Artigo – O transexualismo e a alteração do registro civil – Por Rafael DÁvila Barros

Sumário: 1.Transexualismo. 2.Noção de sexo. 3.A cirurgia de redesignação sexual e o momento pós-cirurgia. 4.A possibilidade da alteração do registro civil. 5.Ação cabível. 6.Conclusão


1. Transexualismo

Hodiernamente, o transexualismo se apresenta como um comportamento social existente, inobstante todo preconceito tangenciador de tal manifestação sexual.

O transexualismo, definido como patologia pela Classificação Internacional de Doenças [01], consiste em uma anomalia da identidade sexual, em que o indivíduo se identifica psíquica e socialmente com o sexo oposto ao que lhe fora determinado pelo registro civil. O transexual não aceita seu sexo biológico, buscando na cirurgia de redesignação sexual o fim de todo aquele sofrimento causado pela incoincidência entre sua identidade sexual física e psíquica. Essa angústia não se resume no fato de a sociedade o encarar como indivíduo do outro sexo, mas se agrava quando o próprio transexual não consegue conciliar seu corpo à sua mente: ele se olha no espelho e vê algo que repudia, que reprova.

O Conselho Federal de Medicina – CFM estabelece que a definição do transexualismo passa pelo desconforto do indivíduo no que se refere ao sexo anatômico atual. O transexual possui o expresso desejo de eliminar os genitais e de perder as características primárias e secundárias do próprio sexo, visando ganhar aquelas do sexo oposto. Para ser considerado transexual, o indivíduo ainda deverá ser portador desse desvio psicológico de identidade sexual de forma permanente e consistente, e até arrisca a estabelecer um prazo mínimo, qual seja, dois anos. Para o CFM, o transexualismo é uma disforia neurodiscordante de gênero [02].

Imperioso destacar que o transexualismo não se confunde com o hermafroditismo, nem tampouco com o homossexualismo ou outras manifestações sexuais. Tal ressalva é importante porque a teoria por nós defendida, qual seja, a alteração do registro civil do indivíduo que se submete à cirurgia de redesignação sexual, funda-se na condição de ser este um transexual comprovado, através de exames clínicos e acompanhamento psicológico, conforme exigência do CFM.


2. Noção de sexo

Tendo em vista que o sexo não deve ser considerado apenas como um elemento fisiológico, não são raros os erros cometidos ao registrar uma criança como pertencente a este ou aquele sexo. A noção de sexo é muito mais complexa, sendo certo que diversos outros componentes deverão ser considerados para sua correta definição, como os aspectos genético, social, jurídico e, principalmente, psicológico.

Em vista disso, alguns indivíduos são registrados com nome e sexo distinto daquele ao qual, psicologicamente, acreditam pertencer. E o que fazer nessa situação? Alguns permanecem angustiados por toda a vida, reprovando-se veementemente; outros acusam problemas psicológicos e, não são raras as vezes em que se isolam do mundo e da sociedade. Contudo, existem também aqueles que vislumbram, através do tratamento cirúrgico, alcançar a felicidade plena e pôr fim a todo sofrimento eivado de humilhação, preconceito e vergonha, os quais buscam com a cirurgia uma vida digna. Buscam a tão famosa dignidade da pessoa humana.


3. A cirurgia de redesignação sexual e o momento pós-cirurgia

Popularmente conhecida como cirurgia de mudança de sexo, esta cirurgia não se apresenta, nos dias atuais, como um tormento para o transexual, porque é regulamentada pelo CFM. Dessa forma, dispensada está a autorização judicial para sua realização. Noutros tempos, a chancela judicial seria a primeira dificuldade do transexual. [03]

Não obstante, após a cirurgia, outra questão – esta sim tormentosa e complicada – emerge na vida do indivíduo transexual. Seria o mesmo obrigado a carregar, por toda a vida, o nome e o sexo que lhe foram atribuídos em seu nascimento?

Em vista disso, o transexual recorre ao judiciário com o escopo de alterar seu registro civil no tocante ao nome e ao sexo, esbarrado, algumas vezes, com decisões judiciais que não acompanham a evolução da sociedade e da medicina. São decisões que não se coadunam com uma leitura inteligente do ordenamento jurídico pátrio, orientado pela Constituição Federal de 1988, que consagra o princípio da dignidade da pessoa humana [04].


4. A possibilidade da alteração do registro civil

Defendemos a alteração do registro civil do transexual submetido à cirurgia de transgenitalização, independentemente da inexistência de norma regulamentadora específica para o caso sob apreço [05]. Tal omissão legislativa, a nosso ver, não se apresenta como um óbice a tal procedimento, sendo certo que não só a Constituição Federal, mas também o Código Civil e a própria Lei dos Registros Públicos possibilitam a alteração do registro civil do transexual após a cirurgia de mudança de sexo.

A Carta Magna brasileira possibilita tal alteração ao estabelecer a dignidade da pessoa humana como fundamento de nossa república [06]. Consoante tal princípio constitucional, não é possível admitir que o transexual, após a cirurgia, não tenha seu registro civil conforme a sua nova realidade. Ou alguém acredita que a incompatibilidade da aparência física e o estado psicológico do indivíduo com sua identificação legal não proporciona algum constrangimento ou situação indigna?

O Código Civil de 2002 estabelece que toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome [07]. Assim, sob a ótica do direito privado, as pessoas, sejam naturais, sejam jurídicas, têm direito ao nome, à identidade pessoal, dada a sua condição de sujeitos de direitos; sob o ponto de vista da ordem pública, elas têm a obrigação de ter um nome, para identificá-las perante a sociedade.

O nome existe para uma perfeita e exata identificação de uma pessoa na sociedade, não para causar-lhe constrangimento e situações vexatórias e preconceituosas. Trata-se de um símbolo da personalidade do indivíduo que, além de produzir efeitos jurídicos, é capaz de particularizá-lo no seio social.

Os direitos da personalidade, inerentes a todos os indivíduos, devem ser respeitados e tutelados pela ordem jurídica. Compreendidos através de cinco ícones principais, conforme explicita a melhor doutrina, quais sejam, vida/integridade física, honra, imagem, nome e intimidade, resta claro que aos transexuais deverá ser dado o direito de se submeterem à cirurgia e, posteriormente e em decorrência dela, terem seus documentos alterados, ou melhor, adequados àquela nova situação.

A Lei dos Registros Públicos, embora não possua um dispositivo específico para tratar da matéria, também permite a alteração do registro civil ora em análise. A referida lei elenca a impossibilidade de registro, pelos oficiais de registro, de prenomes suscetíveis de exposição ao ridículo [08]. E, dessa forma, afigura-se possível, também, a mudança dos nomes suscetíveis de exposição ao ridículo. Ora, se o oficial de registro não deverá registrar esses prenomes, devemos entender que a alteração, por esse mesmo motivo, é pertinente e razoável. Não há como negar, entendemos, que uma pessoa que se submeteu à cirurgia de redesignação sexual, com a conseqüente modificação de seus aspectos físicos exteriores, transformando-se numa pressuposta pessoa do sexo oposto, não se encontra em situação vexatória ao ostentar documentos que não apresentam informações que se identifiquem com a situação física da pessoa.

Ademais, o referido diploma estabelece ser possível, inobstante a definitividade do prenome, sua substituição por apelidos públicos e notórios [09]. Sendo certo que um transexual submetido à cirurgia de redesignação sexual adotará e será conhecido por um nome equivalente à sua nova identidade sexual, poderia também pleitear a substituição de seu “antigo nome” com fulcro neste fundamento.


5. Ação cabível

No que se refere à ação cabível para a alteração do nome e sexo no registro civil do transexual, asseguramos não tratar-se de procedimentos retificativos, aflorados nas Varas de Registros Públicos. Mesmo quando consubstanciarem a forma contenciosa, as ações de retificação, restauração e suprimento do registro civil [10] não incluirão questões de estado.

Não se alegando qualquer erro no assentamento, trata-se de ação de estado civil, cuja pretensão é a alteração do estado individual e a inserção da pessoa na categoria correspondente à sua identidade sexual.

Então, a ação deverá ser proposta perante as Varas de Família e a sentença deverá ser averbada no registro civil do transexual, a fim de fazer constar seu novo nome e sexo em seu registro de nascimento.

José Roberto Neves Amorim defende a permissão da alteração do prenome e do sexo no registro civil do indivíduo, ressalvando que tal mudança deve ocorrer nos casos judicialmente comprovados de transexualismo, principalmente pelos princípios constitucionais inerentes aos direitos individuais e sociais. Com proriedade, o ilustre jurista alerta que a sentença que autoriza a referida alteração produzirá efeitos ex tunc, sendo certo que a nova identidade vigorará a partir do trânsito em julgado da decisão judicial [11].


6. Conclusão

As leis devem evoluir com a sociedade, e sua interpretação deve propiciar a solução dos conflitos gerados por novas tecnologias e pelo desenvolvimento social. O direito não deve engessar o desenvolvimento da sociedade; ao contrário, deve evolver para atender aos seus anseios.

O judiciário não pode desconsiderar uma questão definida pela Medicina e pela Psicologia. O transexualismo existe, é uma doença e precisa ser tratado. E, inserida neste tratamento, está a cirurgia de adequação sexual. No entanto, de nada adiantará o tratamento se, posteriormente, o indivíduo não tiver seu nome e sexo alterados, carregando por toda a vida acintosa humilhação e sofrimento.

Ademais, toda pessoa tem direito ao nome [12], erigindo-o a um direito inerente à personalidade do indivíduo. Nesse diapasão, o nome jamais poderia ser motivo e fonte de humilhações e ofensas, situações constrangedoras e preconceituosas. A personalidade há de ser protegida em grau máximo, e o nome, principal signo identificador das pessoas, deve ser o primeiro direito a ser protegido. Não devemos nos esquecer de que o nome civil deve existir para identificar a pessoa, e não para expô-la ao ridículo, ao escárnio, ao burlesco.

Não há como negar que uma pessoa que se submeteu à cirurgia de redesignação sexual, com a conseqüente modificação de seus aspectos físicos exteriores, transformando-se numa pressuposta pessoa do sexo oposto, não se encontra em situação vexatória ao ostentar documentos que não apresentam informações que se identifiquem com a situação física da pessoa.

Assim, não poderia um transexual (não nos esqueçamos que o transexualismo é uma patologia e distingue-se de outras manifestações sexuais) submeter-se à intervenção cirúrgica de adequação sexual, autorizada e regulada pelo CFM? Sim, tudo bem. Mas e depois? Seria o indivíduo obrigado a carregar o nome que lhe fora atribuído quando registrado seu nascimento, com o sexo jurídico definido naquele momento, a partir da observação exclusiva do sexo morfológico? Seria fadado eternamente a esse constrangimento?

Todavia, se de um lado o direito não pode permitir que a dignidade da pessoa humana do transexual seja violada sempre que o mesmo ostentar documentos que não condizem sua realidade física e psíquica, por outro não pode menosprezar a segurança jurídica. Em vista disso, acreditamos que deverá ocorrer uma averbação e não uma retificação no registro civil do transexual, de modo a fazer constar no mesmo que o nome e o sexo foram alterados por força de sentença judicial, pela condição de transexual submetido à cirurgia de mudança de sexo. Mas, em hipótese alguma, deverá existir qualquer menção nesse sentido em seus documentos cotidianos, como Carteira de Identidade e Cadastro de Pessoa Física. Dessa forma, acreditamos preservar a dignidade do transexual sem jogar por terra a segurança jurídica.


Notas

01 CID – 10 F64.0.

02 Resolução 1.652 do CFM.

03 Na primeira cirurgia de redesignação sexual realizada no Brasil, cujo paciente fora o transexual Waldir Nogueira, o médico que a realizou, Dr. Roberto Farina, respondeu a processo criminal perante a justiça paulista. Por isso, àquela época a autorização judicial se fazia necessária, para evitar uma possível responsabilização criminal dos médicos.

04 Art. 1º, III, CF/88.

05 Existe um Projeto de Lei n. 70, de 1995, de autoria do ex Deputado Federal José Coimbra, que trata especificadamente da alteração do registro civil dos transexuais submetidos à cirurgia de mudança de sexo.

06 Art. 1º, III, CF/88.

07 Art. 16, CC/02.

08 Art. 55, parágrafo único, Lei 6.015/73.

09 Art. 58, Lei 6.015/73.

10 Art. 109, Lei 6.015/73.

11 José Roberto Neves Amorim. Direito ao nome da pessoa física. São Paulo:Saraiva, 2006, p. 63.

12 Art. 16, CC/02.

 

Rafael D`Ávila Barros Pereira: Advogado em Juiz de Fora, Pós-Graduando em Direito Constitucional

 

Fonte: Jus Navigandi