Direito privado
Não há dirigismo estatal sobre o trabalho de notários
por Paulo André Frade Ribeiro Cordeiro
Em fevereiro último, o pleno do Supremo Tribunal Federal decidiu pela constitucionalidade da imposição de cobrança do ISS sobre os serviços prestados no âmbito das serventias notariais e registrais. A decisão se deu por maioria, em tese contrária à defendida pelo voto do relator, cristalizando, assim, entendimento jurisprudencial firmado na instância inferior.
Nos termos do voto vencido, conferir aos municípios tal poder de imposição significaria, sobretudo, ofensa direta ao princípio da autonomia dos entes federativos, traduzido, em matéria constitucional, particularmente pelo artigo 150, VI, a, da Constituição da República de 1988, que assegura imunidade recíproca entre os entes tributantes.
Já a corrente majoritária entendeu ser constitucional a redação dada ao artigo 3°, da Lei Complementar 116/03, que dispõe sobre o rol de serviços sujeitos à cobrança do ISS, bem como a menção, no anexo deste diploma, dos serviços prestados pelas serventias extrajudiciais como sujeitos à tributação pelo imposto municipal. Os votos vencedores convergiram no sentido de afirmar o conteúdo privado da atividade, apesar da delegação estatal, e do aproveitamento econômico auferido pelo titular da prestação.
Apesar da decisão do Pretório Excelso, resiste ainda grande parte da doutrina nacional à idéia da constitucionalidade da cobrança.
Em função da redação dada ao artigo 236 do Texto Maior e diante da regulamentação a ele dada pela Lei 8.935/94, insurgem-se vozes de peso, insistindo em afirmar que os notários e registradores são agentes públicos, exercendo função de certificação de fé pública através de atos que garantem publicidade, autenticidade, segurança e eficácia.
Acrescentam ainda, em defesa de sua posição, a afirmação de que a relação que se estabelece entre o notário e registrador e o particular é de Direito Público, concorrendo o Poder Público com o seu jus imperii, através da autoridade conferida à figura do titular da serventia. Corrobora este entendimento, segundo seus defensores, a natureza da contraprestação pecuniária paga pelos serviços prestados, de conteúdo tributário: os emolumentos devidos pela prestação dos serviços notariais e de registro, na dicção do próprio STF, conforme Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.378, têm natureza de taxa e não tarifa ou preço pactuado entre as partes.
Daí o reforço à tese de que não há relação de clientela, de conteúdo contratual, privado, entre o prestador e o beneficiário da prestação do serviço. E, em sendo assim, caracterizando-se a prestação como típico serviço público, remunerado por taxa, não há que se falar em incidência de imposto, no caso o ISS, sob pena de se incorrer em um bis in idem.
De outra parte, os que defendem a incidência do ISS sobre as atividades prestadas pelos serviços notariais e de registro alegam que o artigo 236 da nossa Constituição buscou afirmar a natureza privada da atividade exercida pelas serventias, inobstante ter regime de Direito Público e ser de reconhecida utilidade pública.
Alegam os defensores da tese que, apesar de oferecida por meio de concurso público, a atividade exercida por seus titulares é espécie de concessão de serviço público, onde os mesmos atuam como delegatários dos serviços e não como agentes públicos, agindo por profissão, de forma autônoma, apesar do controle finalístico exercido pelas Corregedorias dos Tribunais, tudo nos termos da Lei 8.935/94.
Acrescentam, em apoio à tese, que o serviço prestado pelo titular da serventia, de forma habitual, por profissionalidade, o é com intuito de lucro (animus lucrandi), à símile de qualquer atividade de cunho empresarial. Em comprovação a tal argumento, lembram que não é repassada ao erário a integralidade dos valores recebidos a título de emolumentos, apropriando-se os notários e registradores de uma fração do quantum recebido, para se remunerarem pela prestação oferecida.
Inegável a disposição do constituinte originário em dar conteúdo privado à atividade de prestação de serviços notariais e registrais. Nos termos do caput do artigo 236, da Lei Maior, tais serviços “(…) são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público”. Ademais, o artigo 50 da Lei 8.935/94 realça a mudança de enfoque sobre a natureza jurídica da prestação, ao determinar que “em caso de vacância, os serviços notariais e de registro estatizados passarão automaticamente ao regime desta lei”.
A autonomia conferida aos notários e registradores na condução de suas atividades é tutelada pelo artigo 41 da Lei 8.935/94, que estatui: “Incumbe aos notários e aos oficiais de registro praticar, independentemente de autorização, todos os atos previstos em lei necessários à organização e execução dos serviços, podendo, ainda, adotar sistemas de computação, microfilmagem, disco ótico e outros meios de reprodução”.
O fato de se submeterem à fiscalização das Corregedorias dos Tribunais de Justiça traduz apenas um controle finalístico do Poder Judiciário sobre a atividade, tendente a garantir uma conduta ética e eficiente na prestação do serviço. Nada tem de dirigismo estatal sobre o trabalho do notário e registrador. Exercendo serviços públicos de utilidade pública, facultativos, nos moldes daqueles mencionados pelo artigo 175 do texto constitucional, fazem jus a uma vantagem pecuniária, auferida em decorrência do pagamento de emolumentos pela clientela que acorre a suas dependências.
Atuando profissionalmente e com habitualidade na prestação de um serviço que, mesmo público, é de índole privada, como expresso na atual Constituição, de se defender, por fim, a submissão dos notários e registradores à disciplina do estatuto consumerista, Lei 8.078/90, já que perfeitamente possível seu enquadramento, assim como o dos serviços que prestam, nos conceitos expendidos pelo artigo 3°, caput e parágrafo 2° do mencionado diploma legal.
Paulo André Frade Ribeiro Cordeiro: bacharel em Direito e Ciências Contábeis pela UFMG e auditor fiscal da Receita Estadual.
Fonte: Revista Consultor Jurídico