O CPC/2015, embora tenha feitos bons avanços no Direito de Família, perdeu boas oportunidades para retificar e acertar o passo com a realidade procedimental dessa área. A execução de alimentos, por exemplo, continua sendo um verdadeiro calvário e beneficiando a parte economicamente mais forte em razão da sua morosidade. No entanto, o mais grave erro foi ter tentado ressuscitar o inútil instituto da separação judicial. Na prática, não conseguiu, pois ele é natimorto. Inconstitucional. Além de dezenas de julgados dos tribunais estaduais, o STJ já havia se posicionado firmemente pela inadequação do instituto da separação judicial (…) "com a recente EC 66 de 2010, a qual em boa hora aboliu a figura da separação judicial" (Resp 912.926. rel. min. Luis Felipe Salomão, pub. 7/6/2011) e "com o fim do instituto da separação judicial impõe-se reconhecer a perda da importância da identificação do culpado pelo fim da relação afetiva" (STJ, EDcl no Recurso Especial 922.462 – SP, rel ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, pub. 14/4/2014)
A Emenda Constitucional 66/2010 elaborada pelo IBDFam (Instituto Brasileiro de Direito de Família), e apresentada pelo então deputado baiano Sérgio Barradas Carneiro, fez seis anos no último dia 12. Ela simplificou o sistema de divórcio no Brasil alterando o artigo 226, parágrafo 6º, eliminando prazos para se requerer o divórcio, extirpando o inadequado instituto da separação judicial e, consequentemente, sepultando a discussão de culpa pelo fim da conjugalidade. Assim, trouxe mais responsabilidade para os cônjuges, pois a partir de então são eles quem decidem tudo sobre o divórcio, com interferência mínima do Estado. Foi o coroamento da luta histórica do divórcio no Brasil, já que em 1977, quando foi aceito aqui, tinha muitas amarras, que só caíram com a EC/66. Na era da constitucionalização do Direito Civil, é inadmissível que uma lei infraconstitucional tenha força normativa maior que a própria Constituição, seja por não recepção, ou de uma possível inconstitucionalidade superveniente, como é o caso da Lei 13.105/2015 (CPC). Se o novo texto do parágrafo 6º do artigo 226 da Constituição da República retirou de seu corpo a expressão separação judicial, não há como mantê-la no CPC-2015. A mudança constitucional teve por finalidade a extinção definitiva da separação judicial, que se tornara anacrônica, como substituta do desquite ou do anterior divórcio canônico, pois apenas compreensível no modelo de indissolubilidade do matrimônio (LOBO, Paulo in Revista IBDFAM V. 13, P. 25-35. ___ 2016).
O sistema dual para romper o vínculo legal do casamento, ou seja, separação judicial e divórcio, tem suas raízes e justificativas, principalmente, em uma moral religiosa. Não se justifica mais manter essa duplicidade de tratamento legal. Não é necessário e nem faz sentido algum que os cônjuges passem por dois processos. A separação judicial é um “limbo”. A pessoa não é nem casada nem divorciada. Fica no “purgatório” até se divorciar. Não cabe mais essa concepção em um Estado laico. Tentar ressuscitá-la no CPC-2015 é um retrocesso incompreensível e um atentado ao principio da vedação do retrocesso social. A tendência evolutiva dos ordenamentos jurídicos ocidentais é que o Estado interfira cada vez menos na vida privada e intimidade dos cidadãos: concepções morais religiosas, quer unânimes, quer majoritárias, quer minoritárias, não podem guiar decisões estatais, devendo ficar circunscritas à esfera privada. A crença religiosa e espiritual — ou a ausência dela, o ateísmo serve principalmente para ditar a conduta e a vida privada do individuo… Paixões religiosas de toda ordem hão de ser colocadas à parte na condução do Estado (…) (STF, ADP54/DF, rel. min. Marco Aurélio de Melo, J. 12/4/12).
A expressão separação aparece oito vezes no CPC/2015. Porém, apenas no artigo 23, III tem-se a expressão separação judicial que é para preservar o ato jurídico perfeito, ou seja, as separações judiciais concretizadas antes da EC 66/2010. Para os demais artigos do CPC/2015, notadamente 53, I (foro competente); 189, II (segredo de Justiça), parágrafo 2º; 693; 731; 732 e 733, usa somente a expressão “separação”, devendo ser entendida como separação de fato e ou de corpos, por absoluta incompatibilidade com a ordem constitucional. Assim, devem ser interpretadas apenas como dissolução de união estável ou separação de corpos. Qual a razão de se querer manter no ordenamento jurídico brasileiro um instituto tão inadequado? Ora, aqueles que por razões religiosas não aceitam o divórcio, ou não querem se divorciar, até mesmo na esperança de restabelecer o vínculo conjugal, podem fazer uma separação de corpos, com um simples documento particular ou mesmo judicial, por acordo ou litigiosamente, ou por escritura pública.
Defender a manutenção da separação judicial significa defender que ainda é possível discutir culpa pelo fim da conjugalidade. Pra que dois institutos, dois processos judiciais ou administrativos se basta um? Será que as razões de mercado falam mais alto? Não é ético.
Pôr fim à conjugalidade não é nada fácil nem simples, do ponto de vista psíquico, mesmo quando consensual. Envolve dor e sofrimento, ainda que tenha um sentido de libertação. É um ato de coragem e de responsabilidade. Às vezes, é desejo, às vezes, necessidade. É o momento em que se depara, novamente, com o vazio existencial, o desamparo estrutural do ser humano. Depara-se consigo mesmo ao constatar que aquele que se imaginava ser o complemento da vida já não sustenta mais esse lugar de tamponamento. E, assim, a formalização do fim da conjugalidade, seja divórcio ou união estável, cumpre uma importante função no sentido de ajudar na elaboração do luto do fim da conjugalidade. É um importante e necessário ritual de passagem. A sabedoria está em não permitir que isso se torne uma tragédia. E o CPC/2015, ao tentar ressuscitar a separação judicial, estaria abrindo a possibilidade de discussão de culpa, que era um dos maiores sinais de atraso no ordenamento jurídico brasileiro. Interpretar os artigos do CPC-2015 como ressurreição de separação judicial, além de significar um grande retrocesso, pois em nada ajuda no difícil fim da conjugalidade, significa também, e principalmente, voltar à procura de um culpado, que em outras palavras significa espalhar o mal, a maledicência e a vingança. Em vez de levar os restos do amor para o Judiciário, para que o Estado-juiz, que não deveria entrar nessa seara, diga quem tem razão, melhor invocar a arte, que assim como o Direito de Família trata da mesma humanidade e chega antes, sabe mais das coisas do que o Direito, como se vê na poesia de Paulo Lemiski: "O amor, então, também acaba?/ Não que eu saiba./ O que eu sei é que se transforma/ Numa matéria-prima/ Que a vida se encarrega de transformar em raiva/ ou em rima".
Rodrigo da Cunha Pereira é advogado e presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), mestre (UFMG) e doutor (UFPR) em Direito Civil e autor de livros sobre Direito de Família e Psicanálise.
Fonte: Conjur