“Sou uma observadora da alma humana”, diz a juíza. Mas como assim? Juiz não é para aplicar a lei? Quem observa a alma humana é psicólogo, filósofo, padre, pastor, outro profissional. Juiz é para equacionar conflitos. Direitos e deveres. Não é assim? Depende. Sobretudo se for juiz de Vara de Família, onde a sala de audiências é muitas vezes o único espaço de comunicação entre o casal. Mas depende de quê?
Assistimos crescente tendência da sociedade para judicializar o afeto. Casais, pais e filhos, irmãos, sogros e tios, esposos, namorados e amantes, famílias transferem suas decisões, responsabilidades e impasses para o juiz. Querem transformar o afeto ou o desafeto em sentenças.
Naquele caso, o casal brigava sobre qual escola o filho de 9 anos deveria estudar. Brigavam. Entraram na Justiça e pediram que a juíza decidisse. Ela se recusou. Não era da competência do Poder Judiciário. Naquele outro, a esposa vai à Justiça com único objetivo. Que se colocasse na certidão de divórcio que ela fora traída pelo marido. O culpado era ele. “Nunca entendi a finalidade de se determinar quem é o responsável pelo fim do afeto. Uma sentença declarando a traição não alivia qualquer dor”, pensou a juíza. Não concedeu.
Sem falar no caso em que tendo o bebê nascido vivo e imediatamente morrido, os pais teriam antes de obter a certidão de óbito, fazer o registro do nascimento. Óbvio e legalmente obrigatório. Mas um queria que o bebê morto, e ainda não enterrado, se chamasse Caíque com C. O outro queria Kaíque com K. Brigavam, enquanto o bebê aguardava. “Perplexa, só queria acabar imediatamente aquele ritual macabro que tomou conta de minha sala”, sentiu a juíza.
Houve caso em que a filha entrou na Justiça contra a mãe, porque queria conhecer o pai desconhecido e a mãe não revelava. Revelou. Um filho abandonado, sem nunca ter tido registro completo, com mãe pobre falecida, pai desconhecido, irmãos dispersos, sozinho no mundo, entrou na Justiça para que lhe dessem uma certidão de nascimento qualquer. Ele só sabia que se chamava Gabriel. Afinal estava ali, vivo. Existia. Não era culpado pela ausência de registro. Era vítima. Sem isto não podia nem obter a cesta básica.
“Agora, doutora, inventaram que eu teria que fazer exames para provar o dia em que nasci!” E ameaçava com seu próprio destino. Se a juíza não o atendesse e não resolvesse o problema dele ali, ele ia virar traficante no Morro do Alemão. Desatinado. A juíza o recebeu. Mesmo sem audiência.
“Posso pedir uma coisa, doutora? Pois não. Dá pra eu nascer dia 1º de dezembro. É que dia 20 de dezembro fica muito perto do Natal e todo mundo esquece meu aniversário. Claro que dá”. Mandou que na certidão de Gabriel, agora, Silva constasse que nascera dia 1º de dezembro de 1991. No livro A vida não é justa, a juíza Andréa Pachá relata impasses, maiores do que a nossa imaginação possa fabricar. Para entendê-los temos que combinar: (a) a juíza como intérprete e aplicação da lei, (b) a sensível observadora da alma humana que precisa ser, sem o que não exerce bem sua função (c), e os complexos caminhos da decisão judicial.
Não é só de lei que se faz a Justiça. O livro é um making of da Justiça no Direito de Família. Revela o processo de convicção do juiz, como formula a sentença. O que deve levar em consideração além da lei e dos fatos? O que influencia a sua decisão? Até que ponto deve se deixar levar por suas intuições? Por seus valores pessoais? Até que ponto, pelo fato de ser mulher, corre o risco de parcialidades, ao solucionar conflitos entre homem e mulher? Onde termina a juíza e começa a ativista feminista?
Mais de dez anos de casamento. Um histórico de violência permanente. O marido sistematicamente espancava a mulher. Daquela vez fora pior. Polícia, delegacia, corpo de delito. A advogada a convencera a pedir separação. Na hora, surpresa, já na audiência, voltou atrás. “Doutora, ele me prometeu, jurou mesmo que nunca mais me encosta a mão. Eu prefiro acreditar”.
“Pensei em fazer um discurso sobre igualdade e justiça”, disse a juíza de si para sigo mesmo. Desistiu. Não era o local adequado. Sobretudo porque a mulher completou: “A gente não escolhe onde coloca o desejo”. A juíza registrou. Está no livro e na sentença.
Joaquim Falcão é professor da Escola de Direito da FGV.
Fonte: Conjur