CELSO BEDIN – Tabelião de Protesto de Santos
Graduado em Direito pela USP em 1970, foi Juiz de Direito
(1976/1991) e Juiz Federal (1993/2005) em São Paulo
A regra-matriz constitucional do ISSQN encontra-se no art. 156, III, da Constituição Federal de 1988, “in verbis”:
“Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:
…
III – serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar (grifei).
…”.
Não apenas porque se trata de norma de eficácia limitada, cuja aplicabilidade depende, expressamente, de legislação infraconstitucional, mas também porque, como é sabido, “cabe à lei complementar estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, base de cálculo e contribuintes” (art. 146, III, “a”, da Constituição Federal de 1988), editou-se a Lei Complementar Federal nº 116, de 31/07/2003, que “dispõe sobre o imposto sobre serviços de qualquer natureza, de competência dos municípios e do distrito federal”.
No art. 1º desta Lei lê-se:
Art. 1o O Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, de competência dos Municípios e do Distrito Federal, tem como fato gerador a prestação de serviços constantes da lista anexa, ainda que esses não se constituam como atividade preponderante do prestador.
§ 1o O imposto incide também sobre o serviço proveniente do exterior do País ou cuja prestação se tenha iniciado no exterior do País.
§ 2o Ressalvadas as exceções expressas na lista anexa, os serviços nela mencionados não ficam sujeitos ao Imposto Sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação – ICMS, ainda que sua prestação envolva fornecimento de mercadorias.
§ 3o O imposto de que trata esta Lei Complementar incide ainda sobre os serviços prestados mediante a utilização de bens e serviços públicos explorados economicamente mediante autorização, permissão ou concessão, com o pagamento de tarifa, preço ou pedágio pelo usuário final do serviço.
§ 4o A incidência do imposto não depende da denominação dada ao serviço prestado
Adentrando imediatamente no ponto que nos interessa no momento, observa-se, de plano, que ao delimitar o aspecto material da hipótese de incidência do imposto, definida no “caput”, o § 3º deste artigo preceitua que os “serviços prestados mediante a utilização de bens e serviços públicos explorados economicamente mediante autorização, permissão ou concessão” podem ser tributados. Logo, os serviços públicos explorados mediante delegação, como é o caso dos serviços notariais e de registro, não podem sê-lo, pois claramente encontram-se fora do âmbito material da hipótese de incidência.
Explico. O conceito jurídico de serviço público varia conforme o critério que se adote. Em sentido formal, corresponde o serviço público à tarefa exercida sob a influência de normas de direito público; em sentido material, corresponde à atividade que atende os interesses ou necessidades da coletividade; em sentido orgânico — ou subjetivo —, corresponde à atividade prestada pelo Estado.
Sem rigor doutrinário, pode-se dizer que o serviço público corresponde a toda atividade desempenhada direta ou indiretamente pelo Estado, visando solver necessidades essenciais do cidadão, da coletividade ou do próprio Estado.
A teor do art. 175 da Constituição Federal de 1988, “incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos”.
A prestação indireta ou, por outras palavras, o traspasse da execução do serviço público, decorre: a) da instituição de pessoas jurídicas de direito público ou de direito privado criadas com essa finalidade; b) de concessões; c) de permissões.
Mas não é só. O Direito Público brasileiro conhece, ainda, outra forma indireta de prestação de serviço público essencial, que é a “delegação”.
Com efeito. O art. 236 da Constituição Federal de 1988 estabelece que “os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público”.
Concessão, permissão e delegação não se confundem. São institutos profundamente diferentes, com regimes jurídicos específicos e especiais.
Começa que da “concessão” e da “permissão” cuida a Lei nº 8.987, de 13/02/1995, que instituiu o “regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos” previsto no art. 175 da Constituição, enquanto que a “delegação” é objeto da Lei nº 8.935, de 18/11/1994, que “regulamenta o art. 236 da Constituição Federal, dispondo sobre serviços notariais e de registro”.
Como averbou o consagrado Professor CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO ao dissertar sobre os “particulares em colaboração com a Administração”, “esta terceira categoria de agentes é composta por sujeitos que, sem perderem sua qualidade de particulares — portanto, de pessoas alheias à intimidade do aparelho estatal (com exceção única dos recrutados para serviço militar) —, exercem função pública, ainda que às vezes apenas em caráter episódico. Na tipologia em apreço reconhecem-se: … d) concessionários e permissionários de serviços públicos, bem como os delegados de função ou ofício público, quais os titulares de serventias da Justiça não oficializadas, como é o caso dos notários, ex vi do art. 236 da Constituição, e bem assim outros sujeitos que praticam, com o reconhecimento do Poder Público, certos atos dotados de força jurídica oficial, como ocorre com os diretores de Faculdades particulares reconhecidas.” (cf. “Curso de Direito Administrativo”, Ed. Malheiros, 17ª edição, pág. 232).
Pois bem. Sabendo-se que “a lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias” (art. 110 do Código Tributário Nacional), e que no Direito Tributário material ou substantivo (obrigação tributária) não há espaço para a analogia e nem tampouco para a equidade, impõe-se concluir que o serviço público executado sob a forma de “delegação” está fora da hipótese de incidência do ISSQN definida no “caput” do art. 1º da Lei Complementar Federal nº 116/2003.
Em reforço desta conclusão, vale lembrar, ainda, que a parte final do § 3º do art. 1º da Lei Complementar Federal nº 116/2003 refere-se a “pagamento de tarifa, preço ou pedágio pelo usuário final do serviço”, e desde o Brasil colônia os serviços “notariais e de registro” são remunerados através de “emolumentos”.
Poderia o legislador complementar ignorar este fato? Claro que não, tanto mais que no § 2º do art. 236 da Constituição Federal de 1988, está dito:
“Art. 236.
…
§ 2º. Lei federal estabelecerá normais gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro”.
…”.
Com efeito, em face da natureza da atividade remunerada, serviço público específico e divisível, essencial à subsistência de qualquer Estado de Direito e que alcança a todos os membros do organismo social, sua utilização mostra-se inevitável e o seu pagamento cogente. Essas características permitem incluir os emolumentos sob a epígrafe dos tributos, mais especificamente como pertencentes à categoria das taxas.
Bem a propósito, atingindo em cheio o “punctum saliens” da questão, o Prof. ÁLVARO MELO FILHO, em artigo de doutrina publicado na revista eletrônica “Consultor Jurídico” do dia 15/08/2003 sob o título “Incidência do ISS sobre emolumentos é inconstitucional”, disse:
“É imperioso destacar que o Supremo Tribunal Federal já construiu remansosa, iterativa e pacífica jurisprudência no sentido de que os emolumentos (art. 236, § 2º da CF e Lei Federal nº 10.169, de 29.12.2000) têm a natureza tributária de taxa. Com efeito, na ADI 1378 MC/ES, cujo Relator foi o Min. Celso de Mello (DJ de 30.05.97, p. 23175) está expresso de forma clara e induvidosa que:
“A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou orientação no sentido de que as custas judiciais e os emolumentos concernentes aos serviços notariais e registrais possuem natureza tributária, qualificando-se como taxas remuneratórias de serviços públicos, sujeitando-se, em consequência, quer no que concerne a sua instituição e majoração, quer no que se refere a sua exigibilidade, ao regime jurídico-constitucional pertinente a essa especial modalidade de tributo vinculado, notadamente aos princípios fundamentais que proclamam, dentre outras, as garantias especiais (a) da reserva de competência impositiva, (b) da legalidade, (c) da isonomia e (d) da anterioridade”. (grifou-se)
Se, por absurdo, fossem consideradas insuficientes tão relevantes e fundamentadas razões jurídicas promanadas do acatado e eminente Ministro, basta conferir no RE 116208 (in RTJ 132/867), na ADI 948 (in RTJ 172/778) e na ADI 2040 (in RTJ 173/75) que são alguns dos decisórios, todos com semelhante interpretação, reforçando a posição uníssona e coerente da Corte Suprema. E, para dissipar, de vez, quaisquer dúvidas sobre a natureza tributária dos emolumentos, atente-se para o art. 5º da Lei nº 10.169/00 ao dispor que “o valor dos emolumentos poderá sofrer reajuste, publicando-se as respectivas tabelas, até o último dia do ano, observado o princípio da anterioridade”.
Nesse contexto, se os emolumentos, sem tergiversações de seu sentido e alcance, têm a natureza jurídica de taxa, dessume-se que esta
tipologia tributária não pode transfundir-se como base de cálculo para a exigibilidade do ISS, outra espécie do gênero tributo. Vale dizer, está-se diante de um tributo (ISS – imposto) incidindo sobre outro tributo (Emolumentos – taxa), o que, nos planos fático e jurídico, vulnera e macula ditames e princípios constitucionais e tributários.
Na esteira deste raciocínio, não se pode deslembrar que “a atividade notarial e registral, ainda que executada no âmbito de serventias extrajudiciais não oficializadas, constitui, em decorrência de sua própria natureza, função revestida de estatalidade, sujeitando-se, por isso mesmo, a um regime jurídico de direito público” (ADI 1378 já referida). Vale dizer, as atividades notariais e registrais destinadas “a garantir a publicidade, a autenticidade, a segurança e a eficácia dos atos jurídicos” (Lei nº 8.935/94, art. 1º), efetivadas “em caráter privado por delegação do Poder Público” (CF, art. 236), no dizer do insigne Min. Celso de Mello no acórdão já aludido, “não descaracteriza a natureza essencialmente estatal dessas atividades de índole administrativa”, donde se deduz que se trata de “serviços públicos”, até porque “dotados de fé pública”, na dicção do art. 3º da Lei nº 8.935/94.
Cumpre anotar, de outra parte, que a referida Lei Complementar nº 116/03, no § 3º do art. 1º prescreve literalmente que:
“Art. 1º – ………………..
§ 3º – O imposto de que trata esta Lei Complementar incide ainda sobre os serviços prestados mediante a utilização de bens e serviços públicos explorados economicamente mediante autorização, permissão ou concessão, com o pagamento de tarifa, preço ou pedágio pelo usuário final do serviço.” (grifou-se)
Nesse diapasão, extrai-se do texto transcrito que a cobrança do ISS pode ocorrer nas hipótese de autorização, permissão ou concessão, o que não é o caso dos serviços notariais e registrais que são exercidos por “delegação do Poder Público”.
É cediço que o legislador, especialmente o constituinte, não faz uso de sinonímia. Por isso, não há como confundir-se “delegação” (art. 236, CF) com “concessões, permissões e autorizações”, igualmente constantes do Texto Constitucional (arts. 21, XI e 223, caput), tornando patente que se trata de hipóteses absolutamente distintas e inconfundíveis. Ou seja, a Constituição Federal prevê expressamente os quatro institutos e não um, e, por imperativo lógico-interpretativo, conclui-se que há diferenças entre eles, sob pena de olvidar-se a lição de Carlos Maximiliano de que “não se presumem, na lei, palavras inúteis”. Outrossim, não se pode condenar à inutilidade categorias jurídicas com identidade conceitual já consagradas e sedimentadas na legislação, doutrina e jurisprudência pátria, e, por isso mesmo, acolhidas e insculpidas na Lei Maior, sendo defesa ou vedada qualquer
alteração conceitual por normas de inferior hierarquia ou interpretação imprópria e distorcida.
Recorde-se que concessão é o instituto mediante o qual o Estado atribui a terceiro o exercício de um serviço público (nunca sua titularidade, que é intransferível), que será prestado em nome próprio, por conta e risco do concessionário, nas condições fixadas e alteráveis unilateralmente pelo Poder Público, mas sob a garantia contratual de um equilíbrio econômico e financeiro, cobrado geralmente por meio de tarifas e com prazo determinado de duração. A concessão de obra pública é o mais comum exemplo desta tipologia.
Já o instituto da permissão pode ser definido como a atribuição de um serviço público, a título precário, mediante licitação e através do chamado contrato de adesão, feita pelo Poder Público à pessoa física ou jurídica que demonstre capacidade para seu desempenho, por sua conta e seu risco. Um exemplo sempre repontado é o de facultar a instalação de bancas de jornais ou de tabacarias em logradouro público.
A autorização é o ato unilateral pelo qual a Administração, discricionariamente, faculta o exercício de atividade material, tendo, como regra, caráter precário, de que são exemplos o porte de arma ou a autorização para exploração de jazida mineral.
A delegação, para os fins a que se propõe este trabalho, é o ato que envolve, do ângulo do delegante, forma de representação do poder estatal ao credenciar seu delegado, e, sob o prisma do delegado (notários e registradores), é vinculada ao cargo público atribuído ao seu exercente, em caráter permanente, criado por lei, com denominação própria, dependente de aprovação em concurso público e submetido à fiscalização pelo Poder Judiciário. Nesse passo, traz-se à colação, exemplos deduzidos, com maestria, por Hely Lopes Meirelles para quem os serventuários de ofícios não estatizados, os leiloeiros, os tradutores e intérpretes públicos, as demais pessoas que recebem delegação para a prática de alguma atividade estatal ou serviço de interesse coletivo.
É importante registrar que o festejado mestre Celso Antônio Bandeira de Mello, no seu “Curso de Direito Administrativo”, Ed. Malheiros, S. Paulo, 9ª ed, p. 450, ressalta que delegação “como bem se vê na linguagem constitucional, quadra melhor para designar a investidura no desempenho de atividade jurídica – e não atividade material (caso da concessão). De fato, o art. 236 da Lei Maior serve-se da voz “delegação” para atividades eminentemente jurídicas, as notariais e de registro, ao passo que no art. 21, XI e XII, refere-se a concessões para serviços materiais como os telefônicos, telegráficos, de radiodifusão…..”. Por isso, pode-se asseverar que a delegação envolve atividades não econômicas, enquanto a concessão, a permissão e a autorização albergam atividades econômicas.
Seria verdadeiramente absurda, porque expressiva de delirante autoritarismo e desprezo pela Constituição a exigibilidade de ISS sobre os serviços notariais e registrais, pois, como adverte Ferrara (in “Interpretação e Aplicação das Leis”, 1937, S. Paulo, Saraiva & Cia. Editores, p. 28), “o intérprete deve apurar o conteúdo da vontade que alcançou a expressão em forma constitucional e não já as volições alhures manifestadas ou que não chegaram a sair do campo intencional. Pois que a lei não é o que o legislador quis exprimir, mas tão-somente aquilo que ele exprimiu em forma de lei”. E não é outra a lição de Rui Barbosa, que se ajusta como uma luva à hipótese sub examine, ao averbar que “em presença de um texto claro, preciso, inequívoco, não há que estar argumentando como se nos achássemos ante um enunciado incompleto ou indistinto, do qual houvéssemos de extrair por ilações ou deduções a ilação mais plausível. (Parecer in Revista do Supremo Tribunal, vol. 9, p. 305). (…) Aqui não há controvérsias de interpretação. Interpretação cessat in claris. A Constituição modelou a expressão da sua vontade em termos inequívocos”.
Impende deixar claro, ainda, que os emolumentos não se confundem com “tarifa, preço ou pedágio” (§ 3º do art. 1º da LC nº 116/03), até porque sua fixação ou quantificação resulta de lei, de cada unidade federativa, no exercício de competência concorrente, para atendimento das peculiaridades locais, ou seja, não é tarifa, nem preço, nem pedágio, dado que, nestas hipóteses, é o valor cobrado pela prestação de serviços públicos por empresas públicas, sociedades de economia mista, empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos. Os ofícios notariais e registrais não são empresa pública ou privada e nem sociedade de economia mista, mas titularizados por pessoas físicas responsáveis por aqueles serviços, inviabilizando, também por esta ótica, sua inclusão na lista definidora do ISS anexa à LC nº 116/03.
Diante das observações feitas, deflui-se e conclui-se, sem o mais mínimo contorcionismo exegético, sobretudo quando a mens legis não dá azo a interpretação diversa, que delegação e emolumentos são expressões alheias e inexistentes no § 3º do art. 1º da LC nº 116/03, e, conseqüentemente, refogem à órbita de incidência do ISS, sendo, assim, insustentável a mantença do item 21.01 da nova Lista de Serviços anexa àquele diploma legal, por afrontar postulados e normas constitucionais, malferir a legislação infra-legal aplicável, ofender a doutrina e atropelar a jurisprudência sobre a matéria aqui examinada.
Alfim, como preleciona Konrad Hesse, “todos os interesses momentâneos – ainda quando realizados – não logram compensar o incalculável ganho resultante do comprovado respeito à Constituição”, especialmente quando, o apontado item 21.01, da tão realçada Lista de Serviços da LC nº 116/03, classifica-se como hipótese tributária abusiva, visivelmente írrita, insubsistente, nula e desvestida de qualquer validade e consistência jurídicas, e, portanto, insusceptível de produzir quaisquer efeitos jurídicos.”
Em suma, destas premissas extraem-se duas conclusões:
1 – se os emolumentos cobrados pelos serviços prestados pelas serventias extrajudiciais possuem natureza de taxa, é óbvio que não se confundem com tarifa, preço ou pedágio, de que fala o § 3º do art. 1º Lei Complementar nº 116/2003;
2 – os serviços notariais e de registro, que são executados mediante DELEGAÇÃO e remunerados através de EMOLUMENTOS por imposição expressa da Constituição Federal de 1988, não são abrangidos pela hipótese de incidência do ISSQN.
Importante ressaltar que não se está aqui defendendo a tese de que os serviços notariais e de registro estão albergados pela imunidade de que fala o art. 150, VI, “a”, da Constituição Federal (imunidade recíproca).
Imunidade, no dizer do Desembargador Federal e ilustre Professor HUGO DE BRITO MACHADO, “é o obstáculo criado por uma norma da Constituição que impede a incidência de lei ordinária de tributação sobre determinado fato, ou em detrimento de determinada pessoa, ou categoria de pessoas. É possível dizer-se que a imunidade é uma forma qualificada de não incidência. Realmente, se há imunidade, a lei tributária não incide, porque é impedida de fazê-lo pela norma superior, vale dizer, pela norma da Constituição” (“Curso de Direito Tributário”, Ed. Malheiros, 16ª edição, pág. 169).
Por outras palavras, “ao proceder à repartição do poder impositivo, pelo mecanismo da competência tributária, a Constituição Federal coloca fora do campo tributável reservado à União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios, certos bens, pessoas e serviços, obstando assim — com limitar o âmbito de incidência da tributação — o exercício das atividades legislativas do ente tributante”, ensina JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES (“Isenções Tributárias”, Ed. Sugestões Literárias, 1ª edição, pág. 206).
Persegue-se, aqui, o reconhecimento de que os serviços notariais e de registro, na disciplina da Lei Complementar nº 116/2003, estão fora do campo de incidência da norma que instituiu o tributo.
O legislador infraconstitucional, podendo instituir o imposto sobre os serviços notariais e de registro, absteve-se de fazê-lo por questões de política tributária.
Didaticamente, o Professor HUGO DE BRITO MACHADO ensina que “as fontes da obrigação tributária são a lei e o fato gerador. A primeira é fonte formal. A segunda é fonte material. Ambas indispensáveis. Não há obrigação tributária sem a descrição legal da hipótese de seu surgimento. Mas só a descrição legal não basta. É preciso que ocorra o fato descrito na hipótese. A previsão legal — hipótese de incidência — mais a concretização desta — fato gerador — criam a obrigação tributária” (obra citada, pág. 100).
Para o insigne Professor AIRES F. BARRETO, “a hipótese de incidência de norma jurídica contém a descrição de um fato que, se e quando acontecido, dará origem à obrigação de pagar tributo. O núcleo dessa descrição do fato é designado critério ou aspecto material, ao qual devem conjugar-se as coordenadas de tempo e de lugar” (“INSS na Constituição e na Lei “, Ed. Dialética, 2ª edição, pág. 278).
Logo adiante este notável mestre assevera:
“Em suma, a incidência da norma tributária (como de toda e qualquer norma jurídica) depende, como ensina PONTES DE MIRANDA, da ocorrência de suporte fático suficiente; ou seja, somente haverá incidência da norma jurídica tributária quando, num dado ponto do tempo coexistirem:
a) formulação normativa, íntegra, completa, ou seja, hipótese de incidência consistente na descrição de fato hipotético com todos os seus aspectos e respectivo mandamento; e
b) fato concreto, sucedido no mundo fenomênico que exiba todos os aspectos descritos, abstratamente, na norma jurídica tributária.
Até aqui, portanto, nenhuma peculiaridade se aponta às normas jurídicas tributárias, em confronto com as normas jurídicas em geral. A norma jurídica tributária, para incidir, exige, como toda norma jurídica (frise-se mais uma vez), suporte fático suficiente, íntegro, completo.
Avivada a noção de que sem suporte fático suficiente é juridicamente impossível cogitar-se de incidência de qualquer norma jurídica (ou, dito de outra forma, repisada a noção de que a incidência de qualquer norma jurídica ocorre, se e quando se tem suporte fático suficiente), impende anotar, com destaque, que, tratando-se de norma jurídica que institui tributo, a expressão “suficiência do suporte fático” alude a conceito mais restrito, mais específico do que aquele a que se refere, quando se têm normas jurídicas não tributárias.
Assim, nas normas jurídicas tributárias, as exigências do sistema constitucional consubstanciadas na estrita legalidade e na tipicidade determinam que, por “suficiência do suporte fático”, tome-se a) não só a criação dos “tipos” tributários de forma esgotante e exaustiva, pela própria lei, como b) a absoluta, cabal e perfeita equivalência entre o conceito (tipo) abstrato descrito pela lei e o conceito do fato concretamente ocorrido” (obra citada, págs. 282/283).
Em outra passagem da mesma obra, cuidando especificamente do “Regime Jurídico do Tributo”, “o Professor AIRES F. BARRETO enfatiza, mais uma vez:
“Em primeiro lugar, o princípio da estrita legalidade em matéria de tributo importa dúplice exigência para sua realização:
a) que a lei, no sentido orgânico-material, disponha de modo cabal, esgotante, exaustivo, sobre todos os aspectos ou critérios da hipótese tributária, e
b) que o evento ocorrente no mundo fenomênico ostente perfeita correspondência com o fato descrito, hipoteticamente, pela norma jurídica tributária, para que se possa afirmar sua incidência.
O princípio da estrita legalidade, portanto, desdobra-se no princípio da tipicidade; ou seja, além de exigir que a própria lei — e só ela — descreva todos e cada um dos aspectos da hipótese tributária, requer uma perfeita correspondência, uma “aderência capilar”, entre o tipo normativo e o fato concreto, para que possa haver a incidência da norma jurídica tributária.
A insuficiência — por mínima que seja — do fato concreto ou da norma impede o sucesso da incidência e, pois, aborta o surgimento da “obrigação tributária” (obra citada, pág. 283).
De forma simples — peculiar aos grandes mestres —, mas profundamente impregnada de saber jurídico, o Professor ROQUE ANTONIO CARRAZZA, a seu turno, explica:
“A não-incidência é simplesmente a explicitação de uma situação que ontologicamente nunca esteve dentro da hipótese de incidência possível do tributo.
Deveras, não há incidência quando não ocorre fato algum ou quando ocorre um fato tributariamente irrelevante, isto é, que não se ajusta (subsume) a nenhuma hipótese de incidência tributária.
O saudoso mestre GERALDO ATALIBA equiparava, com sua extraordinária didática, a situação de não-incidência tributária ao não-crime. Chegava, até, a falar em fato não-imponível, para aludir ao acontecimento que não realizava a hipótese de incidência tributária.” (“Curso de Direito Constitucional Tributário”, Ed. Malheiros, 18ª edição, pág. 782).
Em síntese, “verificada a inexistência, a falta, a falha de quaisquer dos aspectos da hipótese de incidência tributária ou notado que o fato concreto não ostenta todos e cada um destes mesmos aspectos, não há se falar em incidência tributária nem, por conseguinte, de exigência de tributo. Em resumo, a insuficiência de critérios normativos ou a insuficiência de aspectos materiais presentes no fato examinado implica, inelutavelmente, absoluta impossibilidade de nascimento da obrigação tributária” (AIRES F. BARRETO, obra citada, pág. 286).
Pois bem. Se a hipótese de incidência do ISSQN, clara como a luz do sol, específica que o imposto incidirá somente sobre os serviços traspassados pelo Estado sob as formas de PERMISSÃO e de CONCESSÃO, forçoso é concluir que os serviços objeto de DELEGAÇÃO estão fora do campo de incidência do tributo.
Não é demais lembrar, ainda, que “o emprego da analogia não poderá resultar na exigência de tributo não previsto em lei” (§ 1º do art. 108 do Código Tributário Nacional).
Analogia é o meio de integração — método de preenchimento de lacunas da lei — pelo qual o aplicador da lei, diante de lacuna desta, busca solução para o caso em norma pertinente a casos semelhantes, análogos.
Neste sentido, o consagrado Professor ROQUE ANTONIO CARRAZZA enfatiza:
“Não tem os aplicadores das leis tributárias — A administração Fazendária ou o juiz — qualquer possibilidade de preencher suas lacunas. Quando estas se apresentam devem ser consideradas, na lição precisa de JOSÉ CASALTA NABAIS, “como domínios que o legislador não quis disciplinar, isto é, como lacunas das leis tributárias, quer as intencionais, quer as involuntárias, são insuscetíveis de integração analógica” (obra citada, pág. 380).
Vale insistir: atrelado ao princípio da legalidade tributária, encontra-se o não menos relevante princípio da tipicidade tributária. Tipicidade fechada, diga-se. As leis tributárias não se compadecem com uma interpretação extensiva ou analógica. Pelo contrário, demandam interpretação estrita.
Fosse possível equiparar a “DELEGAÇÃO” à “CONCESSÃO”, teríamos de conferir aos delegados as mesmas garantias atribuídas aos concessionários, dentre as quais ganha vulto a “equação econômico-financeira”. Concertada, torna-se imutável unilateralmente. “Dita equação é a expressão econômica de valor fruível pelo concessionário como resultado da exploração do serviço ao longo da concessão, segundo os termos constituídos à época do ato concessivo” (CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO, “Curso de Direito Administrativo”, Ed. Malheiros, 17ª edição, pág. 664).
Teríamos de assegurar aos notários e registradores, ainda, o direito de transferência da delegação a terceiros, acertando preço e condições de pagamento, faculdade que a lei confere expressamente aos concessionários (art. 27 da Lei nº 8.987, de 13/02/1995), sem prejuízo, evidentemente, de poderem participar de novo certame para provimento de uma outra delegação, exatamente como ocorre com os concessionários de serviços públicos em geral.
Impende anotar, ainda, que não impressiona o fato de a “Lista de Serviços anexa à Lei Complementar nº 116, de 31/07/2003” haver incluído, no item 21.01, os “serviços de registros públicos, cartorários e notariais”.
Surpreende-se, é verdade, aparente contradição entre o conteúdo deste item da lista de serviços e a hipótese de incidência definida no art. 1º da Lei Complementar nº 116/2003.
A contradição, no entanto, é mesmo apenas aparente porque ao incluir os “serviços de registros públicos, cartorários e notariais” na lista de serviços passíveis de incidência do ISSQN, o legislador apenas sinalizou com a possibilidade eventual de fazer incidir o tributo sobre esta espécie de serviço, contentando-se, no entanto, por ora, por razões políticas, com a não-incidência.
Se e quando os serviços notariais e de registro forem objeto de “CONCESSÃO” ou de “PERMISSÃO”, ou, ainda, quando a “DELEGAÇÃO” vier a ser incluída expressamente na hipótese de incidência do tributo em tela, sempre que ocorrer o fato nela descrito, surgirá a obrigação tributária; antes disto, não.
Nem se diga que não há razões jurídicas para o discríme, porque há, e muitas.
Analisando-se os termos da Lei nº 8.935, de 18/11/1994, que regulamenta o art. 236 da Magna Carta, dispondo sobre os serviços notariais e de registro, chega-se à inevitável conclusão de que os tabeliães e registradores não são propriamente “particulares em colaboração com a Administração”, como os qualificou o consagrado Professor CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO, mas verdadeiros “servidores públicos “sui generis”.
Embora remunerados pelos usuários do serviço —- e talvez seja esta a única nota que os distingue do vero servidor público —-, os delegados de serviços notariais e de registro submetem-se, até mesmo por impositivo constitucional (art. 236, § 1º, da Constituição Federal de 1988), ao Poder Hierárquico e Disciplinar do Estado-Juiz, nos mesmos termos e condições de qualquer outro servidor concursado da Administração Pública.
“O poder hierárquico tem por objetivo ordenar, coordenar, controlar e corrigir as atividades administrativas, no âmbito interno da Administração Pública”, ensina o eminente Des. e Prof. HELY LOPES MEIRELLES (“Direito Administrativo Brasileiro”, Ed. Malheiros, 17ª edição, pág. 105).
“Poder disciplinar é a faculdade de punir internamente as infrações funcionais dos servidores e demais pessoas sujeitas à disciplina dos órgãos e serviços da Administração. É uma supremacia especial que o Estado exerce sobre todos aqueles que se vinculam à Administração por relações de qualquer natureza, subordinando-se às normas de funcionamento do serviço ou do estabelecimento que passam a integrar definitiva ou transitoriamente”, complementa o ilustre professor (obra citada, pág. 108).
“Hierarquia pode ser definida como o vínculo de autoridade que une órgãos e agentes, através de escalões sucessivos, numa relação de autoridade, de superior a inferior, de hierarca a subalterno. Os poderes do hierarca conferem-lhe uma contínua e permanente autoridade sobre toda a atividade administrativa dos subordinados. Tais poderes consistem no (a) poder de comando, que o autoriza a expedir determinações gerais (instruções) ou específicas a um dado subalterno (ordens), sobre o modo de efetuar os serviços; (b) poder de fiscalização, graças ao qual inspeciona as atividades dos órgãos e agentes que lhe estão subordinados; (c) poder de revisão, que lhe permite, dentro dos limites legais, alterar ou suprimir as decisões dos inferiores, mediante revogação, quando inconveniente ou inoportuno o ato praticado, ou mediante anulação, quando se ressentir de vício jurídico; (d) poder de punir, isto é, de aplicar as sanções estabelecidas em lei aos subalternos faltosos; (e) poder de dirimir controvérsias de competência, solvendo os conflitos positivos (quando mais de um órgãos se reputa competente) ou negativos (quando nenhum deles se reconhece competente) e (f) poder de delegar competências ou de avocar, exercitáveis nos termos da lei” assentou de modo lapidar, como sempre, o mestre CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO (“Curso de Direito Administrativo”, Ed. Malheiros, 17ª edição, págs. 140/141).
Pois bem. Por força da Lei nº 8.935, de 18/11/1994, notários e registradores do Brasil estão sujeitos a todas estas formas de manifestação de poder do Estado, submetendo-se às ordens emanadas da Corregedoria Geral da Justiça e do Juízo Corregedor Permanente, que de modo efetivo e constante —- permanente —- fiscalizam a execução dos atos objetos da delegação, revendo ou anulando-os sempre que os encontra em desconformidade com as leis e regulamentos próprios, dirimindo controvérsias e punindo, inclusive com a perda da delegação — pena similar à de demissão, que é a mais grave cominada ao servidor público estável —, as infrações disciplinares (art. 32 da Lei nº 8.935, de 18/11/1994).
Pode-se afirmar, com boa dose de segurança, que a forma de “remuneração” é o único ponto de distinção entre os notários e registradores, de um lado, e o servidor público comum, de outro. Igualam-se até mesmo na forma de investidura: o concurso público de provas, ou de provas e títulos.
Permissionários e concessionários, ao contrário, rendem vassalagem apenas aos termos do contrato, nada mais. Tem a garanti-los, ademais, o “equilíbrio
econômico e financeiro do contrato”, garantia de suma importância, que no entanto não beneficia os delegados de serviço público.
Na dicção do eminente Ministro CELSO DE MELLO, do C. Supremo Tribunal Federal, que por unanimidade deferiu liminar na ADI nº 1378/ES (DJ 30/05/1997, p. 23175), “a atividade notarial e registral, ainda que executada no âmbito de serventias extrajudiciais não oficializadas, constitui, em decorrência de sua própria natureza, função revestida de estatalidade, sujeitando-se, por isso mesmo, a um regime estrito de direito público. A possibilidade constitucional de a execução dos serviços notariais e de registro ser efetivada “em caráter privado, por delegação do poder público” (CF, art. 236), não descaracteriza a natureza essencialmente estatal dessas atividades de índole administrativa. – As serventias extrajudiciais, instituídas pelo Poder Público para o desempenho de funções técnico-administrativas destinadas “a garantir a publicidade, a autenticidade, a segurança e a eficácia dos atos jurídicos” (Lei n. 8.935/94, art. 1º), constituem órgãos públicos titularizados por agentes que se qualificam, na perspectiva das relações que mantêm com o Estado, como típicos servidores públicos (original sem grifo).”
Do corpo deste v. aresto extraem-se, ainda, importantes excertos:
“Não se pode desconsiderar, neste ponto, a “comunis opinio doctorum”, que, sem maiores disceptações, classifica os Serventuários entre os servidores públicos, eis que — conforme adverte AGUIAR DIAS — “só por supersticioso apego a essa tradição abandonada (a da atribuição dos cartórios a título de propriedade), continuaríamos a negar ao serventuário de Justiça a condição de funcionário público” (RDA 31/320).”
…
“Daí a procedente observação do Min. CASTRO NUNES, em voto proferido neste Supremo Tribunal Federal, quando, após destacar que as Serventias não mais ostentam o seu primitivo caráter patrimonial, sujeitas que se achavam, no passado, à propriedade de seus ocupantes, asseverou, “verbis”:
“O direito moderno aboliu e transformou essa noção do serventuário, que passou a ser o que é em nosso direito positivo. Atualmente, ele é funcionário como qualquer outro. Conservou-se a denominação de serventuário, mas na realidade ele é um funcionário. Pouco importa que não receba dinheiro do Tesouro, como acontece com os escrivães, que recebem das partes os emolumentos taxados em leis.”
…
“O próprio exame do vigente texto constitucional permite concluir pela estatalidade dos serviços notariais e registrais, autorizando, ainda, o reconhecimento de que os Serventuários incumbidos do desempenho dessas relevantes funções qualificam-se como típicos servidores públicos (original sem grifo), pois (a) só podem exercer as atividades em questão por delegação do Poder Público (CF, art. 236, “caput”), (b) estão sujeitos, no desempenho de suas atribuições funcionais, à permanente fiscalização do Poder Judiciário (CF, art. 236, § 1º) e (c) dependem, para o ingresso na atividade notarial e de registro, de prévia aprovação em concurso público de provas e títulos (CF, art. 236, § 3º), que constitui, no magistério da doutrina, o instrumento destinado à seleção de “quem se empenha a ingressar nos quadros do serviço público …” (JOSÉ CRETELLA JÚNIOR, “Comentários à Constituição de 1988″, vol. IX/4626, 1993, Forense Universitária).”
“Essas notas, associadas ao fato de que a fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro submete-se às normas gerais estabelecidas em lei editada pela União Federal (art. 236, § 2º), confirmam, de maneira bastante expressiva, a orientação jurisprudencial já consolidada no âmbito do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria em questão, inclusive no que se refere ao reconhecimento de que os titulares de Serventias não oficializadas — porque ostentam a condição de funcionários públicos em sentido lato — estão sujeitos, em tema de aposentadoria compulsória por implemento de idade, ao mesmo regime constitucional aplicável aos servidores públicos em geral (RTJ 126/550, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI – RDA 54/281, Rel. Min. LUÍS GALLOTTI).”
Por outro lado, nos termos do art. 2º, inciso II, da Lei nº 8.987, de 13/02/1995, editada com a finalidade de regulamentar o disposto no art. 175 da Constituição Federal de 1988, “para os fins do disposto nesta Lei, considera-se concessão de serviço público a delegação de sua prestação, feita pelo poder concedente, mediante licitação, na modalidade de concorrência, à pessoa jurídica ou consórcio de empresas que demonstre capacidade para seu desempenho, por sua conta e risco e por prazo determinado”.
Criticando a redação da definição legal, o Professor CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO anota que “teria sido preferível que a lei houvesse mencionado o termo genérico “outorga” da prestação do serviço, ao invés de falar em “delegação”. É que esta última expressão, como bem se vê na linguagem constitucional, quadra melhor para designar a investidura no desempenho de atividade jurídica — e não de atividade material (caso de concessão). De fato, o art. 236 da Lei Maior serve-se da voz “delegação” para atividades eminentemente jurídicas, as notariais e de registro, ao passo que no art. 21, XI e XII, refere concessão para serviços materiais como os telefônicos, telegráficos, de radiodifusão, de telecomunicações em geral, de produção de energia elétrica e de transportes. Aliás, este é o menor dos reparos a ser feito ao teor das definições legais” (Curso de Direito Administrativo”, Ed. Malheiros, 17ª edição, pág. 658.
Concessionário, por definição legal, é empresa. “Pessoa jurídica ou consórcio de empresas”, diz a Lei.
A responsabilidade patrimonial é limitada ao capital social, como acontece com as sociedades de responsabilidade limitada e as sociedades anônimas.
“Notário, ou tabelião, e oficial de registro, ou registrador”, a seu turno, “são profissionais do direito, dotados de fé pública, a quem é delegado o exercício da atividade notarial e de registro” (art. 3º da Lei nº 8.935, de 18/11/1994).
Assume a delegação e gera a serventia na condição de “pessoa natural”, “respondendo pelos danos que eles e seus prepostos causarem a terceiros” com todos os seus bens (art. 22 da Lei nº 8.935, de 18/11/1994).
A Lei nº 8.987, de 13/02/1995, por outro lado, prevê, expressamente, a possibilidade não apenas de transferência do controle acionário da empresa concessionária, como também a transferência voluntária da concessão, para o que exige tão-somente a concordância do poder concedente (art. 27).
O delegado, bem ao contrário, deverá prestar o serviço pessoalmente, e pela própria natureza do serviço, não poderá transferi-lo a terceiros, posto ser indelegável a função que exerce.
Concessionários e permissionários de serviços públicos, por outro lado, não são dotados de fé pública.
A fé pública afirma a certeza e a verdade dos assentamentos praticados pelos notários e registradores e das certidões que expeçam nessa condição. Corresponde à especial confiança atribuída por lei ao que o delegado (tabelião ou oficial de registro público) declare ou faça, no exercício de função tipicamente estatal, com presunção de verdade.
Na doutrina de Afonso Celso Furtado de Rezende, autor de artigo veiculado na web, “por sua própria natureza, a fé pública é uma instituição jurídico-pública, tendo, necessariamente, um “sinal público” autorizado pelo Estado, de maneira que o qualificativo de público compreende a “fé”, significando que o notário é uma autoridade da sociedade nesse setor, vindo a garantir a certeza e autenticidade naquilo que exara. Os escrivães, registradores, serventuários da Justiça e notários, estes, no ensejo, destacadamente apontados, são os principais depositários da fé pública, pois exercem uma atividade bastante peculiar em relação a outras prestadas em regime funcional. No caso, a qualificação dos notários como funcionários públicos, onde seria mais correta a designação de Oficiais Públicos, só se dá em alguns efeitos. Esta situação, que não integra as estruturas administrativas dos servidores públicos, dá-lhes a atribuição de profissionais no exercício de uma função pública de certificação, afirmação e depositários documentais em regime privado de profissão liberal, submetida a severos controles hierárquicos, com mecanismos de rigorosa seleção, implicando no estrito dever de cumprimento do objetivo de assegurar, no que legalmente possível, a coincidência da certeza real ou física, aliada à convicção, firmeza jurídica no que documentam”.
O Ministro CELSO DE MELLO, do C. Supremo Tribunal Federal, um dos melhores publicistas deste país, ao relatar o v. acórdão do AGRAG nº 146.785-1 DF, averbou:
“A função certificante, enquanto prerrogativa institucional que constitui emanação da própria autoridade do Estado, destina-se a gerar situação de certeza jurídica, desde que exercida por determinados agentes a quem se outorgou, “ministério legis”, o privilégio da fé pública.
…
Em suma: a certidão comprobatória da tempestividade do recurso extraordinário virtualmente qualifica-se, para os fins a que se refere a Súmula 288/STF, como instrumento público “ad solemnitatem”, insuscetível de ser substituído por qualquer outra peça processual que não emane de agente estatal investido, “reatione muneris”, da prerrogativa excepcional da fé pública, como os Serventuários de justiça (MOACYR AMARAL SANTOS, “Primeiras Linhas de Direito Processual Civil”, vol. 1/132-133 e 135, itens 102 e 104, 14ª ed., 1990, Saraiva).
…
Impende salientar — na linha do magistério expendido por PEDRO BATISTA MARTINS (“Comentários ao Código de Processo Civil”, vol. I/364, item nº 309, 1940, Forense) — que a essencialidade da outorga legal do atributo da fé pública a determinados agentes do Estado (e entre os quais não se incluem os magistrados) deriva da circunstância de que, sem a presunção “júris tantum” de que gozam os atos do Escrivão, “seria impossível a prova de atos praticados em juízo”, inclusive aqueles que concernem à demonstração pertinente ao “fato de haver passado em julgado uma sentença”.
…
Não se trata, portanto — e ao contrário do que sustenta o agravante —, de atribuir mais valia à certidão exarada pelo Serventuário judicial, mas, isso sim, de reconhecer a esse agente do Estado a titularidade de um poder certificante e de uma prerrogativa especial (fé pública) que não se inserem na esfera das atribuições outorgadas aos magistrados pelo sistema de direito positivo vigente no Brasil.
…”.
A sociedade ainda não evoluiu ao ponto de prescindir da garantia dos atos notariais e de registro. O Estado tem de continuar a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos e, por decisão política, exerce o mister através de agentes a quem outorgou o privilégio da fé pública.
Poderia, evidentemente, como ocorre em alguns países da Europa Central, atribuir aos Municípios a competência para os Registros Civil das Pessoas Naturais e de Imóveis, ficando os Estados membros com o Protesto de Títulos e outros documentos de dívida, por exemplo, mas como isto não convém ao Estado neo-liberal, o soberano legislador constituinte de 1988 deliberou delegar as funções a particulares chamados a colaborar com o Estado.
Também por decisão política que só pode ser questionada em outra seara, o Estado decidiu, também, não incluir estes serviços na hipótese de incidência do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza.
Justifica-se a decisão porque em se tratando de serviços públicos essenciais, que dizem diretamente com a dignidade da pessoa humana (direito ao nome, à moradia etc), cumpre que sejam prestados gratuitamente ou mediante pagamento de emolumentos compatíveis com o poder aquisitivo do povo brasileiro.
E no final das contas, quem paga os impostos são os usuários dos serviços!
Em conclusão, a equiparação da DELEGAÇÃO à CONCESSÃO, que supõe, necessariamente, a inexistência de todos estes sinais distintivos destes velhos institutos do Direito Constitucional e do Direito Administrativo brasileiros, não viola apenas os princípios da legalidade e da tipicidade, tão caros ao Direito Tributário, como também é muito perigosa porque faculta ao delegado de serviços notariais e de registro, dentre outras coisas:
I – exigir do poder concedente a manutenção da equação econômico-financeira da concessão;
II – a transferência da delegação, como soe acontecer com os concessionários. O jornal “Folha de São Paulo” do dia 10/02/2009 noticiou que a “Controlar”, criada especificamente para a implantação e a operação do Programa de Inspeção e Manutenção de Veículos em uso na Cidade de São Paulo, “vendeu” a concessão para a CCR-Companhia de Concessões Rodoviárias pela bagatela de R$.121.000.000,00 – (cento e vinte e um milhões de reais);
III – a titularização de várias unidades de serviço, nos vários Estados do país, como é comum entre os concessionários. A Rede Globo de Televisão, por exemplo, é titular de centenas de concessões;
IV – ignorar o princípio da anterioridade para aumentar os “emolumentos”, posto não se tratar de tributo, mas de preço ou tarifa a remuneração paga pelo usuário dos serviços.
Por derradeiro, não é demais passar os olhos sobre a história da incidência do ISSQN sobre a atividade das serventias não oficializadas, que sempre foram vistas como verdadeiros anexos do Poder Judiciário.
Na vigência do Decreto-lei nº 406, de 31/12/1968, recepcionado pela Constituição Federal de 1988 ao nível de Lei Complementar, sequer se cogitava do problema, posto que desenganadamente a atividade notarial e de registro estava fora da “lista” de serviços passíveis de tributação pelo imposto sobre serviço de qualquer natureza (ISSQN).
Ocorre que até o final dos anos 1990, os serviços públicos em geral eram prestados diretamente pelo Poder Público, não havendo mesmo nenhum propósito em pretender tributá-los, onerando o custo do serviço.
Exemplo disto é o fato de que a “exploração de rodovia mediante cobrança de preço dos usuários, envolvendo execução de serviços de conservação, manutenção, melhoramentos para adequação de capacidade e segurança de trânsito, operação, monitoração, assistência aos usuários e outros definidos em contratos, atos de concessão ou de permissão ou em normas oficiais”, só foi incluída na “lista” do Decreto-lei nº 406/68 em 22/12/1999, através da Lei Complementar nº 100.
Mesmo nesta ocasião, às vésperas do novo milênio, os serviços notariais e de registro continuaram fora da lista a que se refere o art. 8º, “caput”, do Decreto-lei nº 406/68.
Na verdade, tudo se resolve numa equação política. Sabedor de que o ônus econômico do tributo é suportado pelo usuário do serviço, ao legislador compete decidir quem deve “pagar a conta”, orientando-se pelos princípios da capacidade contributiva e da essencialidade do produto ou do serviço, dentre outros. E não se pode ter nenhuma dúvida de que até o momento o legislador considera que os serviços notariais e de registro, por serem essenciais à segurança dos negócios jurídicos, e por conseguinte da própria economia do país, não devem ser onerados pelo ISSQN.
Portanto, os serviços notariais e de registro, que são prestados por particulares mediante delegação (art. 236, “caput”, da CF/88) e remunerados através de emolumentos (art. 236, § 2º, da CF/88), somente poderão sofrer a incidência do ISSQN se e quando a Lei Complementar nº 116, de 31/07/2003, for modificada, para que, de forma expressa sejam incluidos no rol do § 3º do art. 1º desta Lei.
Fonte: Anoreg/BR