Artigo – Mudar o regime sucessório vigente no Brasil é urgente (parte 2) – Por Carlos Alberto Garbi

Em continuidade à primeira parte deste artigo, publicada na semana anterior, procuramos demonstrar agora os efeitos negativos do regime sucessório vigente e formular algumas proposições para a sua mudança.

 

A solução encontrada hoje no direito sucessório brasileiro admite que o cônjuge, ou o companheiro, que viveu um curto relacionamento antes da morte do outro, se legitime a receber a herança em igualdade de condições com os filhos do morto. Em favor do cônjuge e do companheiro ainda se reconhece o direito de habitação sem limitação de tempo. Como afirma Pasquale Laghi, não se mostra adequado tratar igualmente o companheiro de um dia e aquele de uma vida.[1]

 

O regime sucessório em vigor igualou o cônjuge e companheiro aos filhos em direitos, ignorando a diferença natural do vínculo existente entre esses herdeiros e o autor da herança. Agrava-se a situação o fato de que a lei brasileira deixou de exigir o requisito temporal mínimo para o reconhecimento da união estável, como ocorria na vigência da Lei 8.971/94, favorecendo a convivência de curta duração para todos os efeitos e o entendimento equivocado de que o tempo de duração da união não tem relevância maior.

 

Como exemplo dessa situação, basta lembrar a hipótese do direito de habitação que recai sobre o único bem deixado pelo autor da herança, capaz de anular inteiramente o direito sucessório dos filhos em favor do cônjuge ou companheiro, que não têm vínculo de sangue e pode ter entrado na vida do autor da herança pouco tempo antes da morte.[2] E mais: o direito de habitação nestas condições anula ainda a autonomia privada que tem a pessoa de determinar o destino que seu patrimônio deve ter após a morte, já restringida pela legítima, porque nada restou disponível do seu patrimônio.

 

O direito brasileiro não se atualizou em relação à nova fenomenologia da família e a aplicação das regras vigentes na sucessão é causa de séria distorção na distribuição da herança, daí a urgência da modificação do regime. Nenhuma razão de igualdade ou solidariedade justifica o fato do cônjuge ou companheiro de um curto relacionamento se habilitar a receber a herança, ou o que é mais grave, se habilitar a receber em igualdade de condições com os filhos.

 

Objetivamente, o cônjuge ou o companheiro do primeiro relacionamento, muitas vezes longevo e que contribuiu para a vida e a formação do patrimônio do autor da herança, deveria ter mais direitos sucessórios do que aquele que viveu com o autor da herança exclusivamente os seus últimos dias. Todavia, o direito brasileiro não faz essa distinção e considera somente o status de cônjuge ou companheiro como legitimador da sucessão, como se fora um vínculo adquirido imune à modificação, como é o vínculo de sangue. O regime sucessório dá valor maior ao status de cônjuge ou companheiro, adquirido a partir do estabelecimento de um relacionamento afetivo, do que ao vínculo forte, pessoal e perene, que existiu e continuará a existir para muitos efeitos entre o autor da herança e seus herdeiros consanguíneos.[3]

 

De outra parte é necessário afirmar que a qualidade de herdeiro necessário do cônjuge não é imutável no ordenamento jurídico e pode e deve ser revista, especialmente à luz da autonomia privada, que confere a liberdade de decidir sobre o destino da herança. Se é possível aceitar ainda a ideia de que persistem os motivos da lei brasileira em reconhecer descendentes e ascendentes como herdeiros necessários[4], já não cabe dizer o mesmo dos cônjuges e companheiros diante da mutação social verificada nas relações familiares. A lei deve reconhecer em favor da pessoa o direito de dizer se o cônjuge ou companheiro é seu herdeiro, assim como o direito de decidir desde o casamento se ao cônjuge se deve atribuir a sua herança. Nesse sentido, recentemente, foi apresentado e aprovado projeto de lei no parlamento português para admitir o casamento sem efeito sucessório.[5]

 

Na doutrina italiana, Maria Carmela Venutti e Pasquale Laghi defendem igualmente que se dê maior espaço no ordenamento, o quanto possível, para o exercício da auto-regulamentação dos próprios interesses patrimoniais em razão da morte, bem como se assegure liberdade de escolhas pessoais referentes às relações afetivas, combinando essa liberdade com a responsabilidade que se exige daquele que constituiu família e assumiu obrigações de sustento de membros familiares dependentes, de modo a encontrar no ordenamento o limite da autonomia privada em face de disposições inderrogáveis da lei e das particularidades das relações familiares bem conhecidas do autor da herança.[6]

 

É necessário, de outra parte, valorizar os atos de disposição do doador, hoje vinculados a um regime de controle pela colação a trazer incertezas aos terceiros adquirentes e restrição à liberdade que deve ser assegurada à pessoa sobre o seu patrimônio.

 

Na França, seguindo a tendência de rever o direito sucessório para que ele possa atender as necessidades atuais, a recente reforma, promovida pelas leis 2001-1135, de 3 de dezembro de 2001, e 2006-728, de 23 de junho de 2006, foi no sentido de valorizar a vontade do doador e do testador, e, portanto, a autonomia privada, e favorecer mais o descendente do que o cônjuge sobrevivente, com alterações nas regras sobre o legítima, inclusive com a abolição dos ascendentes como herdeiros necessários.

 

Não parece adequado pensar em suprimir totalmente a legítima diante da nossa arraigada cultura social e jurídica no sentido de assegurar a uma classe herdeiros, necessários, uma parcela da herança. A legítima ainda mais se justifica no direito brasileiro em razão do pouco uso do testamento. Todavia, é possível modernizar o direito sucessório a partir da percepção de que: (i) o legislador hoje é incapaz de reduzir em uma norma abstrata toda a complexidade das relações familiares contemporâneas, de modo que deve ser ampliada a liberdade e o campo de exercício da autonomia privada no âmbito sucessório; (ii) a classe dos descendentes deve ser privilegiada em razão da forma que tomou a família contemporânea, reduzindo o direito sucessório do cônjuge e do companheiro de forma a ajustá-lo à participação na vida afetiva, social e econômica do autor da herança.

 

O novo direito sucessório deve saber combinar disposições mínimas de garantia da herança com a liberdade, que deve ser ampliada, para o exercício da autonomia privada, seja na doação, seja no testamento[7], de forma clara e de fácil compreensão. Um novo estatuto sucessório não pode contemplar igualmente o cônjuge e o companheiro em relação à descendência, sem considerar também a estabilidade dessa relação. Se impõe a um novo direito sucessório rever o direito de habitação, que não pode ser concedido sem observância de um período mínimo de convivência, de forma vitalícia e em detrimento da descendência. Não se pode aceitar, por fim, um direito sucessório que se apresenta com tal grau de complexidade, como ocorre hoje, que torna difícil, senão impossível, saber sobre o destino dos bens após a morte, o que tem fundamental importância na vida do homem.

 

É possível, a partir de uma nova e construtiva interpretação do direito vigente, se alcançar melhores resultados na solução dos conflitos sucessórios. Todavia, as transformações substanciais do regime exigem tratamento legislativo. Espera-se que essas reflexões possam motivar o debate acadêmico, necessário ao amadurecimento das ideias, e que venham novas contribuições. O nosso Legislativo não deve ficar à margem dessa discussão.

 

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM)

 

[1] Op. cit., p. 1.371. Ainda observa o autor que o tratamento adequado destas situações poderá desencorajar casamentos em idade avançada com pessoas muito jovens, a respeito dos quais é compreensível suspeitar da prevalência dos interesses econômicos sobre as imprevisíveis manifestações do amor.

 

[2] Nem mesmo se estabelece o exercício do direito de habitação proporcional ao tempo de duração do casamento ou da união estável, como intuitivamente seria razoável.

 

[3] No Superior Tribunal de Justiça, o voto vencido da Ministra Nancy Andrighi, a respeito de um caso de sucessão do cônjuge depois de meses do casamento, deu valor ao regime de separação de bens adotado no casamento para determinar os efeitos sucessórios, negando a herança, o que indica a sensibilidade da julgadora para situações em que a aplicação pura das regras de sucessão do direito vigente pode levar a decisões contrárias aos fundamentos e à racionalidade do sistema, alterando-se o próprio regime de bens após a morte. O voto, no entanto, foi vencido (REsp n. 992.749 – MS, Dje 05/02/2010).

 

[4] Há a respeito entendimento diferente na doutrina estrangeira. Os filhos hoje vivem em um núcleo familiar caracterizado mais pelo consumo do que pela produção. Já se passou o tempo em que os filhos contribuíam para o sustento da família, porque hoje vivem com, e sustentados, pelos pais até completar os estudos, geralmente superior, desfrutando dos recursos que a família dispõe. Logo, não lhe cabe reivindicar a qualidade de herdeiro necessário pelo fato de ter contribuído para a constituição ou manutenção do patrimônio da família. Ver nesse sentido o projeto de lei italiana para alteração do regime sucessório no qual se defendeu a mudança das relações familiares a justificar o fim da legítima, bem como a opinião de Pasquale Laghi (op. cit., p. 1.360 – nota de rodapé n. 35). No Brasil, é certo, as condições sociais das famílias são diferentes e a motivação da legítima também não encontra os mesmos fundamentos. De qualquer modo, o reconhecimento de herdeiros necessários no regime jurídico sucessório brasileiro reclama revisão.

 

[5] O Jornal Diário de Notícias publicou matéria de Susete Francisco sobre o assunto em 2 de abril de 2018, que pode ser acessada em: https://www.dn.pt/portugal/interior/lei-das-herancas-deve-ter-revisao-mais-abrangente-9227521.html. A aprovação foi noticiada em 4 de maio de 2018 pelo jornal: https://www.dn.pt/lusa/interior/diploma-do-ps-para-permitir-renuncia-mutua-da-heranca-aprovado-na-generalidade-9308188.html.

 

[6] Maria Carmela Venuti. I diritti successori della persona unita civilmente e del convivente di fatto: un confronto con il sistema tedesco. Europa e diritto privado 4/2017, 1.262-1.263. Rivista trimestrale. Giuffrè Editore. Diretta da Carlo Castronovo e Salvattore Mazzamuto. Pasquale Laghi. Famiglie “ricomposte” e successione necessaria: problematiche atuale, soluzioni negoziali e prospettive de iure condendo. Rivista Contratto e impresa, n. 4/2017, p. 1.361-1362.

 

[7] Essa é a tendência do direito italiano e francês (Andrea Fusaro. I diritti sucessori dei figli: modelli europei e proposte di reforma a confronto. Op. cit., p. 343-365).

 

 

Carlos Alberto Garbi é mestre e doutor em Direito Civil pela PUC-SP. Pós-doutorando pela Universidade de Coimbra em ciências jurídico-empresariais. Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo. Consultor e advogado. Professor e Chefe do Departamento de Direito Privado e Social da FMU-SP.

 

 

Fonte: Conjur

 

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