No mês de agosto de 1964, o Supremo Tribunal Federal, ainda que timidamente, regulamentou as uniões conjugais informais que, neste Brasil de dimensões continentais, já representavam mais de 60% (sessenta por cento) das famílias constituídas em nosso território.
Referidas relações entre homem e mulher nasciam à margem da lei inexistindo qualquer regra legal que as amparasse. Mormente as mulheres, naquela época pouco integradas ao mercado de trabalho, dedicavam sua vida aos seus companheiros e, por acaso, havendo a ruptura da sociedade fática, lhes faleciam direito à partilha de bens amealhados no curso da vida comum e pensão alimentícia.
O Brasil rural e miserável crescia desprovido de normas jurídicas que amparassem os casais urbanos e aqueles residentes nos mais distantes grotões, onde o registro civil de uma sociedade conjugal era desconhecido por aquela gente esquecida, pelos então dirigentes da nação.
A voz rouca das ruas e a reivindicação indignada dos advogados fez eco na nossa suprema corte, ainda que sob a forma de sussurros suplicantes.
Assim, naquele agosto onde já se anunciava “nuvens cinzentas” para o Estado de Direito, exsurge a Súmula 380, regrando os direitos das famílias informais, assim dispondo: “Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum”.
O texto supra mencionado representou a primeira nesga de luz no caminho daqueles estudiosos do direito de família, que buscavam e ainda buscam a equiparação total da sociedade fática com o casamento formal, aquele de papel passado como diz a grande maioria do povo brasileiro.
Até a promulgação da Constituição Federal de 1988, onde o parágrafo 3º, do artigo 226 da Carta Maior erigiu a relação fática à condição de entidade familiar, para que exsurgisse direitos patrimoniais àqueles que conviviam como marido e mulher, perante os olhos da sociedade, mesmo não sendo casados, eram necessários os seguintes comportamentos:
a) Viverem sob o mesmo teto; ou não (Súmula 382 do STF), como se marido e mulher fossem, por um lapso de tempo mínimo de cinco anos;
b) Esforço comum na aquisição dos bens (contribuição financeira de ambos) com divisão, na forma daquilo que cada um colaborou na aquisição de cada bem. Melhor explicando: Na partilha dos bens, cada concubino ficava com um percentual equivalente à sua colaboração para aquisição de cada um dos bens de propriedade do casal.
Portanto, enquanto teve vigência, a epigrafada Súmula 380, já revogada, necessário se fazia a convivência sob o mesmo teto por um prazo mínimo de cinco anos. No entanto, a Súmula 382 do mesmo STF, admitia e, em nossa opinião ainda admite (esta Súmula não foi revogada), a prova da mantença de união estável, com os companheiros residindo em tetos diferentes.
No caso acima referido, a prova da vida fática com animus de viverem como marido e mulher é mais complexa. Porém, em nosso entendimento, é possível o reconhecimento da vida estável, ainda que as partes não coabitem no mesmo imóvel.
Sempre repugnei o entendimento da necessidade de prazo mínimo para caracterização da sociedade fática. O referido dogma fere de frente uma realidade inexorável do nosso país, qual seja, o aculturamento do povo; analfabetismo e dificuldade de acesso à informações por extensa parcela da população.
Com o advento do artigo 226, parágrafo 3º da nossa Constituição, a relação jurídica alcunhada como concubinato passou a designar-se como união estável, que foi, efetivamente regulamenta, quando da entrada em vigor da Lei 9.278/96.
Houve um verdadeiro buraco negro no período compreendido entre outubro de 1988 a 10 de maio de 1996. Embora galgada à condição de entidade familiar, equiparada às uniões civis, a grande maioria de nossas cortes continuavam a negar direito de pensão alimentícia ao convivente, bem como, a indeferir pleitos de reconhecimento da união estável e partilha de bens, não havendo prova de vida comum por cinco anos e esforço comum na compra dos bens, que pretendiam que fossem partilhados.
Não deve ser esquecida a promulgação da Lei 8.971/94, ao apagar das luzes do ano de 1994. O noticiado texto legal passou a regular os direitos sucessórios na união informal. Também, o citado texto legal, ensaiou os primeiros passos para premiar a hercúlea luta da sociedade brasileira e dos advogados, no sentido de garantir o direito de pensão alimentícia, ao companheiro hipossuficiente.
Todavia, foi por ocasião da promulgação da Lei 10.406/02 (novo Código Civil) que, ainda carrega alguns ranços em suas entranhas, que ocorreu a quase equiparação da união estável ao casamento pelo regime da comunhão parcial de bens. A matéria vertente encontra-se ancorada nos artigos 1.723, 1.725 e 1.694 do Codex supra narrado. Afirma-se da quase equiparação em face dos companheiros não terem sido reconhecidos como herdeiros; assim como, o silêncio sepulcral que se fez diante do “direito real de habitação”, anteriormente já postergado na sociedade fática, por meio das disposições insculpidas no artigo 7º, parágrafo 1º, da Lei 9.278/96.
Na mesma esteira, o Código Civil vigente delimitou definitivamente as lindes entre aquilo que é reconhecido como união estável e concubinato, suas diferenças e conseqüência. Os dois institutos são, poderíamos dizer. Irmãos siameses aos olhos da população e, totalmente diversos nas conseqüências jurídicas decorrentes da mantença de cada um destes propalados relacionamentos.
Para que reste caracterizada a união estável, mister se façam presentes, entre outras, as seguintes condições:
a) Relação conjugal sob o mesmo teto, ou não, entre homem e mulher, com ambos fazendo transparecer para a comunidade, uma vida de marido e mulher, e a intenção de constituir família;
b) Ambos os companheiros sejam solteiros; separados judicialmente; divorciados; viúvos, ou, separados de fato.
Antes de mais nada é imperioso que se informe, ocorrer a separação de fato, quando os cônjuges, embora continuem registrados como pessoas casadas, no Cartório de Registro Civil, na prática, não coabitam sob o mesmo teto e, principalmente, deixam de ser vistos pela sociedade, como marido e mulher.
Por seu turno, a relação de concubinato, antigamente conceituada como mancebia (simples satisfação da libido), em face do novo regulamento civil vigente, ganhou o pejorativo status de união clandestina.
Tratando do concubinato, o artigo 1.727 do Código Civil assim conceituou este instituto: “As relações não eventuais entre homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato”.
Uma singela e perfunctória leitura do texto codificado traz à ribalta duas situações que estigmatizam e rotulam este tipo de relação ou seja:
a) Um ou ambos os envolvidos no relacionamento, é ou são casados, coabitando com suas respectivas famílias;
b) Mantença de relações continuas, não sendo esporádicas, ou, sazonais.
Resta claro, portanto, assentado que, para que exista relação de concubinato, um ou ambos os envolvidos, mantenham-se como casados aos olhos da sociedade.
Jamais tendo o escopo de vulgarizar o instituto, transcrevo abaixo, um exemplo suscinto daquilo que entendo representar uma relação concubinária. Para tanto, valho-me de nomes e locais fictícios:
“Pedro conhece Mariazinha em um sofisticado café dos jardins. Pedro é casado com Paula, tem dois filhos, sendo ele próspero comerciante. Mariazinha, coitada, procurava emprego como garçonete da fina cafeteria. Ela reside na Vila Miséria. Encantado com os dotes da formosa suburbana, Pedro, muito discretamente passa um cartão de visitas àquela jovem de traços bonitos, porém, mal cuidada. No mesmo ato da entrega do número do telefone onde pudesse ser localizado, o perfumado senhor Pedro advertiu Mariazinha, para não telefonar para a sua residência. Infelizmente, a pobrezinha não obteve seu emprego na luxuosa cafeteria. Porém, voltou à Vila Miséria, levando encantada uma caixa de chocolate que aquele senhor grisalho lhe presenteara. Nunca, jamais, Mariazinha experimentara chocolates tão gostosos. Passaram-se alguns dias e Mariazinha ligou para Pedro. No mesmo dia o abonado comerciante passou freqüentar a modestíssima casa de alvenaria, localizada nos grotões da Cidade de São Paulo. Toda a vizinhança conheceu Pedro. Admiravam quando ele chegava e partia, sempre no mesmo dia, em seu portentoso veículo importado. Passaram-se quatro anos e nosso enfant gateau cansou-se da humilde Maria da Dores. A casa da Vila Miséria já não está tão modesta. Ganhou pintura nova; muros com grades pontiagudas, com o escopo de evitar assaltos; móveis e eletrodomésticos de boa qualidade e, até mesmo um cãozinho da raça fox terrier, alcunhado de `Bob`. O fiel animal foi um presente dos tempos de paixão avassaladora. Enfim, uma noite Pedro partiu no seu carrão, jamais retornando à Vila Miséria”.
Alguém com certeza estará perguntando? Quais os direitos de Mariazinha! Doida resposta: Nenhum!
Ora, no caso em foco, Pedro era casado e vivia com sua família. Passava as festas natalinas; ano novo; Páscoa e finais de semana com a família legal, isto é, com a esposa e filhos.
A relação acima noticiada não foi eventual. No entanto, desde o seu cerne padeceu da insanável vicio da clandestinidade. Mariazinha jamais entendeu-se como uma mulher casada com Pedro e vice-versa.
Pode surgir outra pergunta: E, no caso de Mariazinha ter colaborado financeiramente para a aquisição de algum bem. Terá direito à partilha?
Sim. Porém, não na condição de meeira. O bem adquirido durante a mantença da vida concubinária, será partilhado como se condôminos fossem, de acordo com aquilo que cada um contribuiu para a compra do bem. Ocorrendo a situação acima comentada, teremos uma sociedade comercial de fato, devendo a mesma ser regida nos termos daquilo que estipula o nosso direito das obrigações, tal qual ocorre nas uniões homoafetivas.
Da união estável impura ou putativa
O nosso país além de possuir extensão continental, ainda abriga inúmeras regiões com níveis africanos de informação e desenvolvimento. Na prática, a questão envolvendo a união estável impura ou putativa é bastante controversa. Inexiste uma Súmula que fixe os limites desta relação, porque para sua caracterização, é mister um minucioso exame do critério subjetivo de cada parte envolvida neste tipo de união.
A referida matéria tem chegado com bastante constância aos nossos Sodalícios, com o escopo de submeter-se ao crivo dos Magistrados de todos os cantos do país. Podemos dizer que, comumente este tipo de relação tem seu nascedouro na ocorrência dos fatos abaixo comentados. Tendo em vista o elevado preço das áreas rurais localizadas no sudeste e no sul do país, centenas de pessoas migraram seus recursos financeiros para a aquisição de enormes porções de terras situados nas regiões centro oeste e sudeste. Pois bem! Estes endinheirados senhores mantém-se residindo com suas famílias nas regiões de origem, viajando com constância para estes novos eldorados com o objetivo de vistoriar o gado e o trabalho empreendido nas respectivas.
Mais uma vez a ficção imita a realidade!
“No caso em tela, João, nosso novo personagem, adquire três mil hectares de terras em Capim Mimoso, pequeno município do estado de Mato Grosso. Com a área desbravada; pasto formado; gado em abundância e, João, contando recém completados 55 de idade, resolveu que estava na hora de recomeçar uma vida com emoções. Em cada 60 dias, ele ficava 30 dias na distante cidade, muito próximo do local onde comprou a mencionada área rural. Em uma noite calorenta daquela região agreste, conheceu a simplória cabeleireira Janete, com quem agendara um horário em seu modestíssimo estabelecimento, visando aparar seus cabelos. Desde o primeiro instante nosso personagem ficou impressionado com a beleza cabocla da jovem moça. Após João ter assediado por dias a fio a humilde Janete, eles iniciaram um namoro.
Desde o inicio da relação João contou que era há muito tempo divorciado de sua esposa, fato que a pouco letrada sertaneja acreditou piamente. Poucos meses após, o abastado fazendeiro adquiriu uma imponente casa, a mais bonita de Capim Mimoso. Nesta verdadeira mansão, Janete passou a coabitar com o varão. Janete era moça de família pobre, porém honrada. Então, no afã de evitar conflitos familiares e, para dar contornos de oficialidade à união, o casal convidou todas as pessoas influentes do local, bem como, os humildes parentes de Janete, para um jantar, onde trocaram alianças e comunicaram à comunidade que de ora em diante estariam vivendo como marido e mulher. Suas ausências prolongadas de Capim Mimoso eram justificadas por João, que comprara outras duas grandes áreas rurais naquelas plagas, como extremamente necessárias para cuidar da indústria que possuía no Sudeste.
Nunca a jovem sertaneja desconfiou da vida dupla mantida pelo companheiro. Repita-se acreditava cegamente naquilo que o ‘vivido’ companheiro lhe contava. João, em uma das ausências acima faladas, faleceu vitimado por um infarto fulminante na sua residência de São Paulo. No dia seguinte, Janete, com o rosto crispado, entre incrédula e indignada, ficou conhecendo a verdadeira estória da dupla vida mantida pelo companheiro falecido, quando ligou para a indústria do mesmo e, a secretaria particular, acossada por um drama de consciência, contou-lhe da morte de João, bem como, de toda a verdade”.
Outra vez, escusando-nos da história acima narrada, formulamos aos leitores a pergunta: – Janete terá participação nos bens adquiridos por João, após o início da vida concubinária?
Entendo que sim. Trazendo a história para a vida real, teríamos na hipótese a ocorrência de uma união estável impura ou putativa, isto porque, a concubina, no caso vertente, tinha perante a comunidade onde vivia, o status de companheira, mantendo relacionamento não eventual com João, embora este continuasse vivendo, também com a esposa.
Todavia, o ponto nevrálgico da questão, constitui-se a inequívoca prova de que Janete, sempre acreditou ser João, um homem divorciado. E, mais que isto, o critério subjetivo tem relevância impar para o deslinde dos processos com este DNA. Tendo o casal mantido uma vida de marido e mulher aos olhos da comunidade, assim como, o fato de Janete jamais ter desconfiado daquilo que o companheiro lhe contara sobre seu estado civil, inexiste dúvidas em minha opinião, de que a nossa personagem mantinha uma união estável putativa, tendo granjeado direito a mear os bens adquiridos pelo falecido no curso da vida fática, concorrendo com a esposa legítima.
Enfim, no caso retro relatado, havia a transparência da existência de vida marital e, principalmente, a companheira como esposa se entendia.
A união estável impura ou putativa representa um tema controvertido. Porém, como o Direito têm por finalidade proteger a boa-fé e distribuir Justiça, opino pelo reconhecimento dos direitos dos companheiros na ocorrência de situações semelhantes aquelas noticiadas nesta manifestação.
Antônio Ivo Aidar: é sócio do escritório “Felsberg – Pedretti – Mannrich e Aidar Advogados Associados” e conselheiro do Conade.
Fonte: Consultor Jurídico