Para compensar a perda de receitas fruto da correção, a partir de 2017, da tabela do Imposto de Renda em 5%, a equipe econômica do Governo sugeriu em maio deste ano uma série de medidas, entre elas a incidência do IR sobre heranças superiores a R$ 5 milhões e sobre doações acima de R$ 1 milhão.
Atualmente, os bens e direitos adquiridos por herança e doação, de qualquer valor, estão isentos do Imposto de Renda, nos termos do art. 39, inciso XV, do Regulamento do Imposto de Renda (RIR/99).
O Governo defendeu, à época da proposta, que os países mais desenvolvidos do mundo têm tributação sobre heranças e doações. Justificou a medida na necessidade de debelar os efeitos negativos que a correção da tabela do IR provocaria nas contas públicas e de reduzir a desigualdade fiscal, que se perpetua com o modelo atual de isenção sobre heranças e doações.
Já prevendo a pecha de inconstitucionalidade, o Governo defendeu a proposta ao argumento de inexistir dupla tributação, já que os contribuintes poderão deduzir, da base de cálculo do IR, o valor do imposto já pago ao Estado a título de ITCMD (causa mortis e doações).
A compatibilidade da proposta como o modelo constitucional vigente, todavia, não é tão simples como fez parecer o Governo. A dedução prevista não é suficiente, pelo menos em exame prefacial da matéria, para selar a sorte desse novo imposto.
Tributaristas de peso têm afirmado a inconstitucionalidade do projeto. E três são as barreiras que precisam ser transpostas para que essa nova incidência receba a chancela de constitucionalidade:
(i) não pode configurar bitributação (ou bis in idem constitucionalmente desautorizado);
(ii) se for “imposto novo” deve observar a reserva de lei complementar; e
(iii) não poderá recair sobre fato gerador ou base de cálculo próprios dos impostos já previstos na Constituição.
Tecnicamente, não vejo a nova incidência como caso de bitributação, que é patologia fiscal que existe quando duas ou mais pessoas jurídicas de direito público tributam o mesmo contribuinte sobre o mesmo fato gerador. Isso ocorre, com certa frequência, quando dois ou mais municípios, todos supostamente detentores de legitimação impositiva, pretendem cobrar o ISS sobre um mesmo serviço.
No caso aqui retratado, a União tributará (por meio do IR) o acréscimo patrimonial decorrente da doação ou da herança, enquanto o Estado tributará (por meio do ITCMD) a transmissão patrimonial propriamente dita. São, portanto, materialidades distintas.
Já o bis in idem é fenômeno fiscal diverso da bitributação e ocorre quando a mesma pessoa jurídica de direito público tributa mais de uma vez o mesmo fato jurídico, o que estará legitimado se, e somente se, houver expressa autorização constitucional, como ocorre com o IR e a CSLL.
Também não vejo na proposta a presença de bis in idem. É bem verdade que o patrimônio herdado ou doado já constituiu, no passado, acréscimo patrimonial e sobre ele, certamente, já incidiu o imposto. Mas, o contribuinte, aquele que experimentou o aumento em seu patrimônio, era o doador ou o falecido. Havendo novo acréscimo, agora no patrimônio do donatário ou do sucessor (beneficiado pela herança), está justificada uma nova incidência do IR, sem que isso represente bis in idem, porque o fato gerador é diverso, uma nova aquisição de patrimônio.
Afastada as hipóteses de bitributação e bis in idem, resta aferir se a nova incidência configura “imposto novo” ou apenas a supressão de isenção do IR, prevista no art. 39, inciso XV, do Regulamento.
A União, nos termos do que dispõe o artigo 154, inciso I, da Constituição da República, pode instituir, “mediante lei complementar, impostos não previstos no artigo anterior, desde que sejam não cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos já discriminados nesta Constituição”.
Segundo o artigo 43 do Código Tributário Nacional (CTN), o fato gerador do IR é a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica da renda e sua base de cálculo é o montante, real, arbitrado ou presumido da renda ou provento auferido.
Portanto, qualquer acréscimo patrimonial, ainda que de ordem exclusivamente jurídica, autoriza a incidência desse imposto, que recairá sobre o montante que se acresceu ao patrimônio do beneficiário.
Sob esse prisma, não há dúvida de que a doação e a herança repercutem positivamente no patrimônio do beneficiário e, portanto, configuram, ao menos em tese, materialidade atingida pela incidência do IR. Já a base de cálculo prevista no projeto será o acréscimo patrimonial que exceder a R$ 5 milhões (no caso das heranças) e R$ 1 milhão (no caso de doações).
Portanto, a proposta contempla fato gerador e base de cálculo perfeitamente compatíveis com a redação do artigo 43 do CTN, não configurando a nova incidência um “imposto novo”, mas a supressão, pura e simples, da isenção prevista no art. 39, inciso XV, do RIR/99.
Não sendo “imposto novo”, não há que se perquirir se a nova incidência preenche, ou não, os requisitos do artigo 154, inciso I, da Constituição Federal de 1988 (se é não cumulativo e se tem fato gerador ou base de cálculo distintos dos impostos já previstos na Constituição).
Do ponto de vista jurídico, portanto, não há impeço, legal ou constitucional, à nova incidência do IR sobre heranças e doações. Por simples lei ordinária é possível suprimir a isenção prevista no artigo 39, inciso XV, do RIR/99, permitindo que o IR recaia sobre campo de incidência até então inexplorado por força da regra de desoneração tributária.
Embora não haja impedimento de ordem jurídica, não parece oportuna, nem recomendada, a nova incidência do IR, pelo menos, não sem antes repensarmos o modelo fiscal que queremos para o nosso país, que deve ser socialmente justo, capaz de equilibrar as contas públicas sem sufocar o crescimento econômico e os investimentos em infraestrutura e de propiciar uma correta e equitativa distribuição de renda.
O país atravessa um período de grave crise na economia, com recessão e retração de mercado. Aumento de impostos, nesse momento, tornará ainda mais acidentado o caminho para que o Brasil retome o tão esperado crescimento econômico e supere, de vez, o trauma deixado pelo desequilíbrio fiscal. Assim, embora legítimo o exercício do direito impositivo, a proposta é economicamente contraindicada e socialmente inoportuna.
Marcos Meira é advogado, procurador do Estado de Pernambuco, pós-graduado em Direito Tributário pela FGV e Mestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP.
Fonte: Conjur