Autor: Daniela Bogado Bastos de Oliveira
INTRODUÇÃO
O direito de família, num viés integrativo, calcado na interpretação sistemática da Constituição e no ideal democrático, permite a ampliação dos modelos familiares, o que abarca a tutela de famílias homoafetivas e, conseqüentemente, atinge a noção de filiação, pois, uma vez que do objetivo de constituir família emerge e desejo de ter filhos (como forma de realização dos indivíduos que a compõe), torna-se essencial o reconhecimento da homoparentalidade[1], que apenas requer que o referencial parental independa do sexo, numa contemporânea configuração familiar.
1. AMPLIANDO OS TIPOS DE PARENTALIDADE
O Direito de Família está se desvinculando de concepções tradicionais e taxativas, possibilitando um âmbito de convivência familiar ampliado, numa ótica eudemonista, mais solidária e igualitária, uma vez que a legislação precisa acompanhar a multidiversidade familiar para respeitar a dignidade da pessoa humana. Isto porque, cada grupo familiar, em nome do afeto, deve se organizar da forma que achar mais conveniente, ainda que saiam da “comodidade” dos padrões preconcebidos.
A regulamentação das relações familiares passa a ser exercida pela principiologia constitucional através dos princípios da igualdade; da afetividade; da paternidade responsável; da supremacia dos interesses dos filhos e, primordialmente, da dignidade da pessoa humana que, por ser um valor nuclear, confere unidade teleológica a todos os demais princípios e regras constitucionais e infraconstitucionais.[2]
Os artigos 226 a 229 da nossa Lei Maior demonstram que o centro da tutela constitucional deslocou-se do casamento, como era até então, para as relações familiares, de uma forma mais ampla, tutelando-se, primordialmente, a dignidade de seus integrantes.[3]
Portanto, a Constituição Federal de 1988 transformou a “família-instituição” em “família-instrumento” que se volta “para o desenvolvimento da personalidade dos seus membros, sendo, portanto, de crucial importância à preservação das estruturas psíquicas dos indivíduos”, o que envolve a “garantia de convívio com aqueles que lhe representam afeto”.[4]
Assim sendo, pode-se afirmar que “a família constrói sua realidade através da história compartilhada de seus membros” e que incumbe ao direito, diante da realidade, criar mecanismos de proteção para a tutelar todas as formas de convivência familiar, visando, no enfoque do melhor interesse da criança e do adolescente, especialmente às pessoas em desenvolvimento.[5]
Neste contexto, a identidade da filiação deve ser “construída na complexidade das relações afetivas, que se apresentam a partir das escolhas do ser humano”, pois cada família necessita lidar com seus padrões e conceitos para deles fazer emergir uma maneira original de constituir um grupo familiar com funções, direitos e deveres que atendam aos que dele participam, numa tentativa complexa de construir um relacionamento ou uma configuração vincular que lhes dê sentido de intimidade, pertinência e diferenciação.[6]
A maior função reconhecida à família é de “ser o ‘núcleo intermediário de desenvolvimento da personalidade dos filhos e de promoção da dignidade dos seus membros`, ou seja, ser a sede de realização de potencialidades da pessoa, com integral preservação de sua dignidade”,[7] afinal “o ser humano, hoje, busca sua realização como pessoa, ainda que para obter tal realização, tenha de enfrentar obstáculos advindos de conceitos ultrapassados”.[8]
Ao explicitar a necessidade de ampliação do conceito de família para inclusão de comunidades familiares homossexuais, Heloisa Helena Barboza observa que o reconhecimento de composições familiares diferentes das tradicionais já foi admitido para garantir o direito à moradia e opina que “com igual ou maior razão devem ser analisadas outras formações, com base em outros princípios constitucionais, como os da igualdade e da solidariedade”.
Afinal, os casos concretos que revelam a diversidade de situações sociais já existentes, demonstram que não basta apenas procurar a solução jurídica, possível de se encontrar mediante criterioso trabalho de ponderação dos princípios envolvidos em cada caso (…), a justiça não é alcançada por mera aplicação da lei, mas sim pela sua adequada interpretação, que deve levar em conta todas as pessoas atingidas e as peculiaridades de cada caso, que cada vez mais, devem ser examinadas à luz dos diferentes ramos do saber [9].
Diante da realidade, o presente momento histórico deve ser de democratização dos modelos familiares. Por isso, Paulo Luiz Netto Lobo aponta o pluralismo das entidades familiares como um avanço constitucional, por considerar o artigo 226 da Constituição uma cláusula geral de inclusão.[10] Pesquisas têm demonstrado um perfil das relações familiares diferenciado dos modelos legais, mas que, de todo modo, apresentam características comuns como afetividade, estabilidade e ostensibilidade:
a) par andrógino, sob regime de casamento, com filhos biológicos; b) par andrógino, sob regime de casamento, com filhos biológicos e filhos adotivos, ou somente com filhos adotivos, em que sobrelevam os laços de afetividade; c) par andrógino, sem casamento, com filhos biológicos (união estável); d) par andrógino, sem casamento, com filhos biológicos e adotivos ou apenas adotivos (união estável); e) pai ou mãe e filhos biológicos (comunidade monoparental); f) pai ou mãe e filhos biológicos e adotivos ou apenas adotivos (comunidade monoparental); g) união de parentes e pessoas que convivem em interdependência afetiva, sem pai ou mãe que a chefie, como no caso de grupos de irmãos, após falecimento ou abandono dos pais; h) pessoas sem laços de parentesco que passam a conviver em caráter permanente, com laços de afetividade e de ajuda mútua, sem finalidade sexual ou econômica; i) uniões homossexuais[11], de caráter afetivo e sexual; j) uniões concubinárias, quando houver impedimento para casar de um ou de ambos companheiros, com ou sem filhos; l) comunidade afetiva tomada com “filhos de criação”, segundo generosa e solidária tradição brasileira, sem laços de filiação natural ou adotiva regular”.[12]
Tânia da Silva Pereira, ao tratar das famílias possíveis num novo paradigma da convivência familiar e ao afirmar que as entidades familiares identificadas explicitamente no nosso sistema jurídico não são suficientes para atender às necessidades de proteção e que por isso “outras formas de família hão de ser reconhecidas nessa mesma categoria constitucional, para obterem a proteção do Estado”, também elenca tipos diferentes de composição familiar:
1. família nuclear, incluindo duas gerações, com filhos biológicos; 2. famílias extensas, incluindo três ou quatro gerações; 3. famílias adotivas temporárias; 4. famílias adotivas, que podem ser bi-raciais ou multiculturais; 5. casais; 6. famílias monoparentais, chefiadas por pai ou mãe; 7. casais homossexuais com ou sem crianças; 8. famílias reconstituídas depois do divórcio; 9. várias pessoas vivendo juntas, sem laço legais, mas com forte compromisso mútuo[13]
Assim, é possível vislumbrar múltiplos modelos familiares oriundos de uma construção social, na qual, hodiernamente, cabe a relativização de conceitos como o de casal, casamento e da própria família.[14]
Conseqüentemente, mister se pensar nos efeitos jurídicos decorrentes desta extensão das entidades familiares. A questão não parará só no afeto porque envolverá benefícios previdenciários, alimentos e herança, eis que no momento que se reconhece uma família deve-se raciocinar os efeitos pessoais e patrimoniais que esse reconhecimento vai produzir.
Ressalta-se, em congruência com o pensamento de Luiz Edson Fachin, que é na elasticidade que o espaço jurídico principiológico propicia, que a jurisprudência deve reafirmar seu papel de construção[15], pois o Direito é justamente uma força de transformação da realidade e deve, na atualidade,
estabelecer um compromisso aceitável entre os valores fundamentais comuns, capazes de fornecer os enquadramentos éticos nos quais as leis se inspirem, e espaços de liberdade, os mais amplos possíveis, de modo a permitir a cada um a escolha de seus atos e do direcionamento de sua vida particular: de sua trajetória individual.[16]
Muitas vezes o novo vem para alcançar antigos desejos.[17] Sempre existem “defasagens entre a nova consciência social (teoria) e o comportamento que dela é resultante (práxis), entre os valores apregoados e a prática cotidiana”. Daí a necessidade da reposição dos conceitos estruturantes do direito consoante o primado da pessoa humana.[18]
De acordo com Maria Celina Bodin de Moraes, como o sistema jurídico brasileiro é calcado na primazia das situações existenciais em razão da dignidade da pessoa humana, este fundamento da República torna-se o “princípio cardeal do ordenamento”, que através de uma medida de ponderação oscila entre dois valores, ora inclinando-se para a liberdade, ora para a solidariedade.[19] Se “o indivíduo existe enquanto em relação com os outros” e “a solidariedade objetiva decorre da necessidade imprescindível da coexistência”, fundamental a noção de alteridade que é desenvolvida, principalmente, por meio do contato familiar que propicia a percepção do outro; da divisão de espaço; do respeito à privacidade – por maior que seja a intimidade diária; enfim, da conquista de afeto que se nutre da “proximidade física e emocional, devendo ser conquistado na convivência.”[20]
É na intimidade das relações construídas no cotidiano que germina, cresce e frutifica o amor que necessita de “reciprocidade desenvolvida em um relacionamento estreito e contínuo que assegure confiança e familiaridade” aos que dele se mantêm. Até porque, se o amor não é dado, ele não está garantido de antemão, mas, ao contrário, demanda empenho, cuidado e investimento dos que integram uma relação amorosa, qualquer que seja ela – entre mãe e filho, pai e filho ou outras figuras privilegiadas que exerçam as funções parentais e a criança.[21]
Por isso está correto dizer que todos filhos, até os biológicos, são adotados, uma vez que a relação de filiação se constrói com a atenção compartilhada que se intensifica no contato cotidiano. O amor não é um dado natural, mas construído, o que legitima a “parentalidade psicológica, social e afetiva”. Portanto, o que dever ser estimulado são
os compromissos e as responsabilidades de quem cotidianamente coopera nos cuidados de menores que se criam e se educam no seio desses novos e provocantes núcleos de afeto e companheirismo para não excluí-los da proteção do Estado.[22]
Daniel Borrillo, explica que o que importa é o exercício da função paterna independente de um referencial tradicional de um pai ou uma mãe, ligados ao sexo dos mesmos.[23] Por que não ter dois pais ou duas mães? Por que não ter uma pessoa ou duas pessoas do mesmo sexo como referencial de pai e mãe?
Aliás, não é estranho à cultura brasileira ouvir falar em “pais de criação”, “minha segunda mãe”, “mãe de leite”, “mãe preta”, crianças cuidadas por vizinhos, tios ou irmãos mais velhos, padrinhos que assumem a responsabilidade educacional e econômica também numa demonstração de afeto…
Enfim, ainda que a criança precise da figura de um pai e/ou de uma mãe, tem-se como avançar no que tange a estes referencias pois, a criança pode encontrar em outros parentes pessoas que exerçam esses papéis[24]. Além do mais, um ascendente (no caso de viuvez ou produção independente) pode funcionar muito bem como pai e mãe, ou estariam estes indivíduos fadados a se casarem? Não é permitida a adoção por uma única pessoa? Não se protege as famílias monoparentais? Desde quando a biparentalidade, saber quem são os ascendentes e viver com os genitores é garantia da participação integral dos pais na vida dos filhos?
2. DEMOCRATIZANDO A VISÃO SOBRE AS ENTIDADES HOMOAFETIVAS
A Associação Americana de Antropologia já se manifestou no sentido de que pesquisas sobre unidades domésticas, relações de parentesco e família em diferentes culturas e períodos, não fornecem qualquer evidência científica que possa embasar a idéia de que a civilização ou qualquer ordem social viável dependa do casamento como uma instituição exclusivamente heterossexual, explicando que um imenso leque de tipos de famílias, incluindo as baseadas em parcerias homoafetivas pode contribuir na promoção de sociedades mais estáveis e humanitárias, o que nos permite valorizar a alteridade, abolindo rótulos e estigmatizações.[25] Assim, não há razão para que se dê tratamento diverso à família homoparental, vez que inexiste fundamentos para que se pense a homoparentalidade como prejudicial, em si mesma, à formação da prole. [26]
Portanto, estudos[27] mostram que não há incidência na sexualidade da criança viver com homossexuais. Mas e se mostrassem que as crianças se tornassem homossexuais. E daí? [28] Por acaso a heterossexualidade é um valor do Estado Democrático de Direito assim como a Dignidade da Pessoa Humana? Se fosse teria que assumir esta posição de modo que este assunto pudesse ser amplamente debatido para ver se o Estado teria ou não que promover a heterossexualidade, a homossexualidade ou a bissexualidade.
É necessário discutir os limites da faculdade regulamentadora do Estado em relação à família (…) Pois a proibição do matrimônio homossexual e de adoção por parte desse tipo de composição familiar parece contrariar o princípio constitucional que proíbe a discriminação por razão de gênero e preferências sexuais.[29]
Porventura a opção sexual pode implicar na perda ou limitação de direitos fundamentais e personalíssimos?
O alcance do princípio da igualdade não se restringe a nivelar os cidadãos diante da norma legal posta, mas que a própria lei não pode ser editada em desconformidade com a isonomia. Ou seja, a lei não deve ser fonte de privilégios ou perseguições, mas o instrumento regulador da vida social que necessita tratar eqüitativamente a todos, sendo este o conteúdo político-ideológico absorvido pelo princípio da isonomia e juridicizado pelos textos constitucionais em geral. Em suma, dúvida não padece que, ao se cumprir uma lei, todos os abrangidos por ela hão de receber tratamento parificado, sendo certo, ainda, que ao próprio ditame legal é interdito deferir disciplinas diversas para situações equivalentes.[30]
Por isso, a concretização da igualdade em matéria de sexo, exponencializada pela proibição de tratamento discriminatório fundado na orientação sexual[31], viabiliza “uma justiça igualitária que respeita a opção sexual de cada um”, impedindo que uma forma de família sobressaia sobre a outra,[32] garantindo qualquer tipo de parentalidade.
Salienta-se que numa democracia política que produz a liberdade de expressão, se tal liberdade não tiver conjugada com a liberdade de pensamento, pode-se provocar inúmeras distorções, como a discriminação. Por incrível que pareça, as pessoas têm dificuldade de compreender que dois seres humanos que possuem os mesmos mecanismos de inteligência não podem jamais ser discriminados por questões étnicas, diferenças culturais, nacionalidade, sexo e idade. Daí a importância de, em países democráticos, se alargar a liberdade com consciência crítica, desenvolvendo a capacidade de também ver o mundo com os olhos dos outros. Isto permitiria a libertação de um cárcere intelectual com padrões “escravizantes” limitados ao binômio de certo e errado, do erro e da punição[33], vez que “a negativa de direitos é a forma mais perversa de punir”[34].
Por acaso, seriam a história e a tradição suficientes para ferir direitos fundamentais ou temos que buscar novos argumentos para ampliar tais direitos? A crise paradigmática na fundamentação do direito ocorreu exatamente com as violações aos direitos fundamentais consentidas numa ótica de legalidade. Não é à toa que Hannah Arendt propõe outro referencial para a moral e para a própria justiça de forma que haja um juízo crítico baseado na mentalidade alargada; na sensibilidade para aquilo que é comum bem como na capacidade de ser expectador, ou seja, de sair um pouco da cena, se colocando no lugar do outro, para “compreender o maior número e a maior variedade possível de realidades”.[35] Isto, pois a verdade tem que ser plural, discutida e pactuada, respeitando o ponto de vista do outro e as opiniões manifestadas. Até porque, a capacidade de escuta melhora a capacidade de juízo. Como quando se julga se interpreta, a qualidade do julgamento que acolhe a justiça deve ter como base a capacidade de se colocar no lugar do outro; de ampliar o ponto de vista, de modo a trazer a pluralidade para dentro de si; assim como de saber se distanciar para ser imparcial.[36]
Tanto o direito que regula, quanto a ética que valora, lidam com o comportamento humano. E é a partir das experiências humanas que se formulam a concepção de mundo. Logo, a hermenêutica, por meio de um pensamento crítico, que concilia a teoria com a prática, deve levar ao confronto com a realidade. O mundo da ação (da política) tem que levar em conta a opinião dos outros, numa abertura para a opinião alheia e para as divergências que enriquecem, num permanente diálogo democrático, já que se vive numa sociedade formada por uma pluralidade de indivíduos, em que é vital a valorização da pessoa humana e de sua experiência concreta.[37]
Além do mais, de acordo com Daniel Sarmento, o papel do Direito não é o de simplesmente refletir os valores dominantes em cada momento. O Direito também tem uma função transformadora, emancipatória. Daí a imposição jurídica de respeito ao direito do homossexual de ser tratado como livre e igual pode a longo e médio prazo reduzir o estigma contra o homossexualismo. Sem dizer que em questão de igualdade e de direitos humanos não se deve transigir com os preconceitos irracionais da maioria.[38] Não são mais cabíveis os argumentos moralistas, biomédicos e majoritário que servem como objeção ao direito democrático da sexualidade. Basta pensar que a democracia não exclui a minoria; num Estado efetivamente laico, sem sucumbir a pressões religiosas e não pensar na medicina como um saber incontestável, desmedicalizando o discurso.
Remi Lenoir, com pertinência, argumenta que recusar aos homossexuais o direito de fundar uma família é perpetuar uma tradição familista, com projetos materiais e simbólicos a ela associados, pois não é apenas a família tradicional que é defendida, mas toda a ordem social que lhe serve de base. Todavia, a família não designa somente uma das dimensões essenciais da ordem social, porque também constitui uma categoria que permite pensá-la. Por isso, o autor questiona como pensar o que foi instituído como impensável como, por exemplo, entidades familiares homossexuais? Até porque, para se pensar na homoparentalidade e no casamento de homossexuais, torna-se necessário se utilizar categorias que menosprezaram tais pensamentos. E o mais polêmico é que a ordem social em questão é excludente. Assim,
interditar hoje aos homossexuais esses direitos significa não somente rejeitá-los no que circunscreve o direito de família, como também excluí-los de uma boa parte dos direitos que o Estado garante a seus cidadãos. E não de quaisquer direitos, pois se trata, neste caso, do direito à existência social e, mais amplamente, do direito à vida, de decidir sobre a própria vida. Um tal direito só se adquire ao preço de uma laicização total do Estado e, correlativamente, da rejeição de toda forma de familismo.[39]
Ao constatar que homossexuais, homens e mulheres, manifestam o desejo de se “normalizar” e, para tanto, reivindicam o direito ao casamento[40], à adoção e à procriação assistida, Elisabeth Roudinesco indaga: o que teria ocorrido na sociedade ocidental, nas últimas décadas, para que antigas minorias perseguidas desejem ser reconhecidas, não mais negando ou rompendo com a ordem familiar que tanto contribuiu para seu infortúnio; ao contrário, procurando nela integrar-se? Considerando que a homossexualidade sempre foi repelida da instituição do casamento e da filiação, a ponto de se tornar, ao longo dos séculos, o significante maior de um princípio de exclusão, por que o desejo de família? E, neste contexto, expõe que, “curiosamente, não é mais a contestação do modelo familiar que incomoda os conservadores, mas sim a vontade de a ele se submeter”. [41]
Ocorre que tal vontade, manifesta na reivindicação de se incluirem no conceito de família é legítima, afinal, a homoparentalidade não é contra “a família”, só propicia a continuidade da mesma através dos filhos desejados[42], em outros parâmetros.
Em conformidade com Pierre Bourdieu,
embora a inércia dos habitus, e do direito, ultrapassando as transformações da família real, tenda a perpetuar o modelo dominante da estrutura familiar e, no mesmo ato, o da sexualidade legítima, heterossexual e orientada para a reprodução; embora se organize tacitamente em relação a ela a socialização e, simultaneamente, a transmissão dos princípios de divisão tradicionais, o surgimento de novos tipos de família, como as famílias compostas e o acesso à visibilidade pública de novos modelos de sexualidade (sobretudo os homossexuais), contribuem para quebrar a dóxa e ampliar o espaço das possibilidades em matéria de sexualidade.[43]
3. RECONHECENDO A HOMOPARENTALIDADE
O reconhecimento jurídico da homoparentalidade produz uma ruptura que reflete, por exemplo, o rompimento da unidade biológica, da unidade de lugar, da unidade étnica e da unidade religiosa conferida às famílias, relativizando a família nuclear tradicional. Isto porque a filiação não é mais produto unicamente da reprodução biológica; a família necessariamente não é mais constituída por pessoas que moram na mesma casa; a adoção ou a miscigenação de casais forma famílias multirraciais e a diversidade religiosa demanda tolerância bem como a laicização integral do Estado.
Como evidenciado por Daniel Borrillo, a homoparentalidade radicaliza a modernidade[44], pois mostra de maneira categórica a diferença entre filiação e reprodução: enquanto o movimento feminista separou sexualidade de reprodução, o movimento gay está dissociando reprodução de filiação, o que nos obriga a pensar como organizar a família, pois é esta e não o matrimônio que deve ser protegida.
Através da homopaternidade – pais homossexuais e mães lésbicas -, os quais, ao assumir abertamente a paternidade e a maternidade como uma ficção cultural (artefato) e não apenas uma evidência natural, radicalizam a questão da vontade (e não a vontade do corpo) na questão da filiação.[45]
Desmitifica-se, então, certos mitos como o da diferenciação das funções maternas e paternas; o do sangue[46] e o da “transmissão” da homossexualidade e o do possível trauma em ser ter dois pais ou mães.
Atualmente a família, em si, que deve ser funcionalizada[47] e o que importa é o exercício da função parental independente de papéis maternos e/ou paternos predefinidos. Deve-se reafirmar a função materna / paterna independente da orientação sexual dos pais. Existem pais que são pai e mãe e vice-versa. Não se deve mais diferenciar pai e mãe, mas sim entender pais no sentido de ascendentes. Na verdade, o que merece ser privilegiado é a função paternal, afastando-se da designação sexual dos papéis familiares.
Trata-se da “hermafroditização” de um direito, substituindo as designações “marido e mulher” ou “pai e mãe” por “cônjuges” e “pais”, corroborando com a idéia de que a conjugalidade e a paternidade constituem, do ponto de vista jurídico, antes de tudo uma função, ou seja, uma imputação normativa que remete a um certo número de direitos e obrigações.[48] Além do mais, a reprodução biológica não é garantia de boa filiação e da boa autoridade parental[49] e a ausência do reconhecimento de qualquer tipo de homoparentalidade é um retrocesso porque se calca no paradigma convencional da família biológica e conservadora.
Pode-se relacionar algumas figuras de famílias homoparentais formada por: indivíduo e/ou casal homossexual que tenha filho(s) do passado em que era ou manteve relação heterossexual; um indivíduo homossexual que adota; um indivíduo homossexual que utiliza a reprodução assistida; um casal homossexual que se utiliza das técnicas de reprodução assistida; um casal homossexual que adota; um gay e uma lésbica que juntos resolvem ter um filho.
Lembrando que os filhos inseridos em famílias homoafetivas não podem (em nome do princípio do melhor interesse) sofrer exclusão jurídica por razões que não deram causa, ou por moralismos da sociedade que tem preconceito; e que se deve pugnar pela igualdade do tratamento dos filhos, independente da orientação sexual dos pais; torna-se fundamental refletir melhor sobre a adoção, a reprodução assistida e o poder familiar nesta perspectiva de homoparentalidade.
No que tange a adoção, no Brasil, é admissível o homossexual solteiro adotar[50]. Mas a adoção por casal homossexual, a princípio, diante a letra fria da lei e sem uma interpretação civil-constitucionalizada sistemática, não é permitida por força do parágrafo único do artigo 1618 ao dispor que “a adoção por ambos os cônjuges ou companheiros poderá ser estabilizada, desde que um deles tenha completado dezoito anos de idade, comprovada a estabilidade da família”, bem como do artigo 1622 pelo qual “ninguém pode ser adotado por duas pessoas, salvo se forem marido e mulher, ou se viverem em união estável”. Todavia, estes dois dispositivos legais desvirtuam o princípio da unidade da Constituição[51], da igualdade e da dignidade da pessoa humana, devendo ser revistos para se adequar a principiologia constitucional e, inclusive, acabar com hipocrisias.
Os indivíduos homossexuais que, sozinhos, adotam ou cuidam de seus filhos advindo de uma relação heterossexual (cativando além dos laços sanguíneos, laços de afeto, coincidindo assim a filiação biológica com a socioafetiva) constituem famílias monoparentais, protegidas constitucionalmente. Mas, no caso de família recomposta, não se pode deixar de pensar na relação afetiva do parceiro homossexual com o enteado, e na possibilidade de uma adoção unilateral pelo mesmo, mantendo-se no registro civil do adotado o nome do pai ou da mãe que sejam do mesmo sexo do adotante.
Como supracitado, muitos pais trazem filhos de relações heterossexuais para suas relações homoafetivas[52]; e, a proibição do casal adotar (ou do reconhecimento do vínculo afetivo que pode existir quando um dos parceiros cria o filho do outro), com a morte ou separação do que efetivamente ajuda o adotante ou o pai, pode vir a deixar o enteado sem o respaldo de pensão previdenciária ou alimentícia e se a morte for do adotante ou pai, dificulta-se que seu parceiro com quem o enteado tem vínculos afetivos obtenha a guarda, o que mais desampara do que protege. Sem dizer que os argumentos que visam impedir a adoção por gays e lésbicas são fracos, justamente porque não são típicos de famílias constituídas de pais homossexuais.
O perigo da criança sofrer abusos/violências sexuais advém, e com grande incidência, de parentes heterossexuais. A (in)capacidade de serem bons pais não está associada a opção sexual. A dificuldade de inserção social e a questão de ter que lidar com “piadinhas de mau gosto” também tem que ser enfrentada por famílias com pessoas afrodescendentes, gordas, pobres, de determinadas religiões, o que demonstra que é o preconceito social que deve ser superado.[53]
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. ADOÇÃO. CASAL FORMADO POR DUAS PESSOAS DE MESMO SEXO. POSSIBILIDADE. Reconhecida como entidade familiar, merecedora da proteção estatal, a união formada por pessoas do mesmo sexo, com características de duração, publicidade, continuidade e intenção de constituir família, decorrência inafastável é a possibilidade de que seus componentes possam adotar. Os estudos especializados não apontam qualquer inconveniente em que crianças sejam adotadas por casais homossexuais, mais importando a qualidade do vínculo e do afeto que permeia o meio familiar em que serão inseridas e que as liga aos seus cuidadores. É hora de abandonar de vez preconceitos e atitudes hipócritas desprovidas de base científica, adotando-se uma postura de firme defesa da absoluta prioridade que constitucionalmente é assegurada aos direitos das crianças e dos adolescentes (art. 227 da Constituição Federal). Caso em que o laudo especializado comprova o saudável vínculo existente entre as crianças e as adotantes. Negaram provimento. Unânime. (segredo de justiça) ASSUNTO: 1. Adoção. Casal do mesmo sexo. Possibilidade. Irmãos biológicos. Adoção em conjunto. Direito reconhecido. Efeitos sociais e jurídicos. Efeitos subjetivos. Menor entregue pela mãe biológica a casal de lésbicas. Adoção por uma delas. 2. União estável. Casal do mesmo sexo. Mulher. União homossexual. Evolução jurisprudencial. 3. Affectio conjugalis. Affectio societatis. 4. Família eudemonista. 5. A união entre pessoas do mesmo sexo : uma análise sob a perspectiva constitucional (rtdc v.1 p-89/112) 6. Juiz. Decisão da lide. Lacuna. Norma geral exclusiva. Norma geral inclusiva. Interpretação. 7. Dignidade da pessoa humana. 8. Família. Concepção sociojurídica da família. Alteração. Objetivos: sob o ponto de vista de objetivos e não sob o ponto de vista da procriação. Considerações sobre o tema. Disposições doutrinárias. 9. Engendramento biológico. Parentalidade. Distinção. 10. Menor. Criação em lares de homossexuais. Estudo. Valorização. 11. Dois meninos. Duas mães. 12. Filiação. Critério afetivo. 13. Registro civil. Assento de nascimento. Filho adotado por casal homossexual. Registro sem declinar a condição de pai ou mãe. 14. Casais homossexuais e adoção. (Marcos Rolim). 15. O direito à convivência familiar e não à origem genética. Prioridade absoluta de crianças e adolescentes. Filiação afetiva ou socioafetiva. Prioridade. 16. Objetivo da adoção. Pretensão da mãe. Impor obrigações e assegurar direitos aos filhos. Estabelecer vínculo jurídico com eles. (Apelação Cível nº 70013801592, Sétima Câmara Cível, TJRS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em 05/04/2006).
Ressalta-se, ainda, que para realizar o sonho paternal, o casal homoafetivo poderia utilizar-se da técnica de reprodução assistida[54].
No que tange à reprodução assistida, existe a Resolução 1358/92 do Conselho Federal de Medicina (CFM) que trata de normas éticas para a inseminação artificial, segundo o qual: a reprodução assistida é “subsidiária”, por ter “papel de auxiliar na solução de problemas de infertilidade humana; toda manipulação genética deve evitar a seleção de espécie[55]; pode ser receptora a mulher[56], capaz nos termos da lei, que tenha solicitado e cuja indicação não se afaste dos limites da Resolução e a casada[57] ou em união estável com a aprovação do cônjuge ou companheiro[58]; o consentimento informado é obrigatório e extensivo aos pacientes inférteis e doadores; o registro das gestações evitará que um doador tenha produzido mais de duas gestações, de sexos diferentes, numa área de um milhão de habitantes[59]; a gestação por substituição deve ser feita com pessoa da família – parente de 2º grau, para que não haja contratação e vigore “parentesco e benemerência, gratuidade e impossibilidade de reprodução pelas vias normais”, equilibrando, assim, a “`doação gratuita e temporária` do útero”.[60]
Destacaa-se que para Judith Martins Costa, a Resolução do CFM integra o ordenamento jurídico, na medida que atua como tópico hermenêutico no momento da aplicação do Direito.[61] Já Guilherme Calmon informa que “a Resolução 1358/92, no âmbito dos requisitos formais da reprodução assistida heteróloga, tem apresentado regras que se tornaram costumeiras no campo das exigências da forma escrita do consentimento e dos registros das principais informações a respeito dos procedimentos médicos, das provas de material fecundante, e das pessoas envolvidas (o casal, a criança, e o doador)”.[62] Contudo, apesar de ser um parâmetro que deve ser considerado, a Resolução do CFM não é lei; logo, não é o meio correto de restringir direitos.
O fato é que no vazio legislativo, resta a ética médica. Mas, nas conjunturas atuais, precisa-se ter cuidado para, a partir de uma análise crítica, histórica e jurídica, observar o que há implícito em certos discursos técnico-científicos a fim de evitar tipos de paternalismo moral eufemizado, bem como para não se atrelar em subjetivismos ou em concepções higienistas, de ordem positivista. A questão da filiação não é mais uma questão biológica de reprodução, nem se trata de um assunto médico, como a infertilidade, mas é uma questão de vontade, de querer ou não ter filhos.
Tanto que, quando um gay e uma lésbica resolvem ter um filho juntos, não há como se impedir, até por falta de controle. E, tratar-se-á de uma filiação biológica, oriunda ou de uma relação sexual ou de inseminação, que só pelo desejo e planejamento de se ter um filho já demonstra que a filiação biológica provavelmente será também conjugada com a socioafetividade. E esta situação pode se tornar mais complexa se a co-parentalidade incluir dois casais homossexuais, um masculino e outro feminino, que decidem ter um filho, através de inseminação artificial caseira (sem auxílio médico, fazendo uso de uma seringa para coletar o sêmen e introduzi-lo na vagina) ou da troca de parceiros, pois, neste caso, a criança terá dois pais e duas mães, sendo dois deles, pai e mãe biológicos.[63]
CONCLUSÃO
Família real é a que cativa o afeto através da convivência familiar contínua, independente de padrões preconcebidos. O direito precisa compreender as peculiaridades de cada grupo familiar, para garantir, efetivamente, o sentido da pluralidade assegurada constitucionalmente.
Na ótica da doutrina da proteção integral e sobre o prisma do princípio do melhor interesse, o que precisa ser garantido para as crianças e os adolescentes é um convívio familiar baseado no amor, que requer cuidado, dedicação e entrega, no qual a função parental seja exercida de forma desvinculada da orientação sexual do que a exerce.
O fato é que para a caracterização da homoparentalidade o importante é alcançar a inscrição de um vínculo de filiação duplo, com pai e pai ou mãe e mãe. A homoparentalidade está em consonância com uma evolução geral do direito de família que exige o reconhecimento de entidades familiares monoparentais, reconstituídas, recompostas, anaparentais, homoafetivas, rompendo com a família nuclear tradicional. Só que temos que avançar mais, tanto desconstruindo hipocrisias, quanto permitindo a adoção e/ou utilização de técnicas de reprodução assistida por casais homossexuais para poder afirmar que há reconhecimento jurídico da homoparentalidade. A jurisprudência aponta uma tendência salutar, que embora seja mínima, não deixa de ser o início. Início este, todavia, que já está possibilitando deslumbrar uma superação dos papéis de gênero a partir da homoparentalidade como expressão maior da democratização das entidades familiares.
Daniela Bogado Bastos de Oliveira é advogada. Doutoranda em Sociologia Política, na Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro. Mestra em Direito, pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito de Campos, na Área de Concentração de Relações Privadas e Constituição.
Fonte: IBDFAM