Por Fernanda Maria Alves Gomes*
A presente reflexão é feita a partir das propostas de enunciado apresentadas na I Jornada de Direito da Seguridade Social promovida pelo Conselho da Justiça Federal em junho de 2023 e que tratavam da aposentadoria programada solicitada por pessoa trans.
A proposta 6.587 apresentada junto à Comissão II que tratava do Regime Geral (RGPS), tinha a seguinte redação: Para os benefícios programáveis da Previdência Social, será observada a identidade de gênero comprovada no momento da DER para as pessoas transgêneras, transexuais e travestis.
Já a proposta 6504, de nossa autoria, foi discutida na Comissão III responsável por analisar as Prestações do Regime Geral de Previdência Social e tinha o seguinte teor: a averbação da alteração do gênero no registro de pessoa trans configura ato jurídico perfeito e a certidão atualizada é instrumento hábil para comprovar o sexo e a idade do segurado no pedido de aposentadoria, segundo as regras para aquele sexo e independente da alteração do prenome, que é facultativa.
Verifica-se que as duas propostas se alinham no intuito de garantir os direitos das pessoas trans junto à Previdência Social, considerando que os artigos 48, 51 a 53 da Lei 8213/91 estabelecem critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria conforme o sexo do segurado.
É importante recapitular que o direito das pessoas trans se deu no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.275 e o Supremo Tribunal Federal decidiu que o reconhecimento do gênero conforme a autoidentificação das pessoas é um direito fundamental relativo ao livre desenvolvimento da personalidade. Assim, nada mais coerente que caso ocorra a retificação do sexo no registro civil de pessoa trans (independente da alteração do prenome que é facultativa), o segurado poderá requerer sua aposentadoria conforme as regras do gênero que consta na certidão atualizada.
Note-se que o Provimento 73/2018 do Conselho Nacional de Justiça regulamentou o procedimento extrajudicial, permitindo que as pessoas trans alterem o prenome e/ou gênero em cartórios do registro civil de pessoas naturais em qualquer lugar do Brasil, independe de prévia autorização judicial ou da comprovação de realização de cirurgia de redesignação sexual e/ou de tratamento hormonal, assim como de apresentação de laudo médico ou psicológico, conferindo celeridade e praticidade à retificação.
A certidão materializa a retificação registral, ato jurídico perfeito cuja desconstituição é excepcional, e será utilizada para alterar os demais documentos da pessoa trans, como CPF, RG, passaporte, título de eleitor, CTPS, NIT e CNIS. Dessa forma, também deve ser prova suficiente para fins de concessão de benefícios previdenciários como a aposentadoria programada.
Portanto, a autoidentificação voluntária deve prevalecer também para fins previdenciários e dispensar tratamento diferente em razão do gênero que consta no registro civil viola o entendimento do STF, os princípios da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III, da CF/88), da igualdade material (artigo 5º, caput, da CF/88), da não discriminação (artigo 3º, inciso IV, da CF/88) e autodeterminação sexual, bem como a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Declaração de Princípios de Yogyakarta.
As propostas de enunciado foram selecionadas nas discussões das comissões e ao serem submetidas ao plenário da Jornada, a primeira foi aprovada com 72% dos votos, e a segunda rejeitada por 64% dos votantes, provavelmente por entenderem que o enunciado que fora aprovado era suficiente para garantir à pessoa trans o direito a aposentadoria conforme a identidade de gênero comprovada no momento da data de entrada do requerimento.
Assim, até que advenha regramento específico que considere as peculiaridades do segurado trans e sua expectativa de vida, que segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) [1] é de 35 anos; a regra aplicável para a concessão dos benefícios programáveis deve privilegiar a identidade de gênero ostentada perante a sociedade e comprovada pela certidão retificada do registro civil, não cabendo ao Estado impedir ou duvidar desse direito, apenas protegê-lo. Já se vislumbra que o passo seguinte será definir parâmetros para o segurado não binário.
Conclui-se que o inovador enunciado aprovado na Jornada resguarda os direitos das pessoas trans em relação à Previdência Social e deu continuidade à sua consolidação histórica no mês do orgulho LGBTQIAPN+ .
[1] https://antrabrasil.org/tag/cidh/
Fernanda Maria Alves Gomes é registradora civil de pessoas naturais em Fortaleza (CE) e mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco.
Fonte: Conjur