Autor: Julio Cesar Weschenfelder*
Colaboradores: Mario Pazutti Mezzari** e João Pedro Lamana Paiva***
É impossível juridicamente a existência de nepotismo entre o Titular do Serviço Notarial e Registral e seus funcionários, dada delegação em caráter privado e o regime celetista dos contratos firmados com estes. Figura que só se caracterizaria se estivéssemos diante da hipótese de designação de interino prevista no § 2º do art. 39 da Lei nº 8.935/94, caso não fosse observado o comando legislativo ali previsto, ou seja, se o designado não fosse o Substituto mais antigo do Serviço e houvesse a designação pelo Magistrado de um parente seu.
Tramita no Conselho Nacional de Justiça o Pedido de Providências nº 200910000000060, que objetiva a extensão das regras relativas à proibição de nepotismo aos serviços notariais e de registro.
O requerente do pedido alega, em suma, que os serviços notariais e de registro, embora exercidos em caráter privado, possuem natureza pública e, por isso, devem ser submetidos às normas que proíbem a prática do nepotismo nos órgãos públicos, com base na Resolução nº 07/2005-CNJ e na Súmula Vinculante nº 13 do STF.
Cumpre, de plano, esclarecer o que seja nepotismo. Para tanto a lição de PLACIDO E SILVA[1] é salutar:
“Nepotismo. Do latim nepote (favorito), designava a autoridade que os sobrinhos e outros parentes do papa exerciam na administração eclesiástica. Por extensão, hoje em dia, significa patronato ou favoritismo na nomeação dos integrantes da administração pública.”
Destacam-se os elementos nucleares da figura que são “patronato ou favoritismo” e “integrantes da administração pública”, ou seja, favorecimento a alguém para a ocupação de um cargo ou função pública. É da essência, pois, que os “beneficiários” ocupem um cargo ou função pública, remunerados à conta de receita pública.
Estes elementos nucleares não estão presentes, por exemplo, quando o contratante é alguém que exerce um serviço público delegado, em caráter essencialmente privado, sendo seus contratados não abrangidos pelo regime estatutário, mas celetistas, além de serem remunerados à conta de receita do próprio contratante, portanto não-pública, como é o caso dos Notários e Registradores.
Não é demais lembrar que Notários e Registradores são pessoas físicas para os fins da legislação do imposto de renda, cujas alíquotas do tributo incidem sobre a sua renda líquida, abatidas as despesas previstas no art. 6º da Lei nº 8.134/1990, entre elas a remuneração paga aos seus funcionários, os encargos trabalhistas e os previdenciários.
Para melhor se compreender a real repercussão da pretensão contida no indigitado pedido de providências, imprescindível visitarmos o teor da Resolução nº 07/2005-CNJ, da Súmula Vinculante nº 13 do STF e do Enunciado Administrativo nº 1-Nepotismo-CNJ.
Da Resolução nº 07/2005-CNJ, destaca-se em especial seus artigos 1º e 2º, verbis:
“Art. 1° É vedada a prática de nepotismo no âmbito de todos os órgãos do Poder Judiciário, sendo nulos os atos assim caracterizados.
Art. 2° Constituem práticas de nepotismo, dentre outras:
I – o exercício de cargo de provimento em comissão ou de função gratificada, no âmbito da jurisdição de cada Tribunal ou Juízo, por cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, dos respectivos membros ou juízes vinculados;
II – o exercício, em Tribunais ou Juízos diversos, de cargos de provimento em comissão, ou de funções gratificadas, por cônjuges, companheiros ou parentes em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, de dois ou mais magistrados, ou de servidores investidos em cargos de direção ou de assessoramento, em circunstâncias que caracterizem ajuste para burlar a regra do inciso anterior mediante reciprocidade nas nomeações ou designações;
III – o exercício de cargo de provimento em comissão ou de função gratificada, no âmbito da jurisdição de cada Tribunal ou Juízo, por cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, de qualquer servidor investido em cargo de direção ou de assessoramento;
IV – a contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público, de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, dos respectivos membros ou juízes vinculados, bem como de qualquer servidor investido em cargo de direção ou de assessoramento;
V – a contratação, em casos excepcionais de dispensa ou inexigibilidade de licitação, de pessoa jurídica da qual sejam sócios cônjuge, companheiro ou parente em linha reta ou colateral até o terceiro grau, inclusive, dos respectivos membros ou juízes vinculados, ou servidor investido em cargo de direção e de assessoramento.”
A Súmula Vinculante nº 13 do STF, a seu turno, estendeu o entendimento aos demais poderes do Estado:
“A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica, investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança, ou, ainda, de função gratificada na Administração Pública direta e indireta, em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal.”
Já o Enunciado Administrativo nº 1-Nepotismo-CNJ referiu:
“Enunciado Administrativo nº 1 – Nepotismo
O) Aplica-se a Resolução 7 deste CNJ às nomeações não-concursadas para serventias extrajudiciais.
(Precedente: Pedido de Providências nº 861 – Julgado em 27 de maio de 2008 – 63ª Sessão Ordinária)
Ministro Gilmar Mendes
Presidente”
O Enunciado Administrativo citado tem origem no Pedido de Providências nº 861-CNJ do qual se vislumbra em sua ementa informação elucidativa, a “…aplicação da Resolução 7 do CNJ – Nepotismo – aos serviços extrajudiciais nos casos de interinos.”
Mais, conclui o eminente relator, Conselheiro Joaquim Falcão, que “é importante definir, portanto, a aplicabilidade da Resolução 7 às escolhas de interinos que ocuparão os cartórios até que se realize concurso público”.
A seguir determina as providências, dentre as quais destacam-se:
“a) afaste imediatamente qualquer interino cônjuge, companheiro ou parente, natural, civil ou por afinidade, na linha colateral até o terceiro grau, inclusive, de qualquer magistrado, aplicando-se a Resolução 7, informando à Corregedoria Nacional de Justiça os casos detectados;
b) seja elaborado um adendo ao Enunciado Administrativo 1, especificando a aplicação da Resolução 7 para a escolha de interinos para ocupar serventias extrajudiciais vagas, para o qual encaminho a seguinte sugestão:
O) Aplica-se a Resolução 7 deste CNJ, inclusive retroativamente e sem prazo decadencial ou prescricional, às nomeações não-concursadas para serventias extrajudiciais”.
Resta claro que nada se perquiriu sobre a relação do titular do Serviço Notarial ou Registral e seus funcionários, nem mesmo da relação do interino com o antigo Titular, mas tão somente sobre a nomeação de interino e sua relação de parentesco com o Magistrado que o designou.
Relevante lembrarmos da notícia publicada no site do CNJ, reveladora da motivação da decisão no Pedido de Providências:
“Titulares interinos de cartórios são atingidos pela Resolução antinepotismo
Terça, 25 de Março de 2008
“A indicação de servidor não concursado para exercer interinamente o cargo de titular de cartório deve respeitar as mesmas restrições impostas pela resolução antinepotismo do CNJ (Resolução 7). Como os cargos de titulares interinos funcionam como cargo de confiança, pois são indicados por um juiz, parentes diretamente ligados aos magistrados estão impedidos de ocupar tal função” diz o relator, conselheiro Joaquim Falcão. A decisão, tomada nesta terça-feira (25/03), responde ao Pedido de Providências 861, que denuncia irregularidades nos cartórios de Goiás. Dentre elas, a indicação de parentes de juízes como titulares de cartórios e a inexistência de concurso público para preenchimento das vagas como prevê a Constituição. Segundo o relator, o tribunal não informou com precisão quais as serventias vagas, ocupadas interinamente e ocupadas por parentes de magistrados. A Corregedoria Nacional de Justiça vai apurar a falta de informações do tribunal Goiano. O Conselho estabeleceu prazo de seis meses para realização de concurso público que sane as irregularidades. Com a publicação de edital do processo seletivo em até 60 dias.”[2] (grifamos)
Diante da determinação da aplicação da Resolução nº 7 do CNJ “às nomeações não-concursadas para serventias extrajudiciais” não podemos perder de vista o ensinamento de HELY LOPES MEIRELLES[3], segundo o qual “A nomeação é o ato de provimento de cargo”.
No mesmo sentido PLACIDO E SILVA[4] ao conceituar nomeação afirmando: “No sentido do Direito Administrativo, entende-se o ato pelo qual o poder público faz a designação de uma pessoa para que seja promovida no exercício de um cargo ou função pública”.
Nota-se do art. 2º da Resolução nº 7 do CNJ seu direcionamento ao exercício de um cargo ou função pública:
“Art. 2° Constituem práticas de nepotismo, dentre outras:
I – o exercício de cargo de provimento em comissão ou de função gratificada, no âmbito da jurisdição de cada Tribunal ou Juízo, por cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau,
inclusive, dos respectivos membros ou juízes vinculados;
II – o exercício, em Tribunais ou Juízos diversos, de cargos de provimento em comissão, ou de funções gratificadas, por cônjuges, companheiros ou
parentes em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau,
inclusive, de dois ou mais magistrados, ou de servidores investidos em
cargos de direção ou de assessoramento, em circunstâncias que caracterizem
ajuste para burlar a regra do inciso anterior mediante reciprocidade nas
nomeações ou designações;
III – o exercício de cargo de provimento em comissão ou de função
gratificada, no âmbito da jurisdição de cada Tribunal ou Juízo, por cônjuge,
companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o
terceiro grau, inclusive, de qualquer servidor investido em cargo de direção
ou de assessoramento;
IV – a contratação por tempo determinado para atender a necessidade
temporária de excepcional interesse público, de cônjuge, companheiro ou
parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau,
inclusive, dos respectivos membros ou juízes vinculados, bem como de
qualquer servidor investido em cargo de direção ou de assessoramento;
V – a contratação, em casos excepcionais de dispensa ou inexigibilidade de licitação, de pessoa jurídica da qual sejam sócios cônjuge, companheiro ou parente em linha reta ou colateral até o terceiro grau, inclusive, dos
respectivos membros ou juízes vinculados, ou servidor investido em cargo de
direção e de assessoramento.” (grifamos)
Neste sentido a Súmula Vinculante nº 13 do STF.
Sendo assim, onde se enquadrariam os funcionários dos Notários e Registradores?! São celetistas, pagos à conta de receita não pública, cuja responsabilidade dos atos recai diretamente sobre o empregador, não exercentes de cargo ou função pública.
No Serviço Notarial e Registral só quem exerce cargo ou função pública é o titular, sendo todos os demais contratados funcionários seus, e por conseguinte, não detentores de cargo ou função pública.
As vedações perpetradas na Resolução citada e na Súmula Vinculante nº 13-STF dizem respeito exclusivamente à situação prevista no § 2º do art. 39 da Lei nº 8.935/94, verbis:
“Art. 39. …
§ 2º. Extinta a delegação a notário ou a oficial de registro, a autoridade competente declarará vago o respectivo serviço, designará o substituto mais antigo para responder pelo expediente e abrirá concurso.”
Logo, incidem apenas sobre a autoridade nominada no citado § 2º do art. 39, ou seja, sobre aquele que designa o Substituto para responder interinamente pela Serventia, o Juiz da comarca. Ele não poderá nomear pessoas relacionadas a ele tão somente (seus parentes).
Este o entendimento do Conselheiro Joaquim Falcão, relator do Pedido de Providências nº 861-CNJ, para quem “…os cargos de titulares interinos funcionam como cargo de confiança, pois são indicados por um juiz, parentes diretamente ligados aos magistrados estão impedidos de ocupar tal função”.
Não é demais lembrar que a atividade notarial e registral é exercida pessoalmente, por delegação do poder público e em caráter privado (art. 236 CF1988), sendo que todos os funcionários são contratados em regime celetista pelo Titular do Serviço Registral (art. 20 Lei nº 8.935), sobre o qual recaem todas as obrigações e responsabilidades.
Estabelecer entre o Titular de Serviço Notarial ou Registral e seus contratados a vedação de nepotismo contraria as próprias normas citadas na Resolução nº 07/2005-CNJ, na Súmula Vinculante nº 13 do STF e no Enunciado Administrativo nº 1-Nepotismo-CNJ, pois elas não foram a eles direcionadas, dada a natureza da prestação destes serviços.
Além disso, falar em nepotismo na relação entre o Titular de Serviço Notarial ou Registral e seus funcionários caracterizara a desnaturação do caráter da delegação, de sua essência, ou seja, quem tem relação com o Poder Delegante é tão somente o Registrador ou Tabelião, não os demais contratados, sejam eles Substitutos, Escreventes, Atendentes, Auxiliares, etc…, que são da responsabilidade exclusiva do respectivo Titular, dada a responsabilidade direta, em especial aquela relacionada à culpa in eligendo e in vigilando.
Admitir a possibilidade de nepotismo nesta hipótese implica em oficialização dos serviços notariais e registrais, o que contraria visceralmente a Carta Política de 1988, que previu que estes serviços serão exercidos por delegação e em caráter privado.
Assim, que nepotismo pode haver nos Serviços Notariais e Registrais se estes serviços, embora públicos, são delegados a particulares segundo dispõe o art. 236 da Carta de 1988?!
O conceito de nepotismo aplica-se exclusivamente aos serviços executados diretamente pelo Estado ou suas autarquias, não aos serviços delegados, sejam eles por concessão, permissão, autorização ou delegação, em razão de sua incompatibilidade com estas modalidades.
Nem precisamos entrar nos conceitos individuais de quaisquer destas modalidades de delegação, basta termos presente que não é possível intervenção do Estado estabelecendo regra antinepotismo numa concessionária de pedágio, numa permissionária de transportes coletivos, numa rádio, numa televisão, nos Serviços Notariais e Registrais, etc…
Mais, note-se que a Resolução nº 7-CNJ refere sempre ou “exercício de cargo de provimento em comissão ou de função gratificada”, ou “a contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público”, ou “a contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público”, ou ainda “a contratação, em casos excepcionais de dispensa ou inexigibilidade de licitação”. O mesmo refere a Súmula Vinculante nº 13-STF.
Ora, será possível juridicamente a contratação por Notário ou Registrador de algum funcionário sob qualquer das formas acima citadas?! Com certeza não, pois a contratação é feita exclusivamente pelo regime celetista (art. 20 Lei nº 8.935/94).
Relevante ainda o fato de que não há dinheiro público envolvido nas atividades notariais e registrais, porquanto, conforme estabelece o art. 28 da Lei nº 8.935/94 “Os notários e oficiais de registro gozam de independência no exercício de suas atribuições, têm direito à percepção dos emolumentos integrais pelos atos praticados na serventia e só perderão a delegação nas hipóteses previstas em lei”.
Ainda, nem mesmo é possível a existência da caracterização de nepotismo na hipótese da designação de interino recair em parente do antigo titular, porquanto, observada a literal disposição de lei prevista no § 2º do art. 39 da Lei nº 8.935/94, quando a designação recair no Substituto mais antigo, não importando sua relação de parentesco com quem quer que seja, eis que o ato ali previsto é vinculado, não dando margem a qualquer discricionaridade.
Confunde-se o requerente do Pedido de Providências com a natureza pública do serviço notarial e registral e a forma de sua prestação. Também parece desconhecer a literal disposição de lei antes referida (§ 2º do art. 39 da Lei nº 8.935/94).
A natureza pública do serviço não altera o caráter privado de sua prestação, que é realizada sob a conta e risco do delegatário, elegendo seus funcionários, pagando as despesas necessárias à prestação, folha de salários, tributos e tudo o mais que costuma ser exigível numa atividade exercida em caráter privado.
Em conclusão, é impossível juridicamente a existência de nepotismo entre o Titular do Serviço Notarial e Registral e seus funcionários, dada delegação em caráter privado e o regime celetista dos contratos firmados com estes. Esta figura só se caracterizaria se estivéssemos diante da hipótese de designação de interino prevista no § 2º do art. 39 da Lei nº 8.935/94, caso não fosse observado o comando legislativo ali previsto, ou seja, se o designado não fosse o Substituto mais antigo do Serviço e houvesse a designação pelo Magistrado de um parente seu.
* Registrador Público em Vera Cruz-RS
** Registrador Imobiliário em Pelotas-RS
*** Registrador Público e Tabelião de Protestos em Sapucaia do Sul-RS
[1] in Vocabulário Jurídico, 27ª ed., Rio de Janeiro : Editora Forense, 2008, p. 954.
[2] Fonte: http://www.cnj.gov.br/index.php?option=com_content&task=view&id=3874&Itemid=167, acessado em 06fev2009.
[3] in Direito Administrativo Brasileiro, 25ª ed., São Paulo : Malheiros Editores, 2000, p. 398.
[4] Ob. cit. p. 959.
Fonte: Anoreg Brasil