Artigo – O cônjuge sobrevivente como herdeiro necessário e a limitação da autonomia da vontade privada – Por Cristiane Caires Geroti

Em dezembro passado, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em voto capitaneado pela Ministra Nancy Andrighi, tomou uma decisão corajosa nos autos do Recurso Especial n.º 992.749. Ao julgar um caso que envolvia herdeiros, cônjuge sobrevivente e regime de bens, o referido Tribunal atendeu os anseios de uma sensata maioria ao determinar não subsistir ao cônjuge casado sob o regime da separação convencional de bens, direito à concorrência sucessória, privilegiando assim a autonomia da vontade privada em detrimento da ordem de vocação hereditária imposta pelo novo diploma civil. 

Importante ressaltar, desde logo, que não obstante tal decisão produza apenas efeitos inter partes, terá grande repercussão no Direito de Família, pois certamente servirá de paradigma para orientar a jurisprudência pátria, já que o STJ é o intérprete maior da legislação federal.  

O cerne da questão está na interpretação dos dispositivos legais do Código Civil (C.C.) que tratam da ordem de vocação hereditária (artigo 1.829[1]), e do regime da separação de bens entre cônjuges (artigo 1.687[2]).  

Até a vigência da Lei n.º 10.406, de 10 de Janeiro de 2002, o direito brasileiro regulava quatro regimes de bens entre cônjuges: o da comunhão universal; o da comunhão parcial ou de aquestos; o da separação absoluta e o dotal. No entanto, com a entrada em vigor do novo C.C., além da extinção do regime dotal, o legislador inovou no que se refere ao direito patrimonial do direito de família, tornando o cônjuge sobrevivente, mesmo que casado sob o regime da separação convencional de bens, herdeiro concorrente com os descendentes e, posteriormente, com os ascendentes do de cujus. 

Assim sendo, ao tratar do direito das sucessões, o legislador, numa demonstração inequívoca de invasão dos limites da autonomia individual por parte da norma jurídica, desvirtuou por completo a essência do regime da separação absoluta, que consiste em um regime "em que os patrimônios dos cônjuges permanecem incomunicáveis, de ordinário sob a administração exclusiva de cada cônjuge, que só precisa da outorga do outro cônjuge para a alienação dos bens de raiz. Não se comunicam, freqüentemente, as dívidas contraídas antes ou depois do matrimônio. Por elas é responsável o cônjuge que as trouxe ou que as contraiu.(…) Tal regime pode nascer ex potestate legis, quando a lei civil o torna obrigatório em certos casos especiais, com o fim de melhor resguardar os direitos e bens do incapaz, dos filhos de um dos cônjuges, ou de nubentes que não possam mais ter, com real vantagem, os proveitos econômicos da comunhão."[3]  

Desse modo, de acordo com o regime da separação absoluta de bens, a rigor esses bens deveriam permanecer sob a administração exclusiva de cada um dos cônjuges, que poderia livremente aliená-los ou gravá-los de ônus real. Porém, o artigo 1.829 do C.C. colocou o cônjuge sobrevivente, ainda que casado com o falecido sob o regime da separação convencional de bens, na qualidade de herdeiro, concorrendo em igualdade de condições com os descendentes e também, numa segunda hipótese, com os ascendentes do de cujus.  

Com isso, mesmo que os nubentes, consciente e deliberadamente, tenham adotado o regime da mais pura e plena separação de bens, na hipótese de algum deles falecer, seus bens particulares se comunicarão com o cônjuge sobrevivente, ainda que este não o deseje ou tenha, expressa e inequivocamente, recusado a condição de herdeiro.  

A mudança no tratamento jurídico estabelecido pelo Código Civil provocou reações desde a promulgação do referido diploma. A respeito do tema, Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery manifestaram sua opinião: "O CC fez uma escolha política: quis, como regra, instituir como herdeiro necessário o cônjuge sobrevivente. É o que se extrai do CC 1845 que, para os fins de sucessão, é a regra fundamental do sistema do CC. (…) Manifestação da doutrina e do público em geral evidenciam, entretanto, que a vontade da lei não corresponde à vontade geral com relação, principalmente, à condição de herdeiro dos casado sob o regime da separação convencional de bens."[4]   

Nesse mesmo sentido, de forma escorreita, a Ministra do STJ interpretou o artigo 1.829 dentro de um sistema em que a escolha do regime de bens é "ato de liberdade conjuntamente exercido", entendendo que "o princípio da exclusividade, que rege a vida do casal e veda a interferência de terceiros ou do próprio Estado nas opções feitas licitamente quanto aos aspectos patrimoniais e extrapatrimoniais da vida familiar, robustece a única interpretação viável do art. 1.829, inc. I, do CC/02, em consonância com o art. 1.687 do mesmo código, que assegura os efeitos práticos do regime de bens licitamente escolhido, bem como preserva a autonomia privada guindada pela eticidade." 

De fato, a opção paternalista do legislador em equiparar o cônjuge a herdeiro independentemente de ele, no exercício de sua autonomia de vontade, ter optado pela separação absoluta de bens, ocasionou o extermínio do regime da separação convencional de bens na hipótese de falecimento de um dos cônjuges.

Sem contar que, em contrasenso à evolução da sociedade, vinculou às relações matrimoniais um caráter eminentemente patrimonial, comprometendo a idéia de que, ao menos formalmente, elas poderiam se desenvolver unicamente por afeto recíproco, e não por interesses financeiros.  Em outras palavras, ainda que os envolvidos não queiram[5] contaminar-se e/ou sofrer influência econômica na sua relação matrimonial, na hipótese de falecimento, inevitavelmente, um deles herdará os bens do cônjuge falecido.

Em linhas gerais, entende-se que o legislador, ao contrário do que argumentaram Nelson Nery e Rosa Maria de Andrade Nery, não "fez uma escolha política", mas, sim, presumiu a incapacidade, ao menos relativa, do interessado em contrair matrimônio. Se não for essa a interpretação mais adequada, deduz-se que o legislador teria agido sem o cuidado técnico necessário em suas escolhas legislativas, pois, de um modo um tanto audacioso, estaria ceifando a autonomia da vontade privada garantida desde as Ordenações do Reino (Ordenações Filipinas), que em seu artigo 1.603 garantiam que "todos os casamentos feitos em nossos Reinos e Senhorios se entendem serem feitos por Carta de ametade, salvo quando entre as Partes outra coisa for acordada"[6], ou seja, o legislador português garantia plena liberdade de convenção antenupcial.  

Aliás, a respeito desse aspecto da norma Filipina, Pontes de Miranda comentava: "A estrutura da regra jurídica é assaz conhecida dos juristas. Formula-se a regra cogente para o caso em que não haja vontade das partes. Donde, em verdade, haver, em primeira plana, o princípio da liberdade convencional; depois, a norma para o caso em que as partes não tenham usado dessa liberdade."[7]  

Nada obstante isso, o C.C., ignorando a tradição luso-brasileira, os princípios gerais do direito, especialmente o da autonomia da vontade e as liberdades individuais, regrou além e, como o bom pai de família, seguiu a linha do Código Civil espanhol[8] e implementou normas que desconsideram a vontade das partes, tornando inútil a opção pelo regime da separação de bens.  

Com isto, segundo a interpretação literal do artigo em comento, ao optarem pelo regime da separação de bens, e presumirem que os bens de cada um não se comunicarão, o casal interessado em contrair matrimônio se dirige até um Cartório de Registro Civil, formaliza o seu casamento por meio de uma Certidão, apõe na mesma a opção pelo regime da separação, e assina pacto antenupcial regulando os respectivos direitos e deveres. Entretanto, quando do falecimento de qualquer um deles, a sua vontade será completamente ignorada.  

A incongruência verificada no tratamento legal do regime da separação convencional de bens no C.C. e no seu desvirtuamento  pelo legislador se deu, apenas, em caso de morte, ou seja, na hipótese de quebra do vínculo matrimonial em virtude do falecimento de um dos cônjuges.  

Situação diferente é a disciplina jurídica traçada para a quebra do vínculo matrimonial em vida, uma vez que o fim do casamento, por separação ou divórcio, não torna o cônjuge, casado sob o regime da separação convencional de bens, herdeiro concorrente com os descendentes[9] do separado ou do divorciado. Com isso, a extinção do matrimônio que ocorrer durante a vida dos cônjuges não afeta a essência ou a própria definição do regime da separação convencional de bens, que se mantém exatamente como deve ser.  

O porquê dessa nova subdivisão também não sabe, uma vez que mesmo tendo sido o artigo 1.845 do C.C. claro ao incluir o cônjuge, juntamente com descendentes e ascendentes, como herdeiro necessário, é sabido que, muito embora o passamento não seja uma questão agradável para se tratar quando da celebração do casamento, certo é que o tratamento jurídico-normativo dado a determinado regime de bens quando do fim do casamento deve ser o mesmo, seja quando em virtude da sucessão seja se por dissolução por separação ou divórcio. 

Como se vê, é uma situação delicada de se solucionar, cabendo aos Tribunais e à doutrina elaborar soluções interpretativas harmônicas e que não comprometam os princípios e as regras do ordenamento jurídico brasileiro, considerado em sua unidade. Embora os limites fronteiriços do acórdão em que foi Relatora a Ministra Nancy Andrighi só beneficiem os envolvidos na demanda, pode-se dizer que, ao menos, já se tem uma manifestação otimista do guardião do ordenamento jurídico federal, abrindo-se uma perspectiva positiva para que num futuro próximo seja não apenas lícita, mas também executável a possibilidade de os nubentes estipularem, sobre os bens, o que lhes aprouver, antes de celebrado o casamento[10].


Cristiane Caires Geroti  é Advogada em São Paulo e sócia do IBDFAM
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[1] Art. 1.829: "A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares; II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge; III – ao cônjuge sobrevivente; IV – aos colaterais."

[2] Art. 1.687: "Estipulada a separação de bens, estes permanecerão sob a administração exclusiva de cada um dos cônjuges, que os poderá livremente alienar ou gravar de ônus real."

[3] Miranda, Pontes de, Tratado de Direito Privado / Parte Especial – Tomo VIII – Dissolução da sociedade conjugal – Eficácia jurídica do casamento, pag. 343. Rio de Janeiro: Borsoi, 1955.

[4] NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade, Código civil comentado /. – 4. ed. rev., ampl. e atual. até 20 de maio de 2006. – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

[5] Ou ainda que prefiram optar pela mais absoluta e completa separação de bens.

[6] Livro IV, Título 46, Ordenações Filipinas.

[7] Ibidem, pág. 224/225.

[8] Código Civil Espanhol  – Artigo 1.903 – Editora Universidade Portucalense – 2002.

[9] Seguindo a ordem da vocação hereditária do Art. 1.829 do Código Civil.

[10] Remissão ao Artigo 1.639 do Código Civil: "É lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhe aprouver."

 

 

Fonte: IBDFam