1- JURISPRUDÊNCIA
No ano de 2009, a Meritíssima Ministra Nancy Andrighi encaminhou nota à ARPEN-SP, por meio da qual elogiou o trabalho dos registradores, “bem como a revista que tem sido fonte de profícuo ensinamento”, e encaminhou cópia de acórdão que contém verdadeira aula sobre o tema do transexual, proferido no Recurso Especial nº 1.008.398 – SP (2007/0273360-5).
Neste elevado acórdão, autorizou-se a alteração de sexo e de prenome em assento de nascimento de transexual e se determinou que não constasse qualquer indicação da origem desta alteração nas certidões expedidas, para preservação da dignidade.
Os fundamentos de tal decisão são encontrados no respeitável voto da Meritíssima Ministra, em que se reconheceu “que a definição do gênero deve considerar todo um conjunto de fatores tanto psicológicos quanto biológicos, culturais e familiares, apresentaram-se princípios da bioética, os quais combatem quaisquer laivos de eugenia social que possam existir, trouxe-se a doutrina e jurisprudência internacionais, e foi ressaltado que o transtorno de identidade sexual bem como sua correção cirúrgica são reconhecidos pelo Estado, devendo ser tolerados seus desdobramentos jurídicos como a alteração de sexo e de prenome nos registros.” (CNB-SP, 2009)
2-NECESSIDADE DE ALTERAÇÃO LEGISLATIVA
Decisão como a mencionada, mais do que útil, é fundamental para o bom desenvolvimento do Direito e da atividade registrária em atendimento às demandas sociais, porém, há que se reconhecer que a ausência de previsão legal acaba por limitar a atuação do registrador, o qual está submetido ao princípio da legalidade.
Como bem aponta o Registrador Izaias Gomes Ferro Junior, em seu trabalho sobre o nome da pessoa natural: “A mudança do prenome, nestes casos, é um caso de dignidade da pessoa humana, e preservação da cidadania. Essa hipótese de mudança, porém, não é pacífica. (…) A questão que se aborda é que a Lei de Registros Públicos é omissa. Consoante o princípio da legalidade, só se faz àquilo que a lei autoriza em matéria de registros públicos, mas esses princípios não podem se sobrepor a princípios constitucionais.” (Ferro, 2010)
Na própria ementa do acórdão mencionado, reconhece-se a ausência de previsão legal para alteração determinada, e aduz-se que a mudança se sustenta nos princípios, notadamente o da Dignidade da Pessoa Humana:
“A falta de fôlego do Direito em acompanhar o fato social exige, pois, a invocação dos princípios que funcionam como fontes de oxigenação do ordenamento jurídico, marcadamente a dignidade da pessoa humana – cláusula geral que permite a tutela integral e unitária da pessoa, na solução das questões de interesse existencial humano”.
Resta clara a supremacia do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, o que autoriza a alteração do registro do transexual. Faz-se, portanto, imperiosa a alteração legislativa, notadamente por dois motivos: 1-para que o registrador possa ter respaldo legal em sua atuação; 2-para que não haja divergência nas decisões judiciais, conforme o órgão julgador.
3-PROJETO DE LEI DA CÂMARA 72 DE 2007
Com este espírito, tramita no Senado o Projeto de Lei da Câmara nº 72 de 2007 (Na Câmara de Deputados PL 6.655/2006), que se destina a alterar a Lei 6.015/73 neste tocante.
Isto se depreende do relatório da Senadora Fátima Cleide, aprovado na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado, que afirma que: “fica patente que, no caso, a jurisprudência logrou mostrar-se mais rápida que nós, legisladores, o que, contudo, não nos exime de promover as devidas modificações nas normas jurídicas, de modo a contemplar a situação civil do transexual, até mesmo com o fim de obstar a prolação das tantas decisões judiciais discrepantes acerca da matéria.”
Tal projeto propõe que se altere a redação do artigo 58 da Lei 6.015/73, a fim de que passe a ser prevista a possibilidade de alteração do prenome, mediante sentença judicial, quando o interessado: “for reconhecido como transexual de acordo com laudo de avaliação médica, ainda que não tenha sido submetido a procedimento medico cirúrgico destinado à adequação dos órgãos sexuais.”
Esta alteração atende à necessidade anteriormente explicitada e acompanha a tendência da jurisprudência e da doutrina.
4- (IM)POSSIBILIDADE DE SE PUBLICAR A ORIGEM DA ALTERAÇÃO.
Todavia, a proposta não vem sozinha, está acompanhada de parágrafo que se opõe à tendência do que se têm decidido, o qual determina que quando ocorrerem tais alterações: “A sentença (…) será objeto de averbação no livro de nascimento com a menção imperiosa de ser a pessoa transexual” (não grifado no original).
Esta menção imperiosa, segundo o relatório da Senadora Fátima Cleide, decorre do fato de o projeto “querer priorizar a salvaguarda dos interesses de terceiros que, porventura, sofram ou possam vir a sofrer repercussões com a mudança de registro – a exemplo de pessoa com a qual o transexual queira, futuramente, convolar núpcias –, ao exigir a menção expressa, na respectiva averbação, da condição de transexual do requerente.”
Embora não preveja expressamente a publicidade da informação, o projeto dá a entender que está poderá ser publicizada, o que contraria o acórdão mencionado no início desta coluna, no qual se determinou “que das certidões do registro público competente não conste que a referida alteração é oriunda de decisão judicial, tampouco que ocorreu por motivo de redesignação sexual de transexual.”
Aparentemente a solução trazida pelo acórdão é a que melhor atende ao principio da Dignidade da Pessoa Humana que permeia e fundamenta toda a questão, respeitando-se, outrossim, ao inciso IV do artigo 3º da Constituição Federal que veda “preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
Quanto ao casamento do transexual, a solução trazida por Flávio Tartuce e José Fernando Simão parece ser a mais adequada diante dos princípios constitucionais. Segundo os professores, o casamento do transexual é existente e, em princípio, válido. Porém, em razão da boa-fé objetiva, o transexual tem o dever de informar a circunstância ao seu consorte, sob pena de não o fazendo “gerar a anulabilidade do casamento por erro quanto à identidade do outro nubente (art. 1.550, III, c/c o art. 1557, I, do CC)” (Tartuce e Simão, 2010).
Desta forma, não se justificaria a publicidade da circunstância que levou à mudança de nome. Poderia tal circunstância constar do registro como dado sigiloso, apenas sendo possível sua publicação mediante autorização em decisão judicial fundamentada e individualizada, como ocorre com os casos de reconhecimento de filiação e de adoção.
5- “É O DOCUMENTO QUE DEVE SE ADAPTAR A PESSOA”.
Diante das considerações, feitas eventuais alterações e e tomadas as cautelas que primem pela Dignidade da Pessoa Humana, anteriormente consideradas, o projeto de lei deve ser aprovado, por imposição dos princípios Constitucionais.
Desta maneira, o legislador atenderá a máxima aduzida pela Meritíssima Ministra Nancy Andrighi, de que “O Direito não pode fechar os olhos para a realidade social estabelecida”, a qual, no que no tocante à atividade do Registrador Civil, foi perfeitamente traduzida pelo Meritíssimo Juiz de Direito, Dr. Guilherme Madeira Dezem, ao afirmar que: “Quando se analisa a veracidade registraria à luz da dignidade da pessoa humana é o documento que deve se adaptar a pessoa e não a pessoa que deve se adaptar ao documento.” (Decisão, Processo 0036840-54.2010.8.26.0100 (809/10R)).
6- TRÂMITE
O PLC 72 de 2007, já aprovado na Câmara, tramita em caráter não conclusivo nas comissões do Senado, com aprovação pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa e aguardando designação de Relator da Comissão de Constituição e Justiça. http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=82449
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
COLÉGIO NOTARIA DO BRASIL – Seção São Paulo (CNB-SP). Jornal do Notário. Setembro-2009.
FERRO Junior, Izaias Gomes e RUBIO, Analice Morais Schenider. Alterações do Nome da Pessoa Natural. São Paulo 2010 (não publicado).
Tartuce, Flávio; Simão, José Fernando. Direito Civil – Direito de Família. São Paulo: Método, 2010.
Mario de Carvalho Camargo Neto: Diretor de Assuntos Legislativos da ARPEN-SP; Vice-Presidente de Registro Civil das Pessoas Naturais da ANOREG-BR. Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais da Sede da Comarca de Capivari, Estado de São Paulo. Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2008). Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) (2005).
Fonte: Anoreg-BR