As Jornadas de Direito Civil, promovidas pelo Conselho da Justiça Federal, por intermédio de seu Centro de Estudos Judiciários, são hoje o mais importante encontro de privatistas do Direito brasileiro. Desde a primeira edição, em setembro de 2002, ainda sob o impacto da promulgação do novo Código Civil brasileiro, bem como nas demais edições ocorridas em intervalos maiores ou menores, nelas se reúnem professores, membros de carreiras jurídicas de Estado (magistratura, advocacia pública, Defensoria Pública, Ministério Público), advogados e estudantes de pós-graduação em um ambiente plural, com o objetivo primordial de analisar e discutir proposições de enunciados interpretativos ao Código Civil.
Da primeira edição de 2002 à última, ocorrida nos dias 28 e 29 de setembro de 2015, na sede do Conselho da Justiça Federal, em Brasília, houve diversas alterações no procedimento e nos métodos de trabalho das jornadas, o que proporcionou análises mais criteriosas dos enunciados apresentados.
A aprovação das proposições tornou-se mais difícil, porque muitas das matérias já tinha sido objeto de enunciados nas edições anteriores. Ademais, a doutrina e as reformas legislativas resolveram diversos problemas interpretativos sobre o Código Civil. O atual espírito do Regimento Interno das jornadas é o de valorizar mais o debate, o congraçamento e a troca de experiências, do que simplesmente aprovar enunciados.
Outra mudança importante está na descaracterização da autoria de enunciados. Não há mais um “autor” de enunciado, na medida em que a identificação é hoje vedada pelo Regimento Interno. A ideia é que o enunciado seja da Comissão de Trabalho. Uma vez aprovado em plenário, transforma-se em enunciado das jornadas.
Reforça essa noção a perspectiva de que os enunciados são agora apreciados por revisores cegos (especialistas convidados pela coordenação das jornadas, que atuam como relatores) e depois votados nas Comissões de Trabalho, com ampla liberdade para modificação redacional, aglutinação com outros enunciados, supressões parciais e introdução de texto alheio aos fundamentos da proposição original.
As Jornadas de Direito Civil, embora se realizem em dois ou três dias, começam muito antes, por meio da revisão periódica do Regimento Interno, o que se dá com o aproveitamento das boas e más experiências da edição anterior, assim como pelos trabalhos de elaboração de editais de chamada para proposição de enunciados, definição de especialistas e organização da estrutura dos trabalhos, com a já tradicional conferência de abertura. Na edição de 2015, coube ao ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, esse importante mister.
A Comissão Científica das Jornadas tem-se conservado nas últimas quatro edições na pessoa do ministro Paulo de Tarso Sanseverino, do desembargador federal Rogério Fialho e dos professores Paulo Roque Khouri, Gustavo Tepedino, Ana Frazão e Otavio Luiz Rodrigues Junior, sempre com a coordenação-geral do ministro Ruy Rosado de Aguiar Junior, idealizador e criador das jornadas, cuja presença em todas as etapas do evento e de sua organização é determinante para o pleno êxito do evento.
Nesta última edição, o ministro Roberto Rosas, que havia integrado as primeiras Comissões Científicas, emprestou sua experiência e seus conhecimentos às jornadas na função de coordenador científico. O ministro João Otávio de Noronha, responsável pelo “renascimento” das jornadas como diretor do Conselho da Justiça Federal e, posteriormente, da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento dos Magistrados, tem sido o maior protagonista desse encontro científico.
Como se tornou tradição, os membros da Comissão Científica assumem a responsabilidade de coordenar um livro específico do Código Civil, com eventuais aglutinações, ao exemplo de Obrigações e Contratos e de Família e Sucessões, que se converteram em Comissões de Trabalho unificadas.
Em 2015, coube a Otavio Luiz Rodrigues, um dos subscritores desta coluna, a tarefa de coordenar a Comissão de Trabalho de Direito de Família e Sucessões, assim como já ocorrera na VI Jornada de Direito Civil, quando atuou ao lado do ministro Edson Fachin. Em ambas as edições, a indicação do coordenador da Comissão de Família e Sucessões deu-se por iniciativa dos outros membros, sem participação do indicado.
Na coordenação dessa Comissão de Trabalho, contou-se ainda com a coadjuvação de Carlos Alberto Dabus Maluf, professor titular de Direito Civil da USP, que exerceu a presidência dos trabalhos, e de Guilherme Calmon Nogueira da Gama, professor de Direito Civil da UERJ, como relator-geral.
A Secretaria-Geral da Comissão coube ao professor Eduardo Tomasevicius Filho, doutor de Direito Civil da USP e também coautor desta coluna. O professor e desembargador do TJ-SP Antonio Carlos Mathias Coltro também integrou a mesa de trabalhos como relator-geral adjunto. Dabus Maluf, Nogueira da Gama e Mathias Coltro emprestaram seus conhecimentos e experiências para a Comissão de Direito de Família e Sucessões, conferindo-se agilidade e rigor na condução de seus trabalhos.
Os enunciados recebidos foram distribuídos sem identificação de autoria aos especialistas convidados da Comissão de Trabalho, os quais elaboraram pequenos pareceres em que se recomendava a aprovação, a aprovação com nova redação, a aglutinação, a rejeição ou a prejudicialidade do enuniciado. Esses pareceres não foram previamente divulgados aos coordenadores da Comissão de Trabalho, muito menos aos demais participantes.
A Comissão de Trabalho instaurou-se no primeiro dia, registrando-se o quórum, que se manteve para o dia seguinte, conforme a regra do Regimento Interno, de modo a que se mantivesse a qualidade das votações e se exigisse a participação efetiva de todos até o final dos ofícios. As matérias foram submetidas a deliberação após a leitura do enunciado proposto e do respectivo relatório pelo especialista encarregado. Cada um deles ficou com um número específico de enunciados, conforme a afinidade da matéria ou intenção de assumir mais ou menos enunciados para relatoria. Após isso, sob coordenação do presidente, do relator-geral, do relator-geral adjunto e do secretário-geral, os membros deliberavam sobre as proposições. Em seguida, o enunciado, em sua redação original ou modificada, era submetido à votação.
A Comissão de Direito de Família e Sucessões recebeu 80 propostas de enunciados. Foi a Comissão de Trabalho que mais recebeu proposições entre todas as integrantes da VII Jornada de Direito Civil. Pela primeira vez na história das sete edições, foi possível a análise de todas as propostas apresentadas, tanto de Direito de Família, como também de Direito das Sucessões. Trata-se de um feito muito significativo, porque os temas de Direito das Sucessões eram usualmente prejudicados pela análise antecedente dos enunciados de Família. Os efeitos negativos para a qualidade dos debates e para a própria matéria sucessória eram evidentes.
Graças a uma condução mais pragmática, ao espírito de cooperação dos membros da Comissão de Trabalho e ao esforço sobre-humano de todos os participantes, que, inclusive, não pararam para almoçar no segundo dia, estendendo os ofícios até o horário da plenária, para que todos os enunciados pudessem ser analisados. Como recompensa pelo cancelamento do almoço, os participantes foram agraciados com alimento de alta caloria servido in loco, por providência da mesa dos trabalhos.
O tema sobre o qual mais se apresentaram propostas de enunciados foi em matéria de guarda, o que se justifica pelas sucessivas alterações ao Código Civil nesse tópico. Procurou-se esclarecer as diferenças entre guarda compartilhada e guarda alternada quanto à divisão do tempo. No mesmo sentido, dois enunciados deixavam bem claro que guarda compartilhada não dispensa a fixação do regime de visitas, tampouco exime o genitor do pagamento de pensão alimentícia.
Destacou-se ainda que, em se tratando de sobre alimentos avoengos, é possível a imposição de medidas diversas da prisão civil em regime fechado, considerando a peculiaridade da situação de cobrança de pensão de avós e a necessidade de observância do respeito à dignidade humana.
Outro enunciado importante cuida dos efeitos do registro de contrato de convivência no Cartório de Registro de Imóveis, para que se reconheça a necessidade de autorização do companheiro para a realização de contratos de fiança, alienação ou gravação de ônus real aos bens imóveis do casal, salvo se o regime escolhido de bens for o de separação absoluta, o que conferirá maior segurança jurídica nas transações imobiliárias e maior proteção à família.
Aprovou-se enunciado que declara ser possível a averbação do mandado de divórcio, enquanto se discutem aspectos decorrentes da dissolução do casamento. No mesmo sentido, outro enunciado esclareceu que é de um ano o prazo para anulação da partilha amigável judicial, decorrente de dissolução de sociedade conjugal ou de união estável.
A Comissão de Direito de Família e Sucessões também aprovou enunciado no qual se declara a existência e a validade do casamento de pessoas do mesmo sexo, com o intuito de harmonizarem-se os entendimentos jurisprudenciais sobre o tema. Do mesmo modo, aprovou-se enunciado sobre a possibilidade de pessoas do mesmo sexo registrarem os filhos gerados por técnicas de reprodução assistida sem a necessidade de ação judicial, nos termos da regulamentação das corregedorias locais, sendo mais um passo no tratamento igualitário entre as pessoas.
Em se tratando de Direito das Sucessões, a comissão analisou a possibilidade de representação nos casos de comoriência, reconhecendo-se a hipótese em que essa ocorre envolvendo ascendente e descendente, beneficiando-se os demais descendentes e os filhos dos irmãos. Por meio de mais um enunciado, deixou-se claro que o regime de bens no casamento somente interfere na concorrência sucessória do cônjuge com descendentes do falecido.
Quanto aos testamentos, formulou-se enunciado sobre testamento hológrafo, para esclarecer que este se torna ineficaz em caso de convalescença do testador, caso não seja refeito pelas vias ordinárias em até 90 dias quando podia fazê-lo. Por fim, aprovou-se importante enunciado que consagra a possibilidade de realização de inventário extrajudicial no qual se fez testamento, quando todos os herdeiros forem capazes e concordes com os seus termos, o que proporciona grande economia de tempo, tal como se obteve com essa prática desde a promulgação da lei do divórcio e inventário extrajudiciais.
Ao término dos trabalhos da Comissão de Direito de Família e Sucessões, aprovaram-se 15 enunciados. Foi a Comissão de Trabalho que mais aprovou enunciados na VII Jornada de Direito Civil. Quando submetidos à plenária, apenas um enunciado, relativo ao tema da guarda compartilhada, foi rejeitado pelos membros de todas as comissões reunidos na tarde do dia 29 de setembro de 2015. Comparativamente às demais comissões, a de Família e Sucessões foi a que menos teve enunciados rejeitados na votação plenária. Esse fato reflete o rigor nas votações para aprovação e a intensidade dos debates internos na comissão.
A seguir, apresentam-se os enunciados aprovados, distribuídos pelo tema específico, com uma pequena nota sobre a votação e o tipo de alteração levada a efeito na redação original:
1. Prisão civil/alimentos avoengos
“Deve o magistrado, em sede de execução de alimentos avoengos, analisar as condições do(s) devedor(es), podendo aplicar medida coercitiva diversa da prisão civil ou determinar seu cumprimento em modalidade diversa do regime fechado (prisão em regime aberto ou prisão domiciliar) se o executado comprovar situações que contraindiquem o rigor na aplicação desse meio executivo e o torne atentatório à sua dignidade, como corolário do princípio de proteção aos idosos e garantia à vida.”
Proposta original: aprovada, por maioria (48 votos).
2. Inventário extrajudicial com testamento
“Após registrado judicialmente o testamento e sendo todos os interessados capazes e concordes com os seus termos, não havendo conflito de interesses, é possível que se faça o inventário extrajudicial”.
Proposta com nova redação: aprovada, por maioria (42 votos).
3. Casamento entre pessoas do mesmo sexo
“É existente e válido o casamento entre pessoas do mesmo sexo”.
Proposta com nova redação: aprovada, por maioria (40 votos)
4. Expedição de mandado de averbação de divórcio
“Transitada em julgado a decisão concessiva do divórcio, a expedição do mandado de averbação independe do julgamento da ação originária em que persista a discussão dos aspectos decorrentes da dissolução do casamento”.
Proposta com nova redação: aprovada, por maioria (56 votos).
5. Guarda compartilhada/divisão do tempo
“A distribuição do tempo de convívio na guarda compartilhada deve atender precipuamente ao melhor interesse dos filhos, não devendo a divisão de forma equilibrada, a que alude o § 2˚ do art. 1.583, do Código Civil, representar convivência livre ou, ao contrário, repartição de tempo matematicamente igualitária entre os pais”.
Proposta com nova redação: aprovada, por maioria (54 votos).
6. Guarda compartilhada/divisão do tempo
A divisão, de forma equilibrada, do tempo de convívio dos filhos com a mãe e com o pai, imposta na guarda compartilhada pelo § 2° do artigo 1.583 do Código Civil, não deve ser confundida com a imposição do tempo previsto pelo instituto da guarda alternada, pois esta não implica apenas a divisão do tempo de permanência dos filhos com os pais, mas também o exercício exclusivo da guarda pelo genitor que se encontra na companhia do filho”.
Proposta com nova redação: aprovada, por maioria (50 votos).
7. Direito de visitas na guarda compartilhada
“A guarda compartilhada não exclui a fixação do regime de convivência”.
Proposta com nova redação: aprovada, por maioria (51 votos).
8. Guarda compartilhada/divisão do tempo
“O tempo de convívio com os filhos deve ser dividido de forma equilibrada com a mãe e com o pai” deve ser entendido como divisão proporcional de tempo, da forma que cada genitor possa se ocupar dos cuidados pertinentes ao filho, em razão das peculiaridades da vida privada de cada um”.
Proposta com nova redação: aprovada, por maioria (39 votos).
9. Guarda compartilhada/alimentos
“A guarda compartilhada não implica ausência de pagamento de pensão alimentícia”.
Proposta com nova redação: aprovada, por maioria (55 votos).
10. Registro de nascimento
“É possível o registro de nascimento dos filhos de pessoas do mesmo sexo originários de reprodução assistida, diretamente no Cartório do Registro Civil, sendo dispensável a propositura de ação judicial, nos termos da regulamentação da Corregedoria local”.
Proposta com nova redação: aprovada, por maioria (42 votos).
11. Concorrência do cônjuge supérstite com descendentes
“O regime de bens no casamento somente interfere na concorrência sucessória do cônjuge com descendentes do falecido”.
Proposta com nova redação: aprovada, por maioria (43 votos).
12. Contrato de convivência
“O registro do contrato de convivência no Livro 3 do Cartório de Registro de Imóveis implica exigência de autorização do companheiro para realização de contratos de fiança e para a alienação ou a gravação de ônus real aos bens imóveis do casal, salvo se o regime escolhido de bens for o de separação absoluta”.
Proposta com nova redação: aprovada, por maioria (41 votos).
13. Direito de representação na comoriência
“Nos casos de comoriência entre ascendente e descendente, ou entre irmãos, reconhece-se o direito de representação aos descendentes e aos filhos dos irmãos”.
Proposta com nova redação: aprovada, por maioria (43 votos).
14. Testamento hológrafo
“O testamento hológrafo simplificado, previsto no art. 1.879 do Código Civil, perderá sua eficácia se, nos 90 dias subsequentes ao fim das circunstâncias excepcionais que autorizaram a sua confecção, o disponente, podendo fazê-lo, não testar por uma das formas testamentárias ordinárias”.
Proposta com nova redação: aprovada, por maioria (52 votos).
15. Anulação de partilha
“O prazo para exercer o direito de anular a partilha amigável judicial, decorrente de dissolução de sociedade conjugal ou de união estável, se extingue em 1 (um) ano da data do trânsito em julgado da sentença homologatória, consoante dispõem o artigo 2.027, parágrafo único do Código Civil de 2002 e o artigo 1.029, parágrafo único do Código de Processo Civil (art. 657, parágrafo único, do Novo CPC).”
Proposta com nova redação: aprovada, por maioria (38 votos).
Encerrados os trabalhos, os membros da Comissão de Direito de Família e Sucessões congraçaram-se com muita alegria. Foram dois dias de intensos debates e votações exaustivas. A despeito de expectativas quanto a conflitos internos, os membros da Comissão de Trabalho tiveram atuação elegante e focada no caráter científico do evento.
Tanto o Direito de Família quanto o Direito de Sucessões passam por enormes mudanças, a maior parte delas decorrentes do câmbio social dos costumes, sendo fundamental a serenidade e a reflexão dos juristas para que haja uma adequada acomodação do fato social no universo normativo, jurisprudencial e doutrinário. A sétima edição das Jornadas de Direito Civil, nessas matérias, deixou um saldo profundamente positivo e que servirá de inspiração para os futuros encontros dos privatistas brasileiros.
Eduardo Tomasevicius Filho é Professor Doutor do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP.
Otavio Luiz Rodrigues Junior é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo).
Fonte: Conjur