à Lei do Divórcio, e as partes pretendem fazer subsistir o regime da comunhão universal de bens; e, c) celebração do casamento posteriormente à Lei do Divórcio, e as partes pretendem retificar o regime legal, passando para a comunhão parcial de bens.

No primeiro cenário – celebração do casamento anteriormente à vigência da Lei do Divórcio, com registro posterior – é preciso estabelecer que o casamento acontece na data de sua celebração. Embora possa haver alguma controvérsia de sua consumação – se no momento do duplo consentimento ou após a declaração de fórmula solene pelo celebrante – não há dúvida que é na celebração, e não no registro, que o casamento ganha existência, validade e eficácia, a teor do disposto no art. 1.535, do Código Civil de 2002:

Presentes os contraentes, em pessoa ou por procurador especial, juntamente com as testemunhas e o oficial do registro, o presidente do ato, ouvida aos nubentes a afirmação de que pretendem casar por livre e espontânea vontade, declarará efetuado o casamento, nestes termos: “De acordo com a vontade que ambos acabais de afirmar perante mim, de vos receberdes por marido e mulher, eu, em nome da lei, vos declaro casados.

Assim, o regime legal também considera a DATA DA CELEBRAÇÃO DO CASAMENTO e não seu registro, conforme expressamente dispunha o art. 230 do Código Civil de 1916:

Art. 230. O regime dos bens entre os cônjuges começa a vigorar desde a data do casamento, e é irrevogável”.

Naturalmente a “data do casamento” é o de sua celebração. Celebrado o casamento antes da vigência da Lei 6.515/1977, mesmo sendo registrado depois da vigência, as regras aplicáveis não serão da novel lei, mas as do código civil de 1916. Neste caso, a indicação do regime de casamento legal como comunhão universal, estaria correta.

No segundo cenário, se as partes pretendem fazer subsistir o regime da comunhão universal de bens, a opção que aparenta ser a mais aconselhável seja a provocação judicial objetivando uma sentença que autorize a manutenção do regime legal que constou incorretamente no registro, tendo em vista o decurso do tempo e a vontade de ambos os cônjuges, circunstâncias sujeitas à dilação probatória no processo judicial.

Neste sentido, a opinião convergente de JOÃO PEDRO LAMANA PAIVA e TIAGO MACHADO BURTET:
(…) questão que merece ser analisada é a decorrente da habilitação para o casamento realizada anteriormente à vigência da Lei nº 6.515/77, onde foi escolhido o regime da comunhão “universal” de bens, mas cuja celebração ocorreu na vigência desta norma, momento em que já era exigível a escritura pública de pacto antenupcial. Neste caso, os cônjuges necessitam ir à Juízo ou para confirmar a sua vontade no momento da habilitação, ou para retificar o regime para o legal, que dispensa o pacto. Há, também, casos em que a habilitação e a celebração do casamento foram formalizadas na vigência da Lei nº 6.515/77, pelo regime da comunhão universal de bens, sem a celebração da Escritura Pública de Pacto Antenupcial.

Apesar de não existir ainda norma que autorize a retificação do registro civil com fundamento em escritura pública, parece-nos viável a lavratura de uma escritura por ambos os cônjuges para fins de ratificar o regime da comunhão universal de bens, que constou na certidão. A tese aqui defendida fundamenta-se no fato de que o procedimento judicial adotado para a manutenção do regime é o da jurisdição voluntária. Essa é função atípica do Poder Judiciário, perfeitamente suprível pela função notarial, principalmente em se tratando de negócio jurídico protagonizado por pessoas maiores e capazes, cuja incidência não extrapola direitos patrimoniais disponíveis. Ademais, se o regime da comunhão já consta da certidão de casamento, mantê-lo equivalerá a garantir eficácia à teoria da aparência . Em uma análise mais profunda, na hipótese de o casal querer efetivamente o regime da comunhão de bens, que consta do assento de casamento, a alteração do regime frustra a expectativa interna do casal, e frauda a publicidade garantidora de terceiros, até então exposta. Essa escritura de ratificação, mesmo que não seja ainda (por inexistência de norma autorizativa) suficiente para fundamentar uma alteração do registro civil, serve para provar ao juiz, no processo judicial, qual a vontade das partes. Esse debate, contudo, fica aqui na reticência, no meio do caminho, por não caber nos limites do presente artigo.

O terceiro cenário – celebração do casamento posteriormente à Lei do Divórcio, e as partes pretendem retificar o regime legal, passando para a comunhão parcial de bens – é exatamente o núcleo deste trabalho.

6 A JURISPRUDÊNCIA SOBRE A RETIFICAÇÃO DO ERRO RELATIVO AO REGIME DE BENS

O Superior Tribunal de Justiça – STJ já se manifestou sobre casos como o presente, tendo firmado entendimento que, na ausência de pacto antenupcial, o regime é o da COMUNHÃO PARCIAL DE BENS. Abaixo se reproduz Decisão Monocrática, em julgado do STJ, proferido pelo Relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, no AREsp 1259855, publicado em 06/06/2018 , que fundamenta esse entendimento:
Conforme se afere dos autos, não houve a confecção de pacto antenupcial por meio de escritura pública, motivo pelo qual o regime que deve reger o casamento sob análise é, indubitavelmente, o da comunhão parcial de bens, como bem fundamentado pelo acórdão recorrido:

“(…) Em que pese a livre manifestação da vontade alegada pela autora no presente apelatório, de rigor o reconhecimento de que, na forma do artigo 1.640 do Código Civil, especialmente em seu parágrafo único, a ausência de pacto antenupcial traduz na escolha pelo regime de comunhão parcial de bens, eis que tal não necessita de prévio pacto.

(…) Coaduno com o entendimento proferido pelo Douto Juízo da instância singela, restando nula a convenção acerca do regime de bens, quando não há pacto antenupcial firmado através de escritura pública.
Não se há falar em eficácia de pacto que nunca existiu, vigorando de plano o regime da comunhão parcial de bens, que não necessita da realização de tal escritura pública, na forma descrita no artigo acima transcrito” (e-STJ fl. 431).

Assim, ausente o ato solene, deve-se ter como aplicável o regime legal ou supletivo, porquanto insuficiente que a opção conste apenas na certidão de casamento. (sem grifos no original)

A jurisprudência do TJMG é uniforme no sentido de ser aplicável o regime da COMUNHÃO PARCIAL quando não existe pacto, após a entrada em vigor da Lei do Divórcio, que ocorreu em 27/12/1977. É o que demonstram as ementas abaixo reproduzidas:

EMENTA […] – RETIFICAÇÃO DO REGIME CONSTANTE NA CERTIDÃO DE CASAMENTO – REGIME DA COMUNHÃO DE BENS CONSTANTE NO ASSENTO – NULIDADE DO APONTAMENTO EM FACE DA PREVISÃO LEGAL – CASAMENTO CELEBRADO NA VIGÊNCIA DA LEI FEDERAL 6.515/77 – INEXISTÊNCIA DE PACTO ANTENUPCIAL – REGIME DA COMUNHÃO PARCIAL DE BENS – RETIFICAÇÃO DO REGISTRO – PROCEDÊNCIA. Para os casamentos celebrados na vigência da Lei Federal 6.515/77, não havendo convenção, vigora, quanto aos bens entre os cônjuges, o regime de comunhão parcial e, em que pese a princípio ser vedada a alteração do registro civil, que será definitivo, a jurisprudência tem admitido, com fundamento na Lei 6.015/73, a sua modificação em casos excepcionais, devidamente fundamentados, como nas hipóteses de erro evidente, e o que fica patente é que a pretensão deduzida nos autos se mostraria plenamente justificada em face do equívoco do Oficial do Registro Civil quando do apontamento irregular do regime de bens, em face da própria modificação produzida pela Lei Federal 6.515/77. Provido. – sem grifos no original.
“EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL – RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL – CERTIDÃO DE CASAMENTO – MATRIMÔNIO CONTRAÍDO NA VIGÊNCIA DA LEI 6.515/77 – REGIME LEGAL DA COMUNHÃO PARCIAL – ALEGAÇÃO DE ERRO DO CARTÓRIO – AUSÊNCIA DE PACTO ANTENUPCIAL – REGIME APLICÁVEL – COMUNHÃO PARCIAL DE BENS – RETIFICAÇÃO PARA REGIME DE COMUNHÃO UNIVERSAL – IMPOSSIBILIDADE. Na ausência de pacto antenupcial por escritura pública, celebrado o casamento após a vigência da Lei nº 6.515/77, deve ser aplicado o regime legal da comunhão parcial de bens, em observância ao princípio do tempus regitactum. – sem grifos no original.
Também, em recente acórdão, publicado em 1º de julho de 2020, o TJMG decidiu que, na falta de pacto antenupcial, o regime é o da comunhão parcial:
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE SUPRIMENTO DE REGISTRO CIVIL – RETIFICAÇÃO – CERTIDÃO DE CASAMENTO – REGIME DE BENS – LEI 6.515/77 […]

– A Lei nº 6.515, de dezembro de 1977, trouxe significativa alteração ao Código Civil de 1916, destacando-se ao art. 258, que alterou o regime de bens, no caso de ausência de convenção, ou sendo ela nula, de comunhão universal, para regime de comunhão parcial de bens.
– A ausência do pacto antenupcial configura a escolha do regime legal de bens, previsto no Código Civil. – sem grifos no original.

7 A CORREÇÃO DOS ERROS MATERIAIS PELA VIA ADMINISTRATIVA

É estreme de dúvidas que o assento de casamento celebrado sob o regime da comunhão universal de bens, sem pacto antenupcial escrito, possui erro material, do tipo evidente. Sua constatação e respectiva correção dispensam qualquer prova além da própria verificação dos seguintes elementos: a) data de celebração do casamento; b) regime de bens da comunhão universal de bens; e, c) ausência de pacto antenupcial.

A jurisprudência do TJMG é no sentido de que consiste em erro evidente a inserção no registro do regime da comunhão universal de bens, após 27 de dezembro de 1977, sem que o processo de habilitação tivesse sido instruído com pacto antenupcial.
Esclarecida a natureza material do erro, emerge a possibilidade de sua correção administrativa por meio do procedimento previsto no art. 110, da Lei de 6.015de 31/12/1973 (Lei de Registros Públicos – LRP).

Desde 2009, a Lei nº 12.100 ampliou o rol de erros passíveis de correção pela via administrativa, dando nova redação ao artigo 110 da Lei de Registros Públicos:

“Art. 110. Os erros que não exijam qualquer indagação para a constatação imediata de necessidade de sua correção poderão ser corrigidos de ofício pelo oficial de registro no próprio cartório onde se encontrar o assentamento, mediante petição assinada pelo interessado, representante legal ou procurador, independentemente de pagamento de selos e taxas, após manifestação conclusiva do Ministério Público.(…)

O erro que não exigisse qualquer indagação para a constatação imediata da necessidade de sua correção passava a ser objeto da retificação administrativa. Antes da publicação da Lei nº 12.100/2009, o art. 110 da Lei de Registros Públicos somente admitia o processamento no próprio cartório da correção de erros de grafia.

Posteriormente, pela Lei nº 13.484/2017, a redação do art. 110, I da LRP foi novamente alterada para incluir como passível de correção pela via administrativa “erros que não exijam qualquer indagação para a constatação imediata de necessidade de sua correção”:

Art. 110. O oficial retificará o registro, a averbação ou a anotação, de ofício ou a requerimento do interessado, mediante petição assinada pelo interessado, representante legal ou procurador, independentemente de prévia autorização judicial ou manifestação do Ministério Público, nos casos de:
I – erros que não exijam qualquer indagação para a constatação imediata de necessidade de sua correção;
II – erro na transposição dos elementos constantes em ordens e mandados judiciais, termos ou requerimentos, bem como outros títulos a serem registrados, averbados ou anotados, e o documento utilizado para a referida averbação e/ou retificação ficará arquivado no registro no cartório;
III – inexatidão da ordem cronológica e sucessiva referente à numeração do livro, da folha, da página, do termo, bem como da data do registro;
IV – ausência de indicação do Município relativo ao nascimento ou naturalidade do registrado, nas hipóteses em que existir descrição precisa do endereço do local do nascimento;
V – elevação de Distrito a Município ou alteração de suas nomenclaturas por força de lei.

A LRP não mais prevê prévia manifestação do Ministério Público na retificação administrativa. A partir da entrada em vigor da redação dada ao art. 110 da LRP pela Lei nº 13.484/2017, que ocorreu em 27 de setembro de 2017, o procedimento para retificação administrativa passou a ser o seguinte:

a) O requerente apresentará o pedido de retificação, com os documentos necessários à prova do erro, ao cartório onde está o registro ou ao cartório do RCPN que mais lhe convier, para que seja remetido ao cartório do registro via e-protocolo, conforme previsão do Provimento nº 46/2015, do CNJ, art. 3º, IV;
b) O Oficial autuará e numerará o processo administrativo de averbação;
c) O Oficial deve deferir o pedido se a documentação for suficiente, estando a hipótese dentre aquelas expressamente previstas no art. 110, da LRP. Se os documentos necessários à prova do erro estiverem no próprio cartório, o Oficial os mencionará no processo e na sua decisão, não sendo necessária apresentação de certidão;
d) O Oficial pode determinar a apresentação de outros documentos, se entender que são necessários para fundamentar o pedido de retificação e se não estiverem disponíveis no próprio cartório;
e) O Oficial somente deverá indeferir o pedido se não se enquadrar dentre as hipóteses legais para retificação, devendo a negativa ser fundamentada;
Não sendo deferido o pedido, caberá ao Oficial apresentar a decisão, devidamente fundamentada, ao interessado, bem como esclarecer a ele sobre a possibilidade de suscitação de dúvida . Em todas as hipóteses, deverá ser anotada, no livro de protocolo ou no sistema de controle interno, a providência tomada em relação ao processo administrativo respectivo.

Ressalte-se que mera insegurança do Oficial não é fundamento para negativa da retificação. Os Oficiais de Registro, como agentes públicos que são, devem interpretar a lei e seguir as suas determinações. A irrecusabilidade da prestação do serviço é uma das faces do princípio da instância ou rogação, específico do Registro Civil das Pessoas Naturais.

Não há que se falar em prejuízo de terceiros no que se refere ao erro material quanto ao regime de bens, posto que, em qualquer negócio no qual fosse relevante o regime de bens, para que fosse admitida a comunhão universal depois de 27 de dezembro de 1977, deveria ter sido apresentado o pacto antenupcial. Assim, o erro teria sido identificado no caso concreto.

8 DA ISENÇÃO DE EMOLUMENTOS NA HIPÓTESE DE ERROS ATRIBUÍVEIS AO OFICIAL

A Lei de Registros Públicos, no § 5º do art. 110, estabelece que não haverá cobrança de emolumentos se o erro constante do registro for imputável ao Oficial. Entendemos que a hipótese tratada, de erro relativo ao regime de bens, é imputável ao Oficial, razão pela qual não serão devidos emolumentos.

Art. 110. (…)
§ 5o Nos casos em que a retificação decorra de erro imputável ao oficial, por si ou por seus prepostos, não será devido pelos interessados o pagamento de selos e taxas.

A isenção de emolumentos é coerente com o que determina a Lei Federal nº 10.169/2000, que, ao regulamentaro §2º do art. 236 da Constituição da Federal, estabeleceu normas gerais para a fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro.

Essa lei, em seu art. 3º, IV, veda a cobrança de emolumentos em decorrência da prática de ato de retificação ou que teve de ser refeito ou renovado em razão de erro imputável aos respectivos serviços notariais e de registro, mesmo que se trate de equívoco de oficial anterior. Como bem esclarecem Mario de Carvalho Camargo Neto e Marcelo Salaroli de Oliveira, os oficiais aposentam, falecem ou mudam de cartório. Do ponto de vista do novo oficial de cartório, ele terá que retificar gratuitamente erros a que não deu casa, pois foram cometidos por oficial anterior.

Concordamos com esse entendimento pois, na perspectiva do cidadão, não importa se o erro foi do oficial anterior ou do atual oficial. O erro foi do serviço registral e deve ser objeto de correção, isentosde emolumentos. “Não há exigência legal de que o erro seja imputável ao mesmo oficial que realizará a retificação.”

9 CONCLUSÃO

O erro na indicação do regime da comunhão universal de bens no registro, na hipótese de não haver pacto antenupcial e de ter o casamento sido celebrado em data posterior a 26 de dezembro de 1977, enquadra-se no art. 110 da Lei de Registros Públicos.

Está claro que o erro não exige qualquer indagação para a constatação imediata de necessidade de sua correção. É, pois, um erro evidente, bastando a observação da data de realização da cerimônia para se verificar que, na ausência de pacto antenupcial, o regime não poderia ser outro que não o da comunhão parcial de bens.

Assim, sustenta-se que, nos casamentos cujas celebrações ocorreram em 27 de dezembro de 1977 ou em data posterior e, em cujo registro constou-se como regime legal a comunhão universal de bens, deve haver a correção na via administrativa, tendo em vista haver flagrante erro material.
A correção deve ser realizada mediante requerimento apresentado diretamente no Serviço de Registro Civil das Pessoas Naturais onde foi registrado o casamento, sem a necessidade de processo judicial para tanto. A Lei nº 13.484/2017 dispensou a remessa dos autos ao Ministério Público previamente à retificação.
Para evitar discussões e tendo em vista que as serventias devem atuar evitando lides, sugere-se que ambos os cônjuges, se vivos e capazes, requeiram a correção do erro em petição conjunta. Se já falecido um dos cônjuges, aconselha-se que o pedido seja assinado pelo cônjuge sobrevivente e pelos herdeiros, ou, não havendo cônjuge sobrevivente, apenas pelos herdeiros. Não sendo possível, no entanto, que todos os interessados assinem, isso não prejudica o pedido, que deverá ser deferido: a retificação se impõe, conforme previsão legal (art. 110, I, da LRP, c/c art. 258 do Código Civil de 1916).

10 SUGESTÃO DE REQUERIMENTO DE RETIFICAÇÃO DE REGISTRO POR ERRO NO REGIME DE BENS

ILMO. SR. OFICIAL DO SERVIÇO REGISTRAL CIVIL DAS PESSOAS NATURAIS DE xxxxxxxx
Xxxxxxxxxxxx, brasileira, viúva, portadora da Carteira de Identidade n.º xxxxxxx PC/MG, inscrita no CPF sob n.º xxxxx, vem, respeitosamente, à presença de V. Sa., requerer a correção do erro material existente no seu registro de casamento, tendo em vista o disposto no art. 110, da Lei nº 6.015/73, pelos fatos e fundamentos que passa a expor:

Foi feito o registro de casamento da Requerente nesse Cartório, consoante se infere da certidão de casamento anexa.

Ocorre que, por erro evidente, constou, no respectivo assentamento, o regime de casamento como sendo o da “comunhão de bens”, quando, na verdade, o regime correto é o da “comunhão parcial de bens”, tendo em vista este ser o regime legal vigente na época da celebração do casamento, conforme lei n.º 6.515/1977, que entrou em vigor no dia 27 de dezembro de 1977. Esclarece que não existe PACTO ANTENUPCIAL mencionado no registro ou juntado no processo de habilitação, razão pela qual deveria efetivamente ter constado no registro o regime da comunhão parcial de bens.

De fato, determinava o art. 258 do Código Civil, com a redação dada pela Lei nº 6.515/77, vigente na época da celebração do casamento:
Art. 258 – Não havendo convenção, ou sendo nula, vigorará, quanto aos bens entre os cônjuges, o regime de comunhão parcial. (Redação dada pela Lei nº 6.515, de 1977).

O Código Civil atual repetiu a mesma norma:

Art. 1.640. Não havendo convenção, ou sendo ela nula ou ineficaz, vigorará, quanto aos bens entre os cônjuges, o regime da comunhão parcial.
Ante o exposto, requer a V. Sa. seja DEFERIDO o pedido de RETIFICAÇÃO ADMINISTRATIVA, tendo em vista a demonstração cabal, acima feita, da necessidade de correção do ERRO EVIDENTE, já que não existe PACTO ANTENUPCIAL.
Nestes termos, pede deferimento.
Local, data.
Assinatura da viúva

Os herdeiros do falecido assinam abaixo, para demonstrar que estão de acordo com a correção do erro evidente quanto ao regime de bens, NÃO HAVENDO, POIS, QUALQUER DIVERGÊNCIA ENTRE A VONTADE DA MEEIRA E DOS HERDEIROS.
Assinatura do herdeiro 1
Assinatura do herdeiro 2

11 REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Renata Barbosa de; JÚNIOR, Walsir Edson Rodrigues. Direito Civil: Famílias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
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Teoria da aparência consiste em “uma situação de fato que manifesta como verdadeira uma situação jurídica não verdadeira, e que, por causa do erro escusável de quem, de boa-fé, tomou o fenômeno real como manifestação de uma situação jurídica verdadeira, cria um direito subjetivo novo, mesmo à custa da própria realidade.” In MALHEIROS, Álvaro. Aparência de Direito. Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial. São Paulo, n. 7, out. 1978, p. 46).
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*Letícia Franco Maculan Assumpção é graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (1991), pós-graduada e mestre em Direito Público. Foi Procuradora do Município de Belo Horizonte e Procuradora da Fazenda Nacional. Aprovada em concurso, desde 1º de agosto de 2007 é Oficial do Cartório do Registro Civil e Notas do Distrito de Barreiro, em Belo Horizonte, MG. É autora de diversos artigos na área de Direito Tributário, Direito Administrativo, Direito Civil, bem como Direito Registral e Notarial, publicados em revistas jurídicas, e dos livros“Função Notarial e de Registro”, “Notas e Registros”, “Casamento e Divórcio em Cartórios Extrajudiciais do Brasil” e “Usucapião Extrajudicial”. É Diretora doRecivil, do CNB e do INDIC, Vice-Presidente do Colégio Registral de Minas Gerais, Co-Coordenadora da Pós-Graduação em Direito Notarial e Registral no CEDIN.

**Isabela Franco Maculan Assumpção é Mestre em Direito Internacional Público pela London SchoolofEconomics. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pós-graduada em Direito Inglês e Mestranda em Prática Jurídica pela BPPUniversity. É Oficial Substituta no Cartório de Registro Civil e de Notas do Distrito do Barreiro, em Belo Horizonte, MG. Autora de diversos artigos na área do Direito Civil e Direito Notarial e do livro “Casamento homoafetivo”.

***Paulo Hermano Soares Ribeiro – Graduado em Direito pela Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES), pós-graduado em Poder Judiciário; pós-graduado em Metodologia e Docência do Ensino Superior. Professor de Direito Civil do Centro Universitário UNIFIPMoc. Professor da Pós-Graduação em Direito Notarial e Registral do CEDIN – Centro de Direito e Negócios. Conselheiro Fiscal do Colégio Notarial Brasileiro (CNB-MG). Tabelião em Minas Gerais. Autor dos livros Novo Direito Sucessório Brasileiro, Casamento e Divórcio na Perspectiva Civil Constitucional, Nova Lei de Adoção Comentada, capítulos em livros coletivos, artigos jurídicos e multidisciplinares.