Capacidade, dignidade e a Lei 13.146/6.7.2015.
Quando Kant afirmou de forma inovadora, no inicio do século XIX, que as coisas têm preço, e as pessoas dignidade, fazendo novas assim as noções de dignidade e indignidade, não imaginava o quanto isto modificaria o pensamento contemporâneo e faria nascer o que hoje chamamos de Direitos Humanos. Portanto, a expressão dignidade da pessoa humana é uma criação Kantiana (ele usou originalmente dignidade da natureza humana), está inscrito e tornou-se a palavra de ordem de todos os ordenamentos jurídicos contemporâneos. A dignidade da pessoa humana além de ser um macro princípio constitucional, é o vértice do Estado democrático do Direito.
Em razão deste valor e princípio jurídico que o Direito de Família pôde reescrever sua história de injustiças e incluir todas as categorias de filhos e famílias no ordenamento jurídico brasileiro. Em nome da dignidade da pessoa humana todos os filhos e famílias são legítimos e devem receber proteção do Estado (In. Dicionário de Direito de Família e Sucessões. Ilustrado. Saraiva, pag. 229). E assim, em toda relação jurídica, o sujeito deve ter preponderância e maior valor sobre o objeto da relação.
É a compreensão da dignidade da pessoa humana que começou-se a considerar e a valorizar a humanidade de cada sujeito em suas relações pessoais, sociais e consigo mesmo. O sujeito de direitos, como sujeito de desejos que também é, passou a ser reconhecido como um sujeito desejante, isso é, o direito a ser humano com todas as suas mazelas e idiossincrasias. Isto nos remete a repensar a capacidade e a responsabilidade de cada sujeito de direito. E foi assim que os institutos de proteção aos incapazes, guarda, tutela e curatela ganharam novas perspectivas.
A expressão guarda, por veicular um significante muito mais de objeto do que de sujeito, tende a desaparecer. Por isto o PLS 470/2013, elaborado pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e apresentado pela senadora Lídice da Mata (PSB-BA), substituiu tal expressão por convivência familiar. De fato a humanidade que há em cada criança e adolescente já não comporta que ela seja “guardada“ pelos pais. Foi também em respeito a esses menores de idade que, mesmo com esse significado pejorativo, a guarda tornou-se obrigatoriamente compartilhada, quebrando assim uma estrutura de poder e beneficiando os filhos.
A tutela, instituto de proteção aos menores incapazes, isto é, aos menores de 18 anos cujos pais faleceram ou desapareceram, deve ser nomeado um tutor, também sofreu alteração. O CCB 2002 inovou ao criar a figura do pró-tutor, que significa um reforço à tutela, como se fosse um tutor adjunto. Tudo isto em nome de proteger e dar mais valor ao menor incapaz.
Em nome da dignidade e da humanidade de cada sujeito é que também o instituto da curatela vem sendo repensado e sendo visto por novas perspectivas. E assim, aquilo que a jurisprudência já vinha concedendo, está prestes a se tornar lei: foi aprovado na Câmara dos Deputados, dia 16 de julho de 2015, o PL que institui a Curatela compartilhada. Certamente o Senado também a aprovará, assim como todos os projetos de lei que tragam esse conteúdo de valorização e facilitação de vida dos sujeitos incapazes. Mas nem precisa desse PL, pois o artigo 1775-A, introduzido pela Lei 13.146/2015 já estabelece a curatela compartilhada. Na prática muitos curadores, assim como na guarda, já compartilham a curatela de seus pais ou parentes. É uma forma de suavizar o árduo trabalho com o exercício da curatela e interdições, e dividir responsabilidades.
Esta nova roupagem da curatela insere-se também no contexto e noção de cidadania, inclusão e evolução do pensamento psiquiátrico. Quando se interdita alguém, retira-lhe a capacidade civil e consequentemente expropria-se sua cidadania. O curatelado, ou interditado, é retirado do lugar de sujeito de desejo e sujeito social. A própria expressão curatelado e interditado já veiculam significados e significantes de exclusão. No ambiente da psiquiatria recebem a denominação de “Portadores de sofrimentos psíquico”, introduzindo um novo significante para as pessoas interditáveis, suavizando assim o preconceito e o estigma que recaem, principalmente, para os denominados loucos. A curatela, ou melhor, a interdição da pessoa só deveria ser feita como último recurso, uma vez que significa simbolicamente uma “morte civil”. O filósofo francês, Louis Althusser em seu livro O futuro dura muito tempo, em que relata sua própria história, trás um dos melhores depoimentos e reflexões sobre o assunto, pois fala da loucura de dentro dela, de quem viveu o processo de interdição inimputabilidade, o que ele também considerou uma morte em vida. Machado de Assis no conhecido conto O Alienista também já tinha nos proporcionado esta reflexão sobre os limites da razão e desrazão.
A consolidação e reconhecimento do valor e princípio da dignidade da pessoa humana vem agora na Lei 13.146 de 6 de julho de 2015, que instituiu o Estatuto da Pessoa com Deficiência, que alterou e revogou vários artigos do Código Civil relativos à capacidade da pessoa traduzindo em seu texto toda a evolução e noção de inclusão social: Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e afetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas (artigo 2º). Portanto, ela não só alterou, mas também revolucionou ao introduzir uma nova expressão jurídica: "Tomada de Decisão Apoiada", que é um novo modelo jurídico promocional das pessoas com deficiência. Tal expressão traduz a recomendação da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (artigo 12.3 Decreto 6.979/09). Este modelo já vigora na Itália desde 2004 (Lei 6), país em que nasceu a chamada luta antimanicomial, que era o movimento pela cidadania dos loucos. Também o Código Civil Argentino que passará a vigorar em 2016 (artigo 43) já prevê esta nova categoria jurídica.
E assim a Lei 13.146/2015 que vigorará em 180 dias isto é, em 5 de janeiro de 2016, altera o instituto da capacidade civil, revogando artigos do CCB (3º, 4º 228, 1518, 1548, 1550 §2º, 1557, 1767, 1768, 1769, 1771, 1772, 1775-A, 1777) e acrescenta o novo conceito para capacidade civil, no artigo 1783-A do CCB: “A tomada de decisão apoiada é o processo pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar –lhes apoio na tomada de decisões sobre atos de vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessárias para que possa exercer sua capacidade .” Em outras palavras, agora há uma alternativa para a curatela, que só deve ser requerida como último caso. Cumpra-se aqui o que Jacques Lacan já havia anunciado há muitas décadas “Toda pessoa enquanto sujeito deve se responsabilizar pelos seus atos.” Esta nova compreensão da capacidade civil é uma boa tradução e incorporação da noção e valorização da dignidade e dignificação do humano e alguns passos adiante da noção original de Immanuel Kant em sua clássica obra Fundamentação da Metafisica dos Costumes.
Rodrigo da Cunha Pereira é presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), doutor (UFPR) e mestre (UFMG) em Direito Civil, autor de vários artigos e livros em Direito de Família e Psicanálise e advogado em Belo Horizonte.
Fonte: Conjur