Com o passar dos dias surgem novas e novas questões controvertidas a respeito da aplicação da Lei 11.441, de 04.01.2007, que permitiu a realização de inventários, separações e divórcios pela via administrativa notarial.
Além daquelas já levantadas em meu artigo anterior “Escrituras de Inventários, Separações e Divórcios: alguns cuidados” (Jus Navigandi: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9391, Amagis: http://www.amagis.com.br/?pagina=noticias&pag_int=artigos_&pag_3ro=recentes; AMB: http://www.amb.com.br/portal/index.asp?secao=artigo_detalhe&art_id=571), vejamos outras dessas controvérsias e o meu pensamento a respeito, sempre respeitando as opiniões em contrário:
1) INVENTÁRIO E PARTILHA COM PAGAMENTOS DE VEÍCULOS E SALDOS BANCÁRIOS
Nas partilhas em processos de inventário judicial muito comum a existência de veículos, que passam a compor o pagamento da legítima de determinado herdeiro, sendo praxe a expedição de alvarás para sua transferência nos departamentos de trânsito. Também corriqueiro a partilha de dinheiro objeto de depósitos em contas ou de aplicações financeiras, com a expedição de alvarás aos bancos e caixas econômicas autorizando ou determinando o seu pagamento.
Tal também ocorre nas partilhas de separação e divórcio, nas quais muitas vezes um veículo registrado em nome de um dos cônjuges, ou o saldo de uma conta bancária em nome exclusivo de um, na partilha dos bens passa a compor a meação do outro.
Na verdade, em se tratando de partilha promovida em juízo, o documento comprobatório do direito adquirido é o formal de partilha, cuja apresentação aos bancos é suficiente para possibilitar ao contemplado receber os valores a que tem direito. Também é o documento hábil para as autoridades de trânsito transferir em seus registros a propriedade dos veículos. Na prática não é o que ocorre, prevalecendo as exigências indevidas de alvará.
Mas e nos casos de partilha por escritura pública?
Por certo, como costumeiramente o fazem, as instituições financeiras continuarão exigindo autorizações judiciais, mediante alvarás, para o pagamento de valores aos contemplados na partilha, havendo grande probabilidade dos departamentos de trânsito também agirem da mesma forma.
Entendo serem exigências descabidas, porquanto as escrituras públicas são os documentos hábeis a comprovar a aquisição dos direitos pelos contemplados nas partilhas, sejam herdeiros, meeiros ou ex-cônjuges separados ou divorciados.
Admitir que os bancos, os departamentos de trânsito e outros órgãos públicos ou de atendimento ao público (junta comercial, registro de títulos e documentos, empresas de telefonia), assim como sociedades por quotas, clubes, etc. possam recusar validade às escrituras públicas, obrigando as partes a postular em Juízo alvarás para concretização dos direitos estampados na partilha, será esvaziar a nova lei, dela fazendo tábula rasa.
Apenas para exemplificar o absurdo dessa exigência, se houver, basta imaginar a seguinte situação: Em um inventário, por escritura pública, com os herdeiros maiores e capazes, o herdeiro “X” recebe em pagamento de seu quinhão, no valor total de R$1.000.000,00 (um milhão de reais), os seguintes bens: a) uma fazenda no valor de R$500.000,00; b) um apartamento no valor de R$493.000,00; c) um veículo usado no valor de R$6.000,00 e d) o saldo de uma conta bancária no valor de R$1.000,00. Lavrada a escritura, poderá ele de imediato obter o registro imobiliário e alienar a fazenda e o apartamento no total de R$993.000,00 (novecentos e noventa e três mil reais), sem qualquer intervenção judicial. Porém, terá de postular alvará judicial para transferir para o seu nome o veículo usado de R$6.000,00 e para levantar o saldo de R$1.000,00.
2) PRESENÇA NÃO OBRIGATÓRIA DAS PARTES
Há quem sustente a obrigatoriedade do comparecimento pessoal das partes contratantes nas escrituras públicas de inventário, separação e divórcio.
No entanto, consoante se depreende da leitura atenta do parágrafo único do art. 982[1] e do § 2º do art. 1.124-A[2], ambos do Código Civil, com a redação dada pela Lei 11.441/2007, a exigência de comparecimento pessoal ao ato notarial é apenas do advogado ou dos advogados que assistem os contratantes, nada impedindo que estes sejam representados por procuradores com poderes especiais, devidamente munidos de procuração por instrumento público, como exigível na primeira parte do art. 657 do Código Civil [3].
Até porque, salvo engano, os únicos atos notariais que não podem ser praticados por mandato são o testamento público e a aprovação do testamento cerrado, nos quais a presença do testador é indispensável.
Em relação aos processos, nos casos de divórcio direto (por analogia) e principalmente de separação consensual, por força do artigo 1.122 e seus parágrafos[4] a praxe era exigir o comparecimento pessoal das partes em audiência preliminar para tentativa pelo Juiz de reconciliação do casal.
A lei nova ao permitir a separação consensual por escritura, sem atribuir ao tabelião o dever de reconciliar o casal e de ouvi-los sobre os seus motivos, acabou por revogar implicitamente tais exigências também a nível processual, dispensando o comparecimento pessoal dos separandos e divorciandos tanto em juízo, como no tabelionato.
É óbvio que os separandos e divorciandos devem ser alertados pelo Juiz ou pelo Notário das conseqüências da separação ou do divórcio, mas tal advertência há de lhes ser feita se estiverem presentes ao ato. Se constituírem procurador para representá-los na escritura pública de separação ou divórcio, caberá ao tabelião que lavrar a procuração por instrumento público advertir os outorgantes das conseqüências de seus atos.
Possível, assim, que as partes contratantes sejam representadas nas escrituras por procuradores com poderes especiais, constantes de mandatos outorgados por instrumentos públicos, inclusive lavrados nos Consulados do Brasil no exterior.
E vou além: não fosse a exigência da presença de advogados, obviamente inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil, uma vez presentes os requisitos legais seria possível até lavrar escrituras públicas de inventário, separação e divórcio nos Consulados do Brasil no exterior, quando lá residentes os brasileiros, aplicando-se no que cabível os itens 4.8.1[5], 4.8.2[6] e seguintes, da Seção 8ª (Normas Gerais de Registro de Notas), do Capítulo 4º (Atos Notariais e de Registro Civil), do Tomo I do Manual de Serviço Consular e Jurídico do Ministério das Relações Exteriores.
Muitos acreditam ser a presença dos advogados nas escrituras mero formalismo. Prefiro acreditar que a eles a lei reservou papel especial, de efetivamente assistir os contratantes, verificando a legalidade dos acordos em seus mínimos detalhes, zelando pela autenticidade dos documentos exigidos para o ato, cuidando para que as partilhas obedeçam a igualdade e alertando pessoalmente as partes das conseqüências do seu ato.
Como ocorre nos processos em que atuam, poderão os advogados assistentes ser responsabilizados pelos prejuízos que derem causa aos contratantes, inclusive pela omissão quando do ato notarial.
3) RECONCILIAÇÃO POR ESCRITURA PÚBLICA
A lei nº 11.441 não tratou da reconciliação do casal, permitida pelo artigo 1.577[7] do Código Civil, “por ato regular em Juízo”.
Daí existir controvérsia a respeito, uns sustentando a impossibilidade da reconciliação por escritura, outros a admitindo.
Fico com a segunda corrente, partindo do princípio segundo o qual “quem pode o mais, pode o menos”. Se possível é aos cônjuges promover por escritura pública a sua separação consensual, que mal há em admitir pela mesma forma a reconciliação? Nenhum.
Igualmente não vejo qualquer empecilho em se promover a reconciliação por escritura pública, quando a separação foi decretada judicialmente, inclusive em processo contencioso, porquanto a sociedade conjugal será restabelecida nas mesmas condições em que foi constituída, e “em nada prejudicará o direito de terceiros, adquirido antes e durante o estado de separado, seja qual for o regime de bens”, nos precisos termos do parágrafo único do mencionado art. 1.577.
4) EXISTÊNCIA DE DÍVIDAS DO ESPÓLIO
Sustenta-se não ser possível lavrar escrituras de inventário e partilha, quando existentes dívidas deixadas pelo de cujo.
Discordo daqueles que assim o entendem, posto não existir na Lei 11.441 qualquer vedação a respeito.
Na verdade, o inventário é a declaração pormenorizada dos bens e das dívidas ativas e passivas deixados pelo Inventariado, bem como a relação de seus herdeiros, legatários e credores.
Na fase posterior da partilha calcula-se a legítima dos herdeiros levando-se em conta os bens deixados, deduzindo-se as dívidas e somando-se o valor dos bens sujeitos à colação, como reza o Código Civil em seu artigo 1.847[8].
Assim, cabe aos interessados na escritura de inventário e partilha, relacionar todos os bens e as dívidas, acrescentando eventual valor correspondente aos bens sujeitos a colação e deduzir as dívidas que deverão também ser relacionadas. Em seguida, separados os bens necessários ao pagamento dos débitos, poderão partilhar o saldo.
O ideal seria a presença na escritura dos credores, com o pagamento a estes dos bens separados e respectiva quitação, mas nada impede que tais bens sejam dados em pagamento à parte a um dos herdeiros, com a obrigação de somente utilizá-los nos pagamentos das dívidas. Possível, ainda, que tais bens permaneçam reservados, não sendo objeto de partilha, para posteriormente ser dados em pagamento aos credores por outra escritura pública ou por adjudicação em processo judicial.
Por óbvio que se o valor das dívidas superar o patrimônio, ou tornar insignificante o saldo a ser partilhado, não haverá interesse dos herdeiros em promover o inventário.
5) ADIANTAMENTO DE LEGÍTIMA E COLAÇÃO
Como o inventário e partilha requer o consenso dos herdeiros, nenhum óbice haverá em se formalizar tais atos por escritura pública, quando for caso de colação dos bens recebidos em adiantamento de legítima.
Aliás, indispensável que na escritura pública sejam trazidos a colação os bens recebidos a tal título, cujo valor será acrescido aos dos demais bens existentes na data da abertura da sucessão, depois de deduzidas as dívidas e despesas de funeral, de modo a possibilitar a igualdade das legítimas.
6) CONCLUSÃO
Como a lei 11.441 apenas acrescentou um artigo e alterou três outros existentes no Código de Processo Civil, permitindo a prática notarial de atos historicamente sujeitos ao crivo do Poder Judiciário, é de se esperar surjam diversas dúvidas e controvérsias. Às questões colocadas neste texto certamente surgirão outras tantas, algumas mais simples, outras mais complexas, tornando apaixonante o debate jurídico a respeito, até que com o passar do tempo sejam sedimentados os entendimentos pela doutrina e principalmente pela jurisprudência de nossos tribunais.
7) NOTAS
[1] Art. 982….Parágrafo único. O tabelião somente lavrará a escritura pública se todas as partes interessadas estiverem assistidas por advogado comum ou advogados de cada uma delas, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial.
[2] Art. 1.124-A …… § 2º. O tabelião somente lavrará a escritura se os contratantes estiverem assistidos por advogado comum ou advogados de cada um deles, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial.
[3] Art. 657. A outorga do mandato está sujeita à forma exigida por lei para o ato a ser praticado. Não se admite mandato verbal quando o ato deva ser celebrado por escrito.
[4] Art. 1.122. Apresentada a petição ao juiz, este verificará se ela preenche os requisitos exigidos nos dois artigos antecedentes; em seguida, ouvirá os cônjuges sobre os motivos da separação consensual, esclarecendo-lhes as conseqüências da manifestação de vontade.
§ 1º Convencendo-se o juiz de que ambos, livremente e sem hesitações, desejam a separação consensual, mandará reduzir a termo as declarações e, depois de ouvir o Ministério Público no prazo de 5 (cinco) dias, o homologará; em caso contrário, marcar-lhes-á dia e hora, com 15 (quinze) a 30 (trinta) dias de intervalo, para que voltem a fim de ratificar o pedido de separação consensual.
§ 2º Se qualquer dos cônjuges não comparecer à audiência designada ou não ratificar o pedido, o juiz mandará autuar a petição e documentos e arquivar o processo.
[5] 4.8.1 É da competência da Autoridade Consular a assinatura original de todos os atos notariais.
[6] 4.8.2 Os atos notariais podem ser feitos por instrumentos públicos ou particulares, dependendo de sua natureza. Instrumentos particulares são feitos em documentos individuais, assinados pelas partes, legalizados na forma da legislação do país onde se originaram, quando assinados por estrangeiros, e, a seguir, para produzirem efeitos no Brasil, legalizados pela Autoridade Consular brasileira. Instrumentos públicos são aqueles lavrados nos Livros da Repartição Consular, dos quais qualquer brasileiro pode requerer certidão.
[7] Art. 1.577. Seja qual for a causa da separação judicial e o modo como esta se faça, é lícito aos cônjuges restabelecer, a todo tempo, a sociedade conjugal, por ato regular em juízo.
[8] Art. 1.847. Calcula-se a legítima sobre o valor dos bens existentes na abertura da sucessão, abatidas as dívidas e as despesas do funeral, adicionando-se, em seguida, o valor dos bens sujeitos a colação.
*Antonio Carlos Parreira é juiz de Direito da Vara de Família e Sucessões de Varginha – MG
Fonte: Anoreg BR