Em 13 de março, foi publicada no Diário Oficial da União a Lei 13.811/2019, que altera o artigo 1.520 do Código Civil buscando impossibilitar, em qualquer caso, o casamento de menores de 16 anos.
A antiga redação do artigo era assim formulada:
Art. 1.520. Excepcionalmente, será permitido o casamento de quem ainda não alcançou a idade núbil (art. 1517), para evitar imposição ou cumprimento de pena criminal ou em caso de gravidez.
É verdade que a imensa maioria da doutrina especializada já enxergava como tacitamente revogada a primeira exceção trazida pelo supratranscrito dispositivo. Isto porque a Lei 11.106/2005 aboliu expressamente o inciso VII do artigo 107 do Código Penal, o qual previa a infame possibilidade de o casamento da vítima com o seu abusador extinguir a punibilidade do crime cometido[1].
Assim sendo, como a redação do artigo 1.520 exigia que a primeira exceção à regra da idade núbil (artigo 1.517) se desse para essa finalidade (evitar imposição ou cumprimento de pena criminal) e, considerando que tal objetivo já não poderia ser atingido (ante a entrada em vigor da Lei 11.106/2005), dever-nos-íamos, pois, considerar tacitamente revogada dita hipótese[2].
De modo que, assim entendido, a lei recém-publicada veio apenas para impedir a segunda exceção à regra. Ou seja, a permissão para casar antes de atingida a idade núbil em caso de gravidez dos nubentes.
Historicamente, a justificativa para a previsão legal dessa possibilidade sempre foi a de que, havendo gravidez, naturalmente uma família se formaria com a chegada do novo membro e, dessa forma, não fazia sentido que a lei lutasse contra algo que já se consubstanciou no plano dos fatos.
Parecia mais salutar, portanto, que, malgrado a pouca idade de um ou de ambos os futuros pais, o casamento pudesse vir a ter lugar, até como forma de propiciar à criança que estava por chegar ao mundo o seu direito a uma convivência familiar saudável, bem como estimular a paternidade responsável.
Olhando através dos olhos do nascituro, tudo parecia de acordo com o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente. Havia, contudo, quem preferisse enxergar os fatos pelos olhos de outra criança ou adolescente que igualmente merecia tutela, a dona do ventre. Esse parece ter sido o olhar que motivou a apresentação do PL, culminando na alteração do Código Civil.
Ao buscarmos a justificação do Projeto de Lei 7.119/2017[3], vemos que sua propositora, a deputada federal Laura Carneiro (PMDB-RJ), defendeu existir uma clara correlação “mais que atestada pela literatura especializada” entre o casamento precoce e a gravidez na adolescência, o que irremediavelmente causaria abandono escolar e exploração sexual, gerando, desta maneira, uma urgente necessidade de uma resposta estatal enérgica, com vistas a garantir a proteção da dignidade das crianças e jovens.
Para justificar sua afirmação, a parlamentar menciona, sem fazer menção a referências bibliográficas, dados colacionados por um estudo capitaneado pela ONG Promundo, indicado apenas pelo ano de publicação.
De posse dos dados citados na justificação do PL, fizemos a busca pelo referido estudo e, entre outros artigos e relatórios sobre casamento infantil e abusos sexuais, encontramos o que parece ser o trabalho mencionado pela parlamentar.
O relatório em questão fora publicado em julho de 2015 e é intitulado “Ela vai no meu barco: Casamento na infância e adolescência no Brasil. Resultados de uma pesquisa de métodos mistos”[4].
Baseado no Censo do IBGE de 2010[5], os autores estimam, por conta própria, que o Brasil ocupa o quarto lugar no mundo em números absolutos de mulheres casadas até a idade de 15 anos, tendo 877 mil mulheres com idade entre 20 e 24 anos que se casaram até os 15[6].
Considerando esses números alarmantes, ninguém duvida da boa intenção parlamentar na proteção dos hipossuficientes. Mister salientar, contudo, que tais números estão longe de ser um consenso como a deputada faz parecer em sua “exposição de motivos”.
Para que o leitor não permaneça semiesclarecido, é importante aclarar que não fora realizado Censo pelo IBGE após o ano de 2010, o que somente ocorrerá no ano que vem, 2020, quando, então, teremos números oficiais e nacionalizados sobre a matéria.
Os números que a deputada oferece nada mais são do que uma estimativa não oficial feita por uma ONG, estimativa que parece não levar em consideração o fato de que, quando comparados os dados oficiais entre 1992 e 2002, o que se verificou foi um notável decréscimo em relação aos casamentos de mulheres de até 15 anos[7].
O método de pesquisa utilizado pela Promundo consistiu em realizar 60 entrevistas semiestruturadas em profundidade com diferentes grupos nas áreas urbanas de Belém e São Luís. Além disso, o estudo afirma ter realizado 50 entrevistas com “informantes-chave” em níveis estaduais, federais, regionais (América Latina) e internacionais e, por fim, noticia ter feito um questionário domiciliar quantitativo com 145 homens (de 24 a 60 anos) e 150 meninas (de 12 a 18 anos) (não necessariamente casados) em São Luís.
É com base nesse universo de pessoas que a Promundo faz a estimativa que embasa o PL 7.119/2017.
O fato é que, fundamentado em números fidedignos ou não, o projeto virou lei, e agora, ao buscarmos pelo artigo 1.520 do Código Civil, encontramos a seguinte redação:
Art. 1.520. Não será permitido, em qualquer caso, o casamento de quem não atingiu a idade núbil, observado o disposto no art. 1.517 deste Código. (Redação dada pela Lei nº 13.881, de 2019)
O novo texto do dispositivo foi pensado para não deixar dúvidas de que, em nenhum caso, será permitido o casamento entre menores de 16 anos.
É no mínimo curioso, no entanto, que ao nos aprofundarmos no já tantas vezes citado estudo feito pela ONG Promundo encontremos no tópico “Resultados: Destaques” o seguinte:
Os dados coletados confirmam a natureza majoritariamente informal e consensual das uniões envolvendo meninas menores de 18 anos nos contextos que são foco desta pesquisa[8]
Ora, se as uniões precoces têm majoritariamente natureza informal, não é de casamento que estamos tratando, mas, sim, de união estável. Ato-fato jurídico que não se submete ao plano da validade da escada ponteana nem necessita de ato solene para operar seus efeitos.
A pergunta que queda, portanto, é: a alteração do artigo 1.520 é hábil a impedir também as uniões estáveis para quem não atingiu a idade núbil?
Se a resposta for “não”, ao que parece, a lei combateu o “inimigo” errado e muito pouco ou nada mudará na realidade das pessoas que visava proteger.
Se, de outro lado, a resposta for “sim”, a consequência pode ser ainda mais danosa, uma vez que extirpará justamente da pessoa hipossuficiente por excelência, nestes casos, direitos e garantias que o reconhecimento de uma união possui, como, por exemplo, o direito a receber assistência financeira do outro companheiro, direitos previdenciários e até mesmo sucessórios.
Se dissermos que também a união estável não será permitida para quem não atingiu a idade núbil, estaremos dizendo, por consequência, que, se uma menor viver em união fática com o genitor do seu filho e ele vier a morrer, aquela menor não terá qualquer direito a receber uma pensão por morte nem tampouco conservará o direito de ser herdeira do pai de seu filho, o que hoje lhe é garantido pelo artigo 1.829 do CC, e não mais pelas regras do artigo 1.790.
Reconheçamos que isso definitivamente não a protege, mas, ao contrário, agride os direitos dessa jovem mãe.
Daí a razão deste pequeno artigo: responder se a lei em comento também impossibilitou o reconhecimento da união estável entre menores de 16 anos. Para tanto, analisemos o artigo 1.723 do vigente Código Civil brasileiro e seus respectivos parágrafos.
Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
§ 1º A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente.
§ 2º As causas suspensivas do art. 1.523 não impedirão a caracterização da união estável.
Vemos, portanto, que o dispositivo nos aponta em quais casos a união estável não se constituirá e, para tanto, faz remissão aos impedimentos do casamento constantes no artigo 1.521, já deixando claro que, no caso de a pessoa casada (hipótese de proibição trazida pelo inciso VI) se encontrar separada de fato, a união estável poderá ser reconhecida.
Alerta, ainda, que também não impedirá a união estável a ocorrência das causas suspensivas, hipóteses que não geram nulidade do casamento, mas penas impõem, por regra do artigo 1.641, o regime da separação obrigatória.
Ao buscarmos o artigo 1521, encontramos as seguintes hipóteses de impedimento:
Art. 1.521. Não podem casar:
I – os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil;
II – os afins em linha reta;
III – o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante;
IV – os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive;
V – o adotado com o filho do adotante;
VI – as pessoas casadas;
VII – o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte.
Nota-se que não há em qualquer dos incisos do artigo 1.520 menção ao impedimento de pessoas menores de 16 anos casarem-se.
Assim, ao alterar apenas o artigo 1.520 sem incluir qualquer inciso no artigo 1.521 que trate da vedação ao casamento de menores de 16 anos, e, considerando que o artigo 1.723 se utiliza das hipóteses de vedação consagradas pelo artigo 1.521, sem fazer remissão qualquer ao artigo 1.520, recém-alterado, para estabelecer os impedimentos da união estável, parece-nos que lei não proibiu o reconhecimento da família de fato.
Isso porque, como se sabe, não é possível suprimir direitos por analogia e, assim sendo, seria necessária a inclusão da hipótese de impedimento no rol do artigo 1.521, ou, por outra via, que se incluísse um parágrafo ao artigo 1.723 que fizesse menção à vedação trazida pela nova redação do artigo 1.520. Só assim poder-se-ia dizer que também foi vedado o reconhecimento da união estável para quem não atingiu idade núbil.
Certamente, essa e outras dúvidas, como, por exemplo, se o impedimento trazido pela nova redação da Lei 13.811/2019 gera nulidade ou anulabilidade do ato perfectibilizado à sua revelia, movimentarão os tribunais nos próximos tempos. É aguardar e torcer por dias de mais segurança jurídica no Direito das Famílias.
[1] Nestes termos: “Art. 107 – Extingue-se a punibilidade: (…) VII – pelo casamento do agente com a vítima, nos crimes contra os costumes, definidos nos Capítulos I, II e III do Título VI da Parte Especial deste Código”.
[2] Em nossa opinião, no entanto, é apenas quando a Lei 13.718/2018 altera o Código Penal para tornar pública incondicionada a natureza da ação penal dos crimes contra a liberdade sexual que tal possibilidade deixa definitivamente de existir. Isto porque, antes dessa medida, os referidos crimes comportavam o instituto do perdão judicial que poderia ser aplicado, por exemplo, a uma vítima de 15 anos.
[3] Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=F17DAB70DE6A831C697F74DA2EC32BCF.proposicoesWebExterno2?codteor=1533566&filename=PL+7119/2017>.
[4] TAYLOR, Alice; LAURO, Giovanna; SEGUNDO, Marcio; et al. Resultados de uma Pesquisa de Métodos Mistos. Disponível em: <https://promundo.org.br/wp-content/uploads/sites/2/2015/07/SheGoesWithMeInMyBoat_ExecutiveSummary_PT_postprint_web1.pdf>.
[5] IBGE, Censo Demográfico 2010. Disponível em: <http://censo2010.ibge.gov.br>.
[6] TAYLOR, Alice; LAURO, Giovanna; SEGUNDO, Marcio; et al. Resultados de uma Pesquisa de Métodos Mistos. Disponível em: <https://promundo.org.br/wp-content/uploads/sites/2/2015/07/SheGoesWithMeInMyBoat_ExecutiveSummary_PT_postprint_web1.pdf>.
[7] Cfr. <https://sidra.ibge.gov.br/Tabela/360#resultado>.
[8] TAYLOR, Alice; LAURO, Giovanna; SEGUNDO, Marcio; et al. Resultados de uma Pesquisa de Métodos Mistos. p. 3.
Raphael Carneiro Arnaud Neto é professor de Direito Civil do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e da Escola Superior de Advocacia do Distrito Federal. Mestre e doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade de Lisboa, vice-presidente da Comissão Nacional de Direito e Arte do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam) e diretor científico e acadêmico do IBDFam-PB.
Fonte: Conjur
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