Artigo – Os “Novos sujeitos de direito” e a nova família

1 – Introdução

Com o advento da pós-modernidade, ou como pretendem alguns da hipermodernidade, encontra-se o legislador pátrio diante da urgente, necessária e impostergável tarefa de positivar comportamentos decorrentes de novas posturas sociais e, por conseguinte em reconhecer como cidadãos “novos sujeitos de direito”, que obtiveram sua ascensão com o advento do século XXI.

Enquanto isso não ocorre, cabe ao Poder Judiciário a árdua tarefa de efetivar esses direitos sob o prisma da alternatividade, já que a inércia do Poder Legislativo, não pode servir de fundamento para se afastar da apreciação de nossos tribunais a pretensão desses “novos sujeitos de direito”, que até então viviam no entorno de uma sociedade cuja principal característica é a totalidade, ou seja, em não reconhecer o outro, o fora da totalidade ou o diferente, aquele subsumido na totalidade, pelo simples fato de não se adequarem em seus arquétipos.

Sem sombras de dúvidas, estamos hodiernamente diante do surgimento de uma nova consciência, um valor mais alto se alevanta, a sociedade moderna nos revela situações fáticas que até então se encontravam absortas em suas entranhas, as quais por razões de preconceitos, insistiam-se e insiste-se em não enxergar e quiçá atribuí-las o condão de um direito fundamental.

Ora, não se pode mais deixar de reconhecer em nossa sociedade a existência de relações homoafetivas entre homens e mulheres, não se pode mais deixar de reconhecer que é o afeto que une não só essas pessoas, mas sim todo e qualquer ser humano, não se pode mais deixar de reconhecer o direito subjetivo à paternidade dos pares homossexuais, pois quando unidos com o objetivo de vida em comum buscam como todos de sua espécie a felicidade, não se pode mais deixar de reconhecer as questões patrimoniais decorrentes desses relacionamentos. Falho é, sem dúvida, o ordenamento jurídico pátrio neste aspecto.

Incompreensível e ignóbil o comportamento de nosso legislador, explicável tão somente sob o argumento desprezível do preconceito, o fato de se manter reticente e o que é pior, na maioria das vezes, inerte diante das enormes dificuldades encontradas por esses “novos sujeitos de direito”, em verem reconhecidos e principalmente efetivados um seu direito fundamental, máxime, porque se tratam de cidadãos, quer aceitem, acreditem ou não nossos congressistas e magistrados.

É por comportamentos esdrúxulos como estes que alguém disse certa vez, em algum lugar, misturando cinismo com humor, a frase de que o Brasil não é um país sério. Atribuíram-na a De Gaulle.

Imperioso se faz que o Poder Legislativo e o Judiciário, este evidentemente não em sua maioria, abandonem de uma vez por todas os paradigmas alicerçados in casu no preconceito, a fim de que com isso, passem a permitir a efetividade de basilar princípio encartado em nossa Constituição Federal, o da dignidade da pessoa humana, o que significa pensar o ser humano a partir de suas diferenças.

Efetivamente, o Brasil é de surpresas: sob a égide dos direitos de quinta geração, apresentam-se superstições medievais: o preconceito.

2 – Os “novos sujeitos de direito” em face do ideal normativo

Impossível deixar de reconhecer que nosso Poder Legislativo e Poder Judiciário, arrastam consigo desde os primórdios até os dias atuais, o arquétip Kantiano para a solução de conflitos de interesses, qual seja: aplica-se uma regra universal a um caso individual, já que o fato particular está contido no geral, ou dito de outra forma, a justiça se realiza por meio de um ideal normativo.

Com efeito, ao contrário do que se pensa, este modelo de ideal normativo aparentemente simples e correto de composição de conflitos de interesses, advindos do modus vivendi em sociedade, nos obriga a uma reflexão. Porquanto, traz um problema fundamental, o de saber até em que medida esta regra (geral) pode ser legitimamente aplicada perante os sujeitos que não pertençam à categoria da totalidade, ou seja, àqueles seres humanos que vivem no entorno do Estado e por ele ignorado, ou na conceituação de Hannah Arendt, as displaced persons.

A manifestação do Outro (alteridade), aqui utilizada na concepção de Dussel, para indicar aquele que se encontra “fora” da totalidade, jamais foi ou será ouvida, o que importa em reconhecer sua total exclusão na participação no processo de elaboração da regra geral, logo este consenso de regras de entendimento, justamente pelo fato de não ter contado com sua participação não lhe poderá ser aplicada.

Ora, se nosso legislador simplesmente ignora por completo as reivindicações em prol do reconhecimento da união de pessoas do mesmo sexo, bem como a adoção de filhos aos parceiros do mesmo sexo, por que charadística razão estariam estes sujeitos submetidos as suas regras? Por que só aos homossexuais proibir o casamento? Por que só aos parceiros homossexuais lhes proibir a adoção? Por que a submissão de todas as formas de sexualidade ao modelo único da relação heterossexual?

Com efeito, as respostas às indagações acima, por certo se encontram na visão obtusa de nossos legisladores, que girando a manivela da história ao contrário, buscam na lógica da totalidade o paradigma do ser.

Na obra do Professor de Filosofia do Direito da Universidade Federal do Paraná, Celso Luiz Ludwig, Para uma Filosofia Jurídica da Libertação: Paradigmas da Filosofia, Filosofia da Libertação e Direito Alternativo, está o argumento que serve de alicerce para a afirmação da resposta acima:

“Já em Parmênides o ser coincide com o mundo. O mundo é visto porque é ‘iluminado` pelo ser. Mas quem é este ser? Segundo Dussel (s.d., p. 12), o ser é o grego. O que não é grego é não-ser; para além do horizonte, está o não-ser, o bárbaro, a Europa e a Ásia.” (LUDWIG, 2006, p. 127).

Conclui o eminente professor:

“Portanto, o eu-sujeito que se apresenta como totalidade constituinte do ser das coisas, ao nível do abstrato, historicamente é um sujeito-europeu-branco, frente ao qual o restante é objeto de dominação. Na dimensão erótica, o sujeito é o varão; na pedagogia, o sujeito é o adulto. Assim, o que abstratamente se instaura como subjetividade do sujeito, ao nível mais concreto, se resolve no sujeito-europeu-branco-varão-adulto. Geopoliticamente Europa; na ideologia racial, branco; na machista, homem; na pedagógica, adulto, e ao nível social, classe dominante. Nessa redução de tudo à totalidade como sujeito, legitima-se teoricamente a dominação política.” (LUDWIG, 2006, p. 131).

Neste sentido argumenta Dussel:

“O mais grave é que esta ontologia diviniza a subjetividade européia conquistadora que vem dominando o mundo desde sua expansão imperial no século XV. ‘O ser é, o não-ser não é`. O ser é a razão européia, o não-ser são os outros humanos. A América Latina e toda a ‘periferia` ficam por isso, definidas como o puro futuro, como o não-ser, como o irracional, o bárbaro, o inexistente. A ontologia da identidade da razão e da divindade como o ser termina por fundamentar as guerras imperiais de uma Europa dominadora de todos os povos, constituídos como colônias, neocolônias ‘dependentes` em todos os níveis de seu ser.” (DUSSEL, 1986, p. 124).

As citações embora longas estejam a demonstrar de forma precisa, que esta mediocridade persiste até nossos dias, os não-brancos pobres, os índios, os homossexuais, as crianças e adolescentes que vivem nas ruas ou institucionalizadas em orfanatos, os velhos nas filas infindáveis do SUS, os brancos pobres, são seres supérfluos e descartáveis, não merecem um lugar no mundo, devem se arranjar em um novo tecido social se quiserem viver.

Verifica-se, pois, a Inadmissibilidade do ideal normativo, concebido a partir de uma elite dominante, visto encontrar-se esta totalmente separada e isolada da realidade fática e da história, tanto é verdade que por séculos ignoram por completo os direitos fundamentais da alteridade, o que torna completamente descabida e ignóbil qualquer discussão crítica do que se deva entender por justiça.

Nossas elites preferem não atribuir a condição de “sujeitos de direito”, a aqueles que não se encontram emoldurados em seus arquétipos, haja vista que as uniões homossexuais e a adoção por sociedades afetivas homossexual, não acham um lugar na família, a ordem jurídica interna de nosso Estado impede-os de se conectarem com as instituições jurídicas, tendo a igualdade de sexo a premissa justificadora de sua exclusão.

Celso Lafer nos dá a exata extensão dos problemas enfrentados pelos que vivem no entorno de um Estado, adjetivado como Democrático de Direito.

“A convicção, explicitamente assumida pelo totalitarismo, de que os seres humanos são supérfluos e descartáveis, representa uma contestação frontal à idéia do valor da pessoa humana enquanto ‘valor fonte` de todos os valores políticos, sociais e econômicos e destarte, o fundamento último da legitimidade da ordem jurídica, tal como formulada pela tradição, seja no âmbito do paradigma do Direito Natural, seja no da Filosofia do Direito.” (LAFFER, 1999, p. 19).

Efetivamente, o arquétipo de elaboração das regras gerais de comportamento que adotamos, por não permitir a manifestação da alteridade, já que estes seres não se adequam aos modelos preconizados pelas elites, quando de seu processo elaborativo, jamais poderão estar a elas submissos, pois não representam à vontade de uma sociedade que deve ser interpretada e entendida sob a ótica da constitucionalização dos direitos fundamentais. Este insuficiente critério reclama reformas.

De uma clareza ímpar é a lição de Celso Ludwig:

“Esse outro ao qual nos referimos está sempre pressuposto na comunidade de comunicação, mas também sempre excluído na comunidade real e que não argumenta efetivamente quando da produção dos consensos – fato que ocorre também nas estruturas do capitalismo periférico -; é o explorado, o dominado o pobre, ou é a vítima não intencional do sistema.” (LUDWIG, 2006, p.139)

3 – A revelação do Sujeito Negado.

Essas idéias fizeram surgir uma nova concepção de sujeito, exteriorizadas através das reivindicações de movimentos de libertação, as quais revelaram o sujeito externo ao totalitarismo, ou dito de outra forma, existe uma heterogeneidade social, cultural e sexual de cidadãos iguais em dignidade, já que “a cidadania é o direito a ter direitos, pois a igualdade em dignidade e direitos dos seres humanos não é um dado”. (LAFFER, 1999, p. 22).

Estamos, pois diante da revelação de um “novo sujeito de direito”, projetado para não mais viver entorno do Estado, mas sim disposto a reivindicar e tornar factível o exercício do direito a lhe permitir o reconhecimento de sua dignidade humana em face do despertar da nova realidade social, para falar como Rigoberta Menchú, e assim “nasceu em mim a consciência”.

Com o pensamento abaixo transcrito, expressa a protagonista da frase supracitada, todo seu sentimento de exclusão diante de uma sociedade eminentemente totalitária:

“Eu não sou dona de minha vida, decidi oferecê-la a uma causa. Podem me matar a qualquer momento, mas que seja em uma tarefa onde sei que meu sangue não será algo inútil, mas será mais um exemplo para os companheiros. O mundo onde vivo é tão criminoso, tão sanguinário, que de um momento para outro ma tira. Por isso, como única alternativa, só me resta a luta… E eu sei e confio que meu povo é o único capaz, somente as massas são capazes de transformar a sociedade. E não é mera teoria apenas.” (DUSSEL, 1986, p. 416)

As palavras de Rigoberta Menchú deixam evidente o surgir de um “novo sujeito de direito” que em conseqüência de uma nova atitude rompe com o paradigma da dominação, de tal sorte que as coisas não mais devem ser resolvidas tendo como razão fundante o princípio da universalização, o que demonstra a imediata necessidade das elites em reconhecer a falta das condições materiais de viver desses sujeitos, que até então eram excluídos de sua totalidade. Os displec persons possuem um lugar “no” e não “entorno” do tecido social.

Pode-se observar a efetivação desse fenômeno com Dussel:

“Rigoberta – seu povo tiveram sempre sua cultura; desprezaram-na e ninguém lhes havia ensinado a valorizá-la; sofreram uma opressão e exclusão espantosa. Imediatamente começa a tomada-de-consciência ético-crítica dessa opressão-exclusão, do fato de ser vítima; isso é possível a partir da afirmação do seu próprio ser valioso; a partir dessa afirmação, começa uma luta de libertação com a consciência ética de ser vítima. Tal afirmação é fruto de um processo dialético, onde a relação dominador-dominado, sistema-exclusão são o horizonte de compreensão. Scannone julga possível afirmar-se a própria cultura como valiosa (como o observa muitas vezes Arturo Roig), esquecendo porém que deve ser a partir da dialética opressor-oprimido, como vítima. Sem essa relação negativa explicitamente posta a nu, necessariamente se torna a cair em uma ontologia ambígua, não-ética, sapiencial mas não crítica, uma ‘eticidade concreta` (Sittlichkeit) sem critérios de libertação. Recaiu-se de fato na hermenêutica ricoeuríana pré-libertadora.” (DUSSEL, 1986, p. 421)

A tomada de consciência sob a ótica da Teoria da Libertação, impõe um reconhecimento do outro para além do princípio formal da igualdade do ser, ou seja, a ótica agora é de um outro-igual no aspecto negado ou excluído diante da vida concreta de cada sujeito. A exterioridade é o critério fonte, o sujeito sob o enfoque da situação econômica, social, política, jurídica e outros, no mundo da realidade de cada um.

Como se vê da lição de Celso Ludwig:

“Assim, a premissa é que a vida humana em comunidade é o modo de realidade do sujeito. O modo de realidade consiste em considerar a vida humana como ela se apresenta a nós, nas situações concretas do mundo, na idade da globalização e da exclusão social. Os juízos descritivos permitem o aparecimento do modo humano de ser – ‘seu modo de realidade` -, na sua condição empírica, portanto, no momento primeiro. Depois, só depois, pode fundar-se em possíveis juízos de valor. (…) A vida humana é a referência. O que importa, no plano mais concreto, é a produção, reprodução e desenvolvimento da vida de cada sujeito. Essas três determinações centrais dão naturalmente à vida do humano. A vida humana em comunidade precisa objetivamente poder satisfazer certas condições, mediações adequadas para viabilizar as determinações mencionadas. Caso contrário haverá negação a aspectos da vida…” (LUDWIG, 2006, p. 183/185).

Com efeito, o modo de realidade concreta social, econômica e política dos países da América Latina, notadamente do Brasil, não é algo muito complexo de se entender: tornou-se de somenos importância, e, portanto admissível a situação de miserabilidade de seu povo, já não mais causa qualquer indignação às elites o fato de “outros” humanos morrerem em corredores de hospitais por falta de medicamentos ou leitos adequados.

Quanto às crianças e adolescentes em situação de total abandono moral e material pelas ruas e de outras tantas mil institucionalizadas, as quais ao atingirem a maioridade fatalmente serão despejadas na sociedade a mercê da própria sorte, nunca foi um problema para nossas elites, porquanto lhes basta erguer os muros de suas mansões ou condomínios fechados, que ficam reduzidas à insignificância que merecem, ou seja, são condenadas à invisibilidade, deixando de incomodar.

Não se pode deixar de reconhecer o caráter repugnante do comportamento de nossas elites, porém não se deve ignorar também que esta prática é utilizada desde antes da chegada da Família Real ao Brasil.

“Charles Boxer relatou que os pais e maridos em Salvador eram encorajados pela Igreja a manter suas mulheres e filhas reclusas, como forma de evitar que se expusessem à moralidade relativamente frouxa da cidade. ‘A freqüência da prostituição de escravas e de outros obstáculos para o caminho de uma vida de família completa, tal como o duplo padrão de castidade como o que existia entre maridos e esposas, concorriam para uma grande quantidade de miscigenação entre homens brancos e mulheres de cor. Isso por sua vez, produzia muitas crianças não desejadas que, se viviam e cresciam, tornavam-se vadias e criminosas, vivendo de suas espertezas e à margem da sociedade`. O historiador também se refere à ‘ vergonhosa prática de viverem as senhoras dos ganhos imorais de suas escravas, que não só eram encorajadas, mas compelidas a entregar-se à prostituição`.” (GOMES, 2007, p. 115/116).

Como se verifica, a ausência de uma política social efetiva e o assustador descaso com nossas crianças é uma reminiscência do Brasil Colônia, que se trasladou para o Império, instalou-se na República, perpetuando-se até os dias atuais.

“A entrega de crianças não desejadas para a adoção era um hábito disseminado no Rio de Janeiro. Os orfanatos e alguns conventos tinham a chamada ‘roda dos enjeitados` instituição importada de Portugal, na qual era possível depositar um recém-nascido sem que a pessoa responsável por esse ato fosse identificada. Em 1.823, a viajante inglesa Maria Graham visitou um asilo no Rio de Janeiro, cuja roda dos enjeitados havia recebido 10000 crianças órfãs num período de nove anos. A maioria tinha morrido antes de encontrar um lar que as acolhesse.” (GOMES, 2007, p. 351).

Em 27 de abril de 2.003, o periódico Correio Brasiliense, publicou matéria onde trouxe dados alarmantes sobre o número de crianças abandonadas no Brasil. Segundo o referido jornal, 25 mil crianças vivem em albergues, 200 mil são órfãs entre 4 e 18 anos, que aguardam adoção, esclarece a matéria ainda, que somente 10 % dos brasileiros aceitam adotar crianças com mais de 10 anos de idade, sendo que 50 % das crianças que aguardam adoção já tem mais de 7 anos de idade.

Diante disso indaga-se: porque charadística razão negar-se o direito à paternidade e à maternidade, tendo como base única e exclusivamente o critério da preferência sexual dos adotantes? Efetivamente, em nosso país não há limites ao desrespeito do Principio da Dignidade da Pessoa Humana. Efetivamente o Brasil é de surpresas.

A justificativa mais plausível que se pode dar a sociedade, diante da recalcitrância de nosso legislador, em não positivar a adoção por sociedade afetiva homossexual diante da secular realidade social acima delineada, só pode ter por base o fato de se considerar o único detentor da verdade, cavaleiro andante da honra e do renome nacional, ou simplesmente sua total ignorância e desrespeito ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, o qual hodiernamente encartado em nossa Lei Maior.

Com efeito, de imediato cumpre-nos descartar a primeira hipótese, pela simples razão das mostras inequívocas de decrepitude moral de nossos congressistas, os quais vivem os dias do fim, experimentando o verdadeiro desprezo que lhes devotam o povo e a história.

Aliás, em nosso Congresso Nacional reproduzem-se tipos cada vez mais hilários e absurdos. Neste local “fantasmagórico” se encontram presentes republicanos, traficantes, monarquistas, corruptos contumazes, federalistas, ladrões, democratas, chefes de quadrilha e analfabetos raivosos, porém todos envoltos em um único objetivo, a luta pelo poder, e nesta senda arrastam consigo suas mazelas e preconceitos.

Se lançarmos os olhos para essa “Casa dos Horrores” e suas bizarras criaturas que a compõem veremos, que desde sua concepção sempre ignoraram por completo a noção de Estado, Governo e Identidade Nacional, o que sem sombra de dúvidas transformou o Brasil num território vazio, num nada absoluto.

Com efeito, este triste e repugnante estado de coisas, advém do desprezo à lei e na crença da impunidade. Evidentemente tem-se que reconhecer aqui as honrosas exceções, ao mesmo tempo em que se descarta a segunda hipótese.

Destarte, a única e mais plausível explicação para toda essa resistência em normatizar direitos a esses “novos sujeitos de direito” é a falta de vontade política de nossos congressistas, porquanto reconhecer direitos às relações homoeróticas, resultaria em admitir uma gama de direitos somente acessíveis aos heterossexuais.

Kelsen comenta a respeito do estigma social daquele que é diferente e considerado “anormal”:

“A consciência de ser ‘diferente dos outros` compele a um doloroso isolamento e, assim, já de início, a uma certa opção hostil à sociedade que não compreende essa singularidade e que não apenas despreza essa feição particular do Eros, como também submete suas manifestações à punição pelo Estado.” (KELSEN, 1998, p. 65)

Verifica-se, pois, que não se encontram definições cultas e profundas aptas a desenvolverem uma doutrina jurídica a fim de justificar a ausência de legislação no sentido de se admitir o casamento e a adoção por pares homossexuais. Isso só vem a reforçar a idéia de que em matéria de direito, nosso legislador é uma enciclopédia de ignorância.

4 – O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana na Constituição Federal de 1.988.

Os princípios fundamentais em nossa Constituição Federal encontram-se previstos em seu artigo 1º, estabelecendo o legislador com relação aos direitos fundamentais que nossa República tem como razão fundante o princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

Com efeito, segundo J.J. Canotilho, não existe outro lugar ideal senão a Constituição para a positivação desses direitos, pois, a “positivação de direitos fundamentais significa a incorporação na ordem jurídica positiva dos direitos considerados ‘naturais` e ‘inalienáveis` do indivíduo. Não basta uma qualquer positivação. É necessário assinalar-lhes a dimensão de Fundamental Rights colocados no lugar cimeiro das fontes de direito: as normas constitucionais.” (CANOTILHO, 1999, p. 377)

Confira-se a propósito os ensinamentos de Jose Afonso da Silva:

“A dignidade da pessoa humana não é uma criação constitucional, pois ela é um desses conceitos a priori, um dado preexistente a toda a experiência especulativa, tal como a própria pessoa humana. A Constituição, reconhecendo a sua existência e a sua eminência, transforma-a num valor supremo da ordem jurídica, quando a declaração como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil constituída em Estado Democrático de Direito”. (SILVA, 2000, p. 146)

Estabelece, pois, a Constituição Federal seu fundamento maior; a pessoa humana como o sujeito de Direito legitimador de todo o ordenamento jurídico, ou dito de outra forma, a pessoa humana é o valor máximo da República, afasta-se com isso qualquer fundamento que tenha por alicerce os preceitos dos Estados Totalitários, e como pressuposto o fato de que alguns seres humanos possam ser encarados como supérfluos.

Aliás, neste sentido, oportuna é a lição de Celso Lafer:

“A convicção, explicitamente assumida pelo totalitarismo, de que os seres humanos são supérfluos e descartáveis, representa uma contestação frontal à idéia do valor da pessoa humana enquanto ‘valor-fonte` de todos os valores políticos, sociais e econômicos e, destarte, o fundamento último da legitimidade da ordem jurídica, tal como formulada pela tradição, seja no âmbito do paradigma do Direito Natural, seja no da Filosofia do Direito. O valor da pessoa humana enquanto ‘valor-fonte` da ordem de vida em sociedade encontra a sua expressão jurídica nos direitos fundamentais do homem.” (LAFER, 1999, p. 19/20).

Pelo mesmo motivo, não mais encontra em nosso ordenamento jurídico, espaço para o entendimento filosófico e político da Antigüidade clássica, no sentido de que:

“A dignidade da pessoa humana dizia, em regra, com a posição social ocupada pelo indivíduo e seu grau de reconhecimento pelos demais membros da comunidade, daí poder falar-se em quantificação e modulação da dignidade, no sentido de se admitir a existência de pessoas mais dignas ou menos dignas.” (SARLET, 2.000, p. 30).

Foi com o pensamento estóico que a dignidade da pessoa humana ganhou os contornos hodiernos ao considerá-la:

“A qualidade que, por ser inerente ao ser humano, o distinguia das demais criaturas, no sentido de que todos os seres humanos são dotados da mesma dignidade, noção esta que se encontra, por sua vez, intimamente ligada à noção da liberdade pessoal de cada indivíduo, (o Homem como ser livre e responsável por seus atos e seu destino) bem como à idéia de que todos os seres humanos, no que diz com sua natureza, são iguais em dignidade.” (SARLET, 2000, p. 30)

Vê-se, pois, que a essência de tal pensamento era o de justificar a idéia de superioridade e grandeza do homem em relação aos demais seres, por ser o homem a imagem e semelhança de Deus, segundo o pensamento de Thomas de Aquino.

Logo, a idéia de dignidade humana deve ser buscada em função de um Direito Natural, posto tratar-se de um direito “comum a todos e, ligado à própria origem da humanidade, representaria um padrão geral, a servir como ponto de Arquimedes na avaliação de qualquer ordem jurídica positiva.” (LAFER, 1998, p. 36).

Deste modo, inconcebível a tentativa de fundamentação da dignidade humana estribada na qualidade de cristão, católico, protestante, ou na opção sexual da pessoa humana ou ainda na dependência de circunstâncias concretas, posto que inerente a todo ser humano, deste modo impossível deixar de reconhecê-la até mesmo para o maior dos criminosos, visto sua qualidade de ser humano, pelo simples fato de que a igualdade em dignidade não é um dado.

Na concepção Kantiana, a autonomia da vontade é atributo inerente aos seres racionais, constituindo-se no fundamento da dignidade da pessoa humana, com base nesta premissa sustenta que “o Homem e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como um fim e si mesmo, não simplesmente como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade.” (In Os Pensadores, p. 134 /141).

Neste aspecto, oportuna a lição de Kant citada por Sarlet:

“Ainda segundo Kant, afirmando que a qualidade peculiar e insubstituível da pessoa humana, ‘no reino dos fins tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode pôr-se em vez dela qualquer outra equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e, portanto, não permite equivalente, então tem ela dignidade… `” (SARLET, 2000, p.33).

Diante disso, evidente a impossibilidade de qualquer tentativa de coisificação ou instrumentalização do ser humano, ou ainda que a dignidade constitua algo a ser conquistado ou dependente de fatores externos, como por exemplo, a prática de atos dignos, por se tratar de um direito inerente a pessoa humana.

Cumpre salientar ainda, que ao se estabelecer que a dignidade deite suas raízes no direito natural, logo atributo intrínseco da pessoa humana, importa também reconhecer sua irrenunciabilidade, inalienabilidade, além de ser impossível sua obtenção ou remoção por decisão judicial, embora possa ser violada.

Neste contexto, impossível deixar de se reconhecer a estreita relação entre dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais, que “adquirem vida e inteligência por meio da dignidade da pessoa, ao passo que esta se realiza e torna efetiva se não pelos direitos fundamentais.” (ROUSSEAU, 1988, p. 70).

Para falar como Saulo Ramos: “O direito nem sempre é a lei. É a justiça, que busca a felicidade do ser humano, e não a obediência cega a um preceito formal. Muitas vezes, acima da força da lei está o poder da razão.” (RAMOS, 2007, p. 435).

Diante desse contexto, não se pode afirmar açodadamente como pretendem alguns doutrinadores, que a adoção por sociedade afetiva homossexual, diante da ausência de legislação expressa se consubstanciaria num desses absurdos que clamam aos céus. Um para-raio que atrai relâmpago.

5 – A Nova Família advinda com a Constituição de 1.988.

Não restam dúvidas no sentido de que, o Poder Legislativo e o Judiciário ao tratarem do Direito de Família o vislumbrem através de uma visão obtusa, pois atreladas estão suas concepções aos nostálgicos retratos de família do século XV e XVI, onde encontram representados na primeira cena o marido e na segunda a mulher e seus cinco filhos.

Vê-se, pois, que a idéia de família concebida por nossos legisladores e aplicadores da lei sofre de um mal crônico; a forte influência do casal imaginário, do amor cortês entre homem e mulher. Imperioso se faz despertá-los deste romanesco sonho quixoteniano e, lhes apresentar não só uma nova realidade social, mas de toda a humanidade. Não se pode mais lutar contra imaginários moinhos de ventos.

Deixa ainda, despercebido em seus devaneios um fato de extrema relevância, durante muito tempo o casamento foi apenas um contrato, embora essa degradante realidade ainda permaneça viva em algumas sociedades, notadamente naquelas onde o fanatismo religioso, possui o condão de tolher por completo a razão e o discernimento de seus membros.

“No Afeganistão, mulher apaixonada é tabu. É proibido pelos conceitos de honra rigorosos do clã e pelos mulás. Os jovens não têm o direito de se encontrar para amar, não tem o direito de escolher. Amor tem pouco a ver com casamento, ao contrário, pode ser um grave crime, castigado com a morte. Pessoas indisciplinadas são mortas a sangue-frio. Caso apenas um dos dois tenha de ser castigado com a morte, invariavelmente é a mulher. Mulheres novas são, antes demais nada, um objeto de troca e venda. Um casamento é um contrato entre famílias ou dentro de uma família. A vantagem que o casamento pode ter para o clã é que determina tudo – sentimentos raramente são levados em consideração.” (SEIERSTAD, 2007, p. 55)

De outro lado, na sociedade medieval por sua vez, os laços de sangue não constituíam um único grupo, “e sim dois, distintos embora concêntricos: a família ou mesnie, que pode ser comparada à nossa família conjugal moderna, e a linhagem, que estendia sua solidariedade a todos os descendentes de um mesmo ancestral (…). A família ou mesnie, embora não se estendesse a toda linhagem, compreendia, entre os membros que residiam juntos, vários elementos, e, às vezes, vários casais, que viviam numa propriedade que eles se haviam recusado a dividir, segundo um tipo de posse chamado frereche ou fraternitas.” (ÁRIES, 1978, p. 143).

No século XIII, as novas tendências da economia aliadas ás freqüentes transações imobiliárias, provocaram um estreitamento ainda maior das relações na linhagem, conferindo um aumento da autoridade paterna, a fim de garantir e manter a integridade do patrimônio indiviso.

Porém, com o advento do século XVI, os laços da linhagem tornaram-se por demais frouxos, contudo a autoridade do marido dentro de casa tornou-se ainda maior. Esse novo arquétipo introduzido pelo inconsciente coletivo, somado aos costumes da época, fez com que a sociedade passasse a “atribuir à família o valor que outrora atribuía à linhagem. Ela Torna-se a célula social, a base dos Estados, o fundamento do poder monárquico.” (ÁRIES, 1978, p. 146)

Com efeito, a partir do século XIV, encontram-se dados mais concretos da degradação da mulher no contexto social e, principalmente no interior do lar conjugal, culminando por considera – lá relativamente capaz após o casamento, fazendo com que suas atividades ficassem restritas aos afazeres domésticos e educação dos filhos.

Neste contexto deve-se, considerar que na sociedade agrária brasileira a concepção de família tinha como único pressuposto o casamento, cuja principal função era de assegurar a transmissão do patrimônio e do nome. A origem do arquétipo revelador dessa idéia foi o Código Civil de 1.916, que se manteve extremamente fiel à superioridade masculina e bases patrimonialistas.

O Código Civil de 1916, ao positivar a vida privada do inicio do século passado, reproduziu os interesses de uma elite, que segundo Orlando Gomes, era compreendida entre as “(…) trezentas ou quatrocentas mil pessoas pertencentes às famílias proprietárias de escravos, os fazendeiros, os senhores de engenho (…)”, destarte não encontrávamos entre as prioridades do Código Civil revogado, tutelas no sentido de assegurar o respeito ao indivíduo ou à família. (GOMES, 1958, p. 39)

Rosana Amara Girardi Fachin, em sua obra “Em busca da família do novo milênio” deixa claro que “os traços básicos da organização social, política e judiciária do Brasil, inspiraram a família moldada no Código Civil de 1916, profundamente marcada pela solenidade e fundada em bases patrimonialistas, divorciada dos fatos sociais e alheia à verdadeira realidade da família brasileira”. (FACHIN, 2001)

Outro não é o entendimento de Viviane Girardi, em sua obra Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto A Possibilidade Jurídica da Adoção por Homossexuais.

“Proteger essa família, de natureza agrária, era a finalidade do direito prescrito pelas normas do Código Civil de 1.916. Código Civil este, representativo do sistema jurídico liberal burguês fundado sob a égide da legalidade que secularizou o domínio do direito emanado do poder do Estado. Na sociedade agrária brasileira, a família, ao contrário da atualidade, que encontra outras formas de expressão, só era como tal considerada se fundada no casamento, não havendo meio de proteção ou tutela jurídica para outros arranjos familiares. ‘Dai a importância do casamento como sinal de permanência e perenidade, garantia de respeitabilidade, segurança e ascensão. […] A sociedade colonial valorizou o matrimônio, quer na solenização religiosa, quer no convívio da sociabilidade, como uma condição honrada e venerada. `” (GIRARDI, 2005, p. 26).

Hodiernamente, sustentar-se ou quiçá tentar dar aplicabilidade a entendimentos como os acima expostos, seria confundir nuvens por Juno, um desses absurdos que clamam aos céus. Com efeito, a sociedade do século XXI impôs ao estudioso do direito o dever de reconhecer uma nova concepção de família, obrigando-lhe a ter como premissa o fato de que a realidade jurídica deve corresponder exatamente à realidade social, a fim de com isso se possa solucionar eventuais conflitos daí decorrentes.

Assim, a família patriarcal deve hoje ser concebida apenas e tão somente como um acontecimento histórico de um passado embora não muito distante, “uma peça de museu”, cuja principal função foi a de perpetuar o patrimônio, os laços de sangue e legitimar relações sexuais, inadmissível nos dias atuais.

Insta é convir, que a Constituição Federal de 1.988, trouxe consigo o fenômeno da constitucionalização do Direito Civil, o que significa a imposição direta da incidência de Princípios Constitucionais nas relações de direito privado, especialmente no tocante ao direito de família. O que importa em reconhecer a fragilização da tradicional divisão do direito, em privado e público. Destarte, inconcebível na concepção hodierna um entendimento modular, estanque e por que não dizer incomunicável do Direito Civil, preconizado e estereotipado pelos 86 anos de vigência do Código Civil revogado.

Este entendimento conta com o beneplácito da melhor doutrina.

“Os princípios fundamentais, inscritos na ordem constitucional, impuseram a necessária reformulação de toda normativa infraconstitucional, entre elas a vetusta codificação civil que se abre para recepcionar os princípios e valores constitucionais, tendo renovado o sentido de vários de seus artigos ao mesmo tempo em que foram derrogados outros tantos sob o império dos novos valores e máximas constitucionais, sobretudo a incidência do principio da igualdade e da própria norma de isonomia familiar, tanto na filiação (art.227, § 6º, da CF/88) quanto na conjugalidade (art. 226, § 5º, da CF/88), assim como a proteção de outras formas de organização familiar que não somente o casamento (art. 226, § 3º, da CF/88). A essa incidência e permanente penetração do direito constitucional sobre matéria infraconstitucional dá-se o fenômeno hermenêutico da constitucionalização do direito civil.” (GIRARDI, 2005. p. 37)

Não se pretende com isso, afirmar que as relações de família tenham migrado para o direito público, mas sim que a instituição família deve ser valorada e interpretada a partir dos princípios constitucionais.

A lição de Tepedino é clara neste sentido:

“O fato de os princípios de ordem pública permearem todas as relações familiares não significa ter o direito de família migrado para o direito público; devendo-se ao reverso, submeter a convivência familiar, no âmbito do próprio direito civil, aos princípios constitucionais, de tal maneira que a família deixe de ser valorada como instituição, por si só merecedora de tutela privilegiada, como queria o Código Civil, em favor de uma proteção funcionalizada à realização da personalidade e da dignidade dos seus integrantes, como quer o texto constitucional.” ( TEPEDINO, 1999, p. 20)

Denota-se dos ensinamentos acima, que o constituinte de 1.988, atento às angustias e conflitos de suas minorias e na obrigação do judiciário em resolvê-los, procurou colocar o Brasil entre as sociedades de alto nível sócio-econômico-cultural, as quais por sua vez, sempre tiveram como meta primordial integralizar em seu tecido social suas minorias, respeitando a orientação sexual de seus membros, tanto é verdade que erigiu à categoria de princípio constitucional a dignidade da pessoa humana, impedindo com isso qualquer discriminação baseada na orientação sexual.

Assim é que, os dispositivos constitucionais citados por Viviane Girardi, interpretados nos termos do fenômeno hermenêutico da constitucionalização do Direito Civil, tendo como parâmetro a razoabilidade proposta por Tepedino, não deixam dúvidas de que nosso sistema jurídico reconhece e tutela um novo arquétipo de família, qual seja, a família plural, baseada no afeto entre duas pessoas, e, por conseguinte independentemente da diversidade de sexo.

De alguma forma e no exercício do direito de sonhar, o Constituinte de 1988, acreditou que essa “nova família” pudesse surgir da interpretação extensiva das normas constitucionais, esqueceu-se da observação de Saulo Ramos; “no Brasil se a lei não diz claramente, expressamente, detalhadamente, esperar que o direito surja de interpretação extensiva equivale a excluí-lo.” (RAMOS, 2007, p. 340).

A falta de coragem do legislador de 1.988, aliada a inobservância da lição do Ministro da Justiça do governo Sarney, permite que grande parte dos aplicadores do direito, não aceite como entidade familiar as relações de pares homossexuais, ou ainda lhes confira o direito à adoção, o que torna evidente o fato de que nosso Poder Judiciário não está preparado para resolver questões de certa complexibilidade.

Com efeito, ao Judiciário é conveniente apenas e tão somente a solução das lides corriqueiras, pois estas não lhes trazem incômodo algum, porquanto não estão a exigir a coragem da quebra dos paradigmas impostos pelas elites. Contudo, essa recalcitrância infundada faz com que o Brasil se assemelhe as sociedades periféricas da América Latina, onde a exclusão social impõe as suas minorias uma vida no entorno de um Estado adjetivado de direito, como faz o Chile, único país do hemisfério sul a criminalizar a prática homossexual.

Evidente que, o comportamento preconceituoso de alguns aplicadores do direito não terá o condão de obstar, quando muito retardar, o reconhecimento em nosso tecido jurídico da “nova família” originada com a Constituição de 1988, qual seja, a família eudemonista justificada exclusivamente na busca da felicidade e na realização pessoal de seus indivíduos, hodiernamente deve-se ter em mente que a tutela jurídica da família agora está alicerçada no conteúdo ou substância e não em sua forma.

Recentemente, Jacob Dalinger em palestra proferida no Primeiro Congresso Internacional de Direito de Família, realizado pelo IBDFAM em Brasília, DF, afirmou que a África do Sul, aprovou em 14 de novembro de 2.006, o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Em nosso país, o reconhecimento da união dessas pessoas, a fim de permitir-lhes a efetividade de seus direitos, continua a esbarrar no preconceito de nosso legislador e de alguns aplicadores do direito, que insistem em não os reconhecer como sujeitos de direito. Tanto é verdade, que a Proposta de Emenda a Constituição nº. 70/2003, do então Senador Sérgio Cabral, que altera o § 3º do artigo 226, da CF, a fim de reconhecer a União Estável entre pares homossexuais, encontra-se até os dias atuais, na Comissão de Constituição e Justiça.

De outro lado, o projeto de Lei nº. 1.151, de 1.995, da ex Deputada Marta Suplicy, que disciplina a união civil entre pessoas do mesmo sexo, dedicado exclusivamente a regulamentar as questões patrimoniais, não dispondo de forma expressa sobre a adoção, foi alterado pelo Relator do referido Projeto, o ex-Deputado Roberto Jefferson, que apresentou substitutivo alterando o nome para “Parceria Civil Registrada”, ficando vedada de forma expressa, no artigo 3º parágrafo 2º, disposição sobre adoção, tutela ou guarda de crianças ou adolescentes em conjunto.

Embora, repita-se, inconcebível condicionar-se o multiculturalismo ditado pelo Principio da Dignidade da Pessoa Humana à heterossexualidade ou homossexualidade, pois se assim o fizermos estaríamos erigindo como princípio a discriminação entre pessoas, tendo como critério a igualdade de sexo, questão terminantemente vedada pela Constituição Federal.

6. A possibilidade legal da adoção por pares homossexuais.

Com efeito, imprescindível em nosso ordenamento jurídico abandonar-se de vez por todas, conceitos alicerçados em arquétipos moldados na concepção de um Código Civil protagonizado pelas idéias de uma elite dominante e totalitária, a exemplo do Código Civil de 1.916, notadamente no que se refere à definição de família e parentesco, sendo este á época definido a partir da identidade genética.

A moderna doutrina, diante dos métodos reprodutivos por fecundação artificial homóloga ou heteróloga, comercialização de óvulos ou espermatozóides e a cessão ou locação de útero, viu-se obrigada a definir a paternidade tendo como premissa a identificação da posse do estado de filho, e não mais da identidade genética, a propósito do tema a lição de Maria Berenice Dias:

“… os vínculos de filiação não podem ser buscados na verdade jurídica nem na realidade biológica. A definição da paternidade está condicionada à identificação da posse do estado de filho, reconhecida como a relação afetiva, íntima e duradoura, em que uma criança é tratada como filho, por quem cumpre todos os deveres inerentes ao poder familiar: cria, ama, educa e protege. A paternidade é reconhecida pelo vínculo de afetividade, fazendo nascer a filiação socioafetiva.” (DIAS, 2006, p. 107)

Vê-se, pois, que de todas as discriminações de que são vítimas os homossexuais em nossa sociedade, o não reconhecimento de suas uniões e do direito à paternidade, seja por meio da adoção ou decorrentes de reprodução artificial, é a mais cruel, porquanto os impede de atingir um projeto pessoal de vida, o de ter uma família.

Revela notar que o ordenamento jurídico brasileiro não prevê de forma especifica a possibilidade de uniões ou adoções por pares homossexuais, sendo certo, que também não é possível visualizar qualquer impedimento neste sentido, porquanto impossível deixar de reconhecer o direito subjetivo à paternidade desses seres humanos, o qual deriva do direito da personalidade.
Com efeito, a maneira lúcida e racional de como a questão é tratada por Maria Berenice Dias, força-nos a trazer uma vez mais à colação seus ensinamentos.

“Dentre os direitos de personalidade está incluído, também, o direito de ter filhos, pois a maternidade e a paternidade fazem parte do ideário humano, de seu espectro de realização como seres humanos. Não há dúvidas de que existe um direito subjetivo à paternidade, que se situa no âmbito dos direitos de personalidade, espraiando-se para o direito de família, na medida em que decorre de um desejo pessoal da personalidade da pessoa”. (DIAS, 2006, p.107)

Por outro lado, o instituto da adoção merece por parte dos operadores do direito uma nova releitura, inconcebível sua interpretação com base em sua origem, o direito romano, que a enxergava como mero instrumento de integrar pessoas não ligadas por vínculo de sangue a uma família, a fim de se evitar a vergonha de não deixar descendente ou ainda concebê-la como forma de atender aos interesses de casais.

Lucinete S. Santos doutora em Ciências Sociais pela PUC/SP enfatiza:

“Por muito tempo, o principal objetivo da adoção no Brasil foi atender aos interesses dos casais que não podiam ter filhos biológicos, deixando em segundo plano o interesse da criança adotada. Isso fica claro quando se observa que até a lei de legitimação adotiva (1965), a legislação fazia distinção em matéria de herança, excluindo do direito de sucessão hereditária o filho adotivo. (…) Essas são algumas das características de uma cultura de adoção autoritária, conservadora e excludente. (…)”. (SANTOS, 2000, p.142)

Referida concepção a cerca do instituto da adoção, foi banida de nosso ordenamento jurídico pelo artigo 227 e seus §§§ 5º, 6º e 7º, da Constituição Federal, o qual conferiu à adoção a tarefa de tornar factível a inclusão social de crianças ou adolescentes abandonados ou em situação irregular. Este nítido caráter de inclusão social da norma acima, é asseverado por Raffaelli Santini, quando afirma: “O fundamental é que a adoção é uma medida de proteção aos direitos da criança e do adolescente, e não mecanismo de satisfação de interesses dos adultos.” (SANTINI, 1996, p. 72)

Nesse mesmo sentido, preceitua o artigo 43 do Estatuto da Criança e do Adolescente: “A adoção será deferida quando apresentar reais vantagens ao adotado e fundar-se em motivos legítimos.”, confira-se, ainda, o artigo 29 do mesmo Estatuto: “Não se deferirá colocação em família substituta a pessoa que revele, por qualquer modo, incompatibilidade com a natureza da medida ou não ofereça ambiente familiar adequado.”.

Alguns preconceituosos de plantão poderiam vislumbrar, de forma açodada, que estaria no artigo 29 acima transcrito, o veto à adoção por casais homossexuais, já que a convivência poderia gerar conseqüências de ordem comportamental ou na identidade sexual da criança ou adolescente ensejando a “incompatibilidade com natureza da medida”. Nada mais equivocado. O fato de os adotantes serem homossexuais em nada influencia a personalidade do adotado, conforme revelam os estudos apresentados por Maria Berenice Dias:

“Na Califórnia, desde meados de 1970, vem sendo estudada a prole de famílias não-convencionais, filhos de quem vive em comunidade ou em casamentos abertos, bem como crianças criadas por mães lésbicas ou pais gays. Concluíram os pesquisadores que filhos com pais do mesmo sexo demonstram o mesmo nível de ajustamento encontrado entre crianças que convivem com pais dos dois sexos. Nada há de incomum quanto ao desenvolvimento do papel sexual dessas crianças. As meninas são tão femininas quanto as outras, e os meninos tão masculinos quanto os demais. Também não foi detectada qualquer tendência importante no sentido de que os filhos de pais homossexuais venham a se tornar homossexuais.

Estudos que datam de 1976 constataram que as mães lésbicas são tão aptas no desempenho dos papeis maternos quanto as heterossexuais. Por meio de brinquedos típicos de cada sexo, procuram fazer com que os filhos convivam com figuras masculinas com as quais possam se identificar. Não há mostras de que as mães prefiram que os filhos se tornem homossexuais, não havendo sido encontradas evidencias de investidas incestuosas para com os filhos. Igualmente não foram detectadas diferenças de identidade de gênero, no comportamento do papel sexual ou na orientação sexual da prole. Todas as crianças pesquisadas relataram que estavam satisfeitas por serem do sexo eu eram, e nenhuma preferia ser do sexo oposto. O estudo concluiu: A criação em lares formados por lésbicas não leva, por si só a um desenvolvimento psicossocial ou constitui um fator de risco psiquiátrico.”. (DIAS, 2006, p. 113/114)

Conforme se verifica, inexistem provas científicas a indicar qualquer inconveniente para que crianças ou adolescentes sejam adotados por casais homossexuais, portanto devem os aplicadores do direito, já que nosso legislador está totalmente inerte quanto á questão, despir-se de seus preconceitos e aterem-se ao alerta de Marcos Rolim:

“Temos no Brasil, cerca de 200 mil crianças institucionalizadas em abrigos e orfanatos. A esmagadora maioria delas permanecerá nesses espaços de mortificação e desamor até completarem 18 anos porque estão fora da faixa de adoção provável. Tudo o que essas crianças esperam e sonham é o direito de terem uma família no interior das quais sejam amadas e respeitadas. Graças ao preconceito e a tudo que ele oferece de violência e intolerância, entretanto, essas crianças não poderão, em regra ser adotadas por casais homossexuais. Alguém pode me dizer por quê ? Será possível que a estupidez histórica construída escrupulosamente por séculos de moral lusitana seja forte o suficiente para dizer: – ‘Sim, é preferível que essas crianças não tenham qualquer família a serem adotadas por casais homossexuais`? Ora, tenham a santa paciência.( … ) Por hora, me parece o bastante apontar para o preconceito vigente contra as adoções por casais homossexuais com base numa pergunta: – ‘ que valor moral é esse que se faz cúmplice do abandono e do sofrimento de milhares de crianças`.”

Repita-se aqui a lição de Roger Raupp Rios:

“… na ausência de proibição expressa ou de previsão positiva, postula a interpretação da Constituição de acordo com o cânone hermenêutico da ‘unidade da Constituição`, segundo o qual uma interpretação adequada do texto constitucional exige a consideração das demais normas constitucionais, de modo que sejam evitadas conclusões contraditórias.” (RIOS, 2001, p.122).

Com efeito, a tudo que se expôs até o momento acrescentem-se os dogmas constitucionais da igualdade e da dignidade da pessoa humana, em especial o contido no artigo 3º, incisos I e IV da Lei Maior, o qual veda o preconceito em razão da opção sexual, para se concluir que inexiste qualquer proibição à união ou à adoção por pares homoafetivos.

8 – Conclusão

Com efeito, salvo a visão preconceituosa e equivocada de nosso legislador e de alguns aplicadores do direito, vê-se, pois, que inexiste argumento jurídico ou cientifico para não se reconhecer o direito à união e à adoção por pessoas do mesmo sexo. Embora o artigo 226 § 3º da CF, expressamente limite a proteção estatal à família formada por homem e mulher, uma interpretação sistêmica do texto constitucional, permite-se estender essa proteção às sociedades homoafetivas.

Assim imperioso é que o Poder Judiciário, faça seu papel de dar efetividade aos direitos das minorias, porém sem se deixar levar pelo estigma do preconceito, permitindo-se com isso, que crianças relegadas a mercê da própria sorte, deixem o lugar residual que ocupam no seio de nossa sociedade.

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Autor: Aimbere Francisco Torres, é advogado em Bauru, Especialista em Direito Privado pela Instituição Toledo de Ensino (ITE) – Bauru/SP, Mestrando em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Paraná – UNESPAR – Campus de Jacarezinho/PR, Professor da Faculdade de Direito de Bauru – Instituição Toledo de Ensino (ITE) – Bauru/SP, Professor da Faculdade de Direito de Ourinhos – Ourinhos/SP, Professor da Escola da Magistratura do Paraná – Núcleo de Jacarezinho/PR.Advogado em Bauru, Especialista em Direito Privado pela Instituição Toledo de Ensino (ITE) – Bauru/SP, Mestrando em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Paraná – UNESPAR – Campus de Jacarezinho/PR, Professor da Faculdade de Direito de Bauru – Instituição Toledo de Ensino (ITE) – Bauru/SP, Professor da Faculdade de Direito de Ourinhos – Ourinhos/SP, Professor da Escola da Magistratura do Paraná – Núcleo de Jacarezinho/PR.

 

Fonte: IBDFAM