São muitas as mudanças trazidas ao divórcio após o advento da Emenda Constitucional 66/2010. Finalmente, suprimiram-se os requisitos e prazos prévios para a sua decretação.
Passou-se para uma fase de menor intervenção estatal nas relações familiares, que se pautam pela afetividade, não cabendo mais ao Poder Judiciário se imiscuir na vida privada e intimidade do casal, que pode livremente dispor sobre o destino do relacionamento. Neste sentido, os novos rumos do divórcio apontam para sua desburocratização.
Ainda, interessante notar a evolução no que se refere à aplicação da responsabilidade civil advinda de relacionamento conjugal, que passa a ter maior menção na jurisprudência no início do presente século, embora em situações excepcionais, não tendo ainda sido pacificado o tema.
Desde o advento da EC 66, consolidando o paradigma do afeto nas relações conjugais, houve grande avanço com relação ao assunto, passando o divórcio a ser um direito potestativo.
Na esteira desta desburocratização, pode-se mencionar recente regulamentação do chamado divórcio impositivo, a pedido de uma das partes, regulamentado de maneira pioneira pelo provimento 06/2019 da Corregedoria-Geral de Justiça de Pernambuco[1], que, contudo, teve recomendação do Conselho Nacional de Justiça[2] para que fosse revogado.
De acordo com o provimento em questão, nos casos em que não houver filhos menores, incapazes ou nascituros, um cônjuge poderia exercer seu direito potestativo e pedir a averbação do divórcio, sendo o outro consorte apenas notificado pessoalmente, para fins de conhecimento, procedendo-se a averbação após cinco dias. Caso não encontrado, seria feita sua intimação editalícia, após tentativa de buscas nas bases de dados do Judiciário. Poderia ser pedida a alteração para o nome de solteiro, mas as demais questões atinentes, como alimentos, partilhas de bens, medidas protetivas, entre outras, deveriam ensejar processo próprio.
Em que pese ter sido contestado pelo Conselho Nacional de Justiça, que alegou vício formal, além de inobservância à competência privativa da União e ao princípio da isonomia, a regulamentação em comento demonstra os novos anseios da sociedade, no sentido de facilitação do divórcio, que passou a ser um direito potestativo a partir da emenda constitucional mencionada. Nesta esteira, não seria necessário assoberbar ainda mais o Poder Judiciário, a partir da propositura de demandas que naturalmente acabariam resultando em divórcio, facilitando-o a partir da previsão de averbação em cartório, sem descuidar da notificação do outro cônjuge.
O estado do Maranhão[3], seguindo o exemplo de Pernambuco, também previu o divórcio impositivo em provimento de sua Corregedoria-Geral de Justiça, mas possivelmente observará recomendação do Conselho Nacional de Justiça para que o ato seja revogado.
Caso haja futura regulamentação da matéria por meio de lei, deverá haver um cuidado especial no que se refere à notificação do consorte que não pediu o divórcio, buscando-se esgotar os meios para sua notificação pessoal, assim como já é feito nos processos judiciais, preservando-se a boa-fé objetiva nos relacionamentos interpessoais.
De resto, a edição de lei prevendo a possibilidade de pedido de divórcio por uma das partes em cartório, com a devida notificação da parte contrária, atenderia ao clamor social, dirimindo, ainda, contestações de ordem formal, e sua previsão seguiria a tendência no sentido da desburocratização do divórcio, que, conforme já mencionado, passou a ser direito potestativo a partir da EC 66.
Ainda no que se refere a atualizações sobre o divórcio e também dissolução de união estável, importante destacar também o Projeto de Lei 510/2019[4], que pretende a inclusão de dispositivo na Lei 11.340/2006, em que, a pedido da ofendida, possa ser a dissolução do vínculo pedida no próprio juízo que aplica as medidas de urgência, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Embora ainda sob tramitação, o projeto nos parece interessante sob o ponto de vista da facilitação do divórcio ou dissolução da união estável, poupando a mulher de ter que propor outro processo judicial no âmbito da Vara de Família, com todas as burocracias que o envolvem, o que a vitimizaria novamente, de maneira que o projeto em comento vai ao encontro dos novos anseios.
Além da tendência à desburocratização do divórcio, interessante notar a evolução na jurisprudência com relação à responsabilidade civil dele decorrente. Por certo, as relações familiares não podem ser monetarizadas. Contudo, não podem ser tolerados ilícitos que ocorram na esfera privada do relacionamento conjugal ou da união estável que fiquem imunes à análise do Direito, destacando-se neste aspecto a importância da aplicação do instituto, caso preenchidos seus pressupostos. Nos últimos cinco anos, verificou-se que a jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo apenas o aplicou em poucos casos.
Entendeu-se que a violação aos deveres do casamento não resulta, por si só, em dever de indenizar, sendo indispensável a demonstração dos requisitos da responsabilidade civil extracontratual[5].
Ademais, a tendência é pela não caracterização da responsabilidade civil em caso de traição pura e simples, o que se mostra acertado, na medida em que, via de regra, não há que se falar em dano a direito da personalidade, pois se trata de risco inerente a qualquer relacionamento, não cabendo ao Direito se imiscuir nesta seara, independentemente de ter ou não havido perdão, pois se trata de assunto que apenas deve ser tratado no âmbito da intimidade do casal[6].
Da mesma forma ocorre com relação ao abandono do lar, mormente porque, na atualidade, diversas são as configurações de família, e muitos casais podem optar, inclusive, por viver em casas separadas, sem que isso gere qualquer consequência ao outro[7].
Não há que se falar em configuração de danos em nossa sociedade atual pelo simples desfazimento do casamento, mesmo que havido gastos com festas, porquanto o sistema jurídico atual privilegia a autonomia das partes[8].
No que se refere ao registro pelo consorte de filho advindo de relacionamento extraconjugal havido pela esposa, a jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo foi oscilante, focando-se a questão da boa-fé ou não da mulher quando do registro do nascimento para caracterização da responsabilidade civil[9].
Embora necessária a análise do caso concreto, no geral, caso o registro do filho tenha sido feito, mas tenham se passado muitos anos, configurando-se eventual socioafetividade, difícil se falar em dano ao pai que registrou a criança em seu nome, pois a relação paterno-filial deverá ser preservada, consolidando-se essa situação no tempo.
Por outro lado, o tribunal entendeu que a conduta do ex-marido de negar a paternidade de filho advindo durante o casamento configura exercício regular de direito. No mesmo caso, entendeu-se pela não caracterização de responsabilidade civil por alegadas agressões físicas e morais, por ausência de comprovação de que ultrapassassem os aborrecimentos provenientes do matrimônio[10].
Nestes casos de agressões praticadas no âmbito do relacionamento conjugal, a jurisprudência é também oscilante, verificando-se que não houve condenação em danos morais em alguns casos[11], mas, em recente decisão, contudo, foi fixada indenização, diante de agressão física perpetrada durante a constância do casamento, fixando-se o quantum com base na condição financeira do réu[12].
Verifica-se que a jurisprudência ainda é tímida na condenação em danos morais do agressor, havendo, contudo, uma tendência nesse sentido.
Nesses casos, mostra-se bastante palpável a questão da caracterização de responsabilidade civil daquele que pratica agressões, sejam elas físicas ou morais, contra seu consorte, porquanto mais facilmente poderá se identificar uma lesão a direito da personalidade.
Destacam-se, neste ponto, os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, cujos números saltam aos olhos e que poderiam levar a uma responsabilização no âmbito civil, como forma de reparação de eventual dano material sofrido, mas também como compensação de um dano moral por lesão a direito extrapatrimonial.
Embora escassa a jurisprudência sobre o assunto no âmbito do Tribunal de Justiça de São Paulo, pode-se notar esta tendência na recente tese repetitiva do Superior Tribunal de Justiça, de número 983.
O enunciado refere-se à reparação civil por ocasião da prolação de sentença condenatória, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, in verbis:
“nos casos de violência contra a mulher praticados no âmbito doméstico e familiar, é possível a fixação de valor mínimo indenizatório a título de dano moral, desde que haja pedido expresso da acusação ou da parte ofendida, ainda que não especificada a quantia, e independentemente de instrução probatória”.
Embora o enunciado em questão se refira aos casos de reparação civil no âmbito criminal, não deixa de ser uma aplicação do instituto, revelando uma novel forma de sua aplicação, diferente do que ocorria no passado e, neste caso, privilegiando a mulher vítima de violência.
Salutar o enunciado, que servirá de norte aos julgadores, já que a cultura jurídica brasileira até então não tinha costume de aplicar o instituto da responsabilidade civil aos atos praticados no âmbito do relacionamento matrimonial ou constituído por união estável.
Desta forma, com a condenação criminal, já pode ser fixado um valor mínimo a título de indenização, que poderá ser complementado no âmbito cível, se for o caso, havendo dano presumido.
Nestes termos, a responsabilidade civil tem ressaltada sua função dissuasória, no sentido de prevenir condutas contrárias ao direito que configurem lesão a direitos extrapatrimoniais.
Os atos de violência doméstica e familiar contra a mulher carecem de mecanismo efetivos que os coíbam, de maneira que a responsabilidade civil do agressor pode ser mais um elemento dissuasório, podendo ser, inclusive, uma alternativa ao Direito Penal, como forma de desestímulo a estas condutas, em casos em que não aplicada pena em âmbito penal, mas que haja dano caracterizador de responsabilidade civil.
A violência de gênero é uma realidade inegável, sendo salutar encontrar modos de evitá-la, mas, quando não possível isso, formas de reparação e compensação à vítima, o que pode, inclusive, servir para reprimir tais condutas. Embora a resposta no âmbito cível possa não ser suficiente, diante da complexidade do assunto e discriminação histórica, é mais uma possibilidade em favor da mulher lesada, desestimulando-se a prática de tais atos.
Constata-se que a sociedade avança e a evolução jurisprudencial e da legislação com relação à matéria demonstra que não mais perduram os entraves que anteriormente existiam para o desfazimento dos relacionamentos por meio do divórcio, o que contribui para a consolidação do paradigma do afeto no Direito de Família, que também traz reflexos no instituto da responsabilidade civil nesta seara.
[1] http://www.tjpe.jus.br/documents/10180/132214/provimento+6-2019.pdf/666b6fe1-59fe-30e8-9b3a-4b7b5c36b977, acessado em 20/5/2019.
[2] https://www.conjur.com.br/dl/divorcio-unilateral-pernambuco.pdf, acessada em 31/5/2019. Frise-se que o Conselho Nacional de Justiça recomendou a abstenção da edição de atos que regulamentem a averbação de divórcio unilateral emanada por um dos cônjuges aos tribunais de Justiça estaduais e do Distrito Federal, além de recomendar a revogação dos atos já editados nestes termos.
[3] http://gerenciador.tjma.jus.br/app/webroot/files/publicacao/425391/provimento_25_2019_cgjma_21052019_1823.pdf. Acesso em 30/5/2019.
[4] O projeto, de autoria de Luiz Lima (PSL-RJ), dispõe que: “Art. 1º Esta lei permite o divórcio ou rompimento da união estável nos casos previstos na Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006, a pedido da ofendida, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. Art. 2º A Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006 – Lei Maria da Penha – passa a vigorar com o acréscimo do seguinte dispositivo: “Art. 19-A. Além das medidas de urgência cabíveis, a ofendida poderá requerer ao juiz a decretação do divórcio ou do rompimento da união estável, nos casos de violência doméstica e familiar.” Art. 3° Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.” Teve recente parecer proferido em Plenário pela relatora, deputada Erika Kokay (PT-DF), pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, que conclui pela constitucionalidade, juridicidade e técnica legislativa e, no mérito, pela aprovação da matéria, na forma do substitutivo adotado pela relatora da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher.
[5] Neste sentido: 9ª Câm. Priv., AP 0004704-28.2014.8.26.0176-SP, Rel. Des. Mariella Ferraz de Arruda Pollice Nogueira, j. 08-08-2017.
[6] Neste sentido: 9ª Câm. Priv., AP 0018635-94.2008.8.26.0019-SP, Rel. Des. Jayme Martins de Oliveira Neto, j. 28-01-2014; 7ª Câm. Priv., AP 0058319-98.2012.8.26.0564 -SP, Rel. Des. Mendes Pereira, j. 05-05-2014; 4ª Câm. Extr. Priv., AP 9070238-76.2009.8.26.0000- SP, Rel. Des. Luiz Ambra, j. 01-08-2014; 1ª Câm. Priv., AP 0929416-08.2012.8.26.0506-SP, Rel. Des. Francisco Loureiro, j. 11-08-2015; 8ª Câm. Priv., AP 003606-82.2014.8.26.0566-SP, Rel. Des. Salles Rossi, j. 27-07-2016; 20ª Câm. Extr. Priv., AP 0081103-09.2012.8.26.0002 -SP, Rel. Des. Marcia Dalla Déa Barone, j. 26-04-2017; 6ª Câm. Priv., AP 1021352-82.2015.8.26.0224 -SP, Rel. Des. Vito Guglielmi, j. 06-07-2017.
[7] Neste sentido: 20ª Câm. Extr. Priv., AP 0081103-09.2012.8.26.0002 -SP, Rel. Des. Marcia Dalla Déa Barone, j. 26-04-2017; 9ª Câm. Priv., AP 0004214-08.2011.8.26.0177 -SP, Rel. Des. Mauro Conti Machado, j. 03-07-2017.
[8] Neste sentido: 3ª Câm. Priv., AP 0000249-23.2014.8.26.0272 -SP, Rel. Des. Marcia Dalla Déa Barone, j. 13-12-2016; 1ª Câm. Priv., AP 1012382-91.2015.8.26.0451-SP, Rel. Des. Rui Cascaldi, j. 15-03-2018.
[9] No sentido de que há dano nestas situações: 6ª Câm. Priv., AP 0012624-19.2013.8.26.0037-SP, Rel. Des. Percival Nogueira, j. 01-06-2016; 1ª Câm. Priv., AP 1000894-71.2016.8.26.0236 -SP, Rel. Des. Christine Santini, j. 31-10-2018. Em sentido contrário: 20ª Câm. Extr. Priv., AP 0003872-20.2012.8.26.0352-SP, Rel. Des. Salles Rossi, j. 14-12-2016; 3ª Câm. Priv., AP 048042-29.2012.8.26.0562 -SP, Rel. Des. Alexandre Marcondes, j. 27-04-2017.
[10] 7ª Câm. Priv., AP 013963-88.2009.8.26.0510-SP, Rel. Des. Walter Barone, j. 16-04-2014.
[11] Não houve condenação em dano moral nas decisões a seguir: 1ª Câm. Extr. Priv., AP 0000722-62.2006.8.26.0248 – SP, Rel. Des. Claudio Godoy, j. 27-01-2015; 3ª Câm. Priv., AP 0001644-61.2014.8.26.0042 -SP, Rel. Des. Marcia Dalla Déa Barone, j. 20-04-2016.
[12] 7ª Câm. Priv., AP 1008081-49.2016.8.26.0554 -SP, Rel. Des. Mary Grün, j. 02-04-2018.
Renata Oliva Monteiro Matos é defensora pública do Estado de São Paulo, mestre em Direito Civil e bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo (USP).
Fonte: Conjur
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