Artigo – Privilegiar cartórios ajuda a desafogar Judiciário e diminui custos – Por Marcelo Rodrigues

O princípio da segurança jurídica reina na organização social, determinando que o Estado proteja os direitos dos indivíduos.

 

Ordenamento jurídico é dotado dos instrumentos necessários à tutela dos direitos. Quanto maior o grau de eficiência desta resposta em termos de previsibilidade, custos e celeridade, mais avançado será o Estado em sua ordem social e em seu crescimento econômico.

 

Ordem social implica nas garantias de justiça e segurança.

 

Consoante conclusão do VIII Congresso Internacional de Direito Registral: Moscou, 2003:

 

“A segurança jurídica é um valor essencial do Direito, afiança a justiça, assegura a liberdade, propende à paz social, e, por tudo isso, resulta ineludível para realizar o bem comum. Tal segurança deve alcançar tanto a titularidade, o conteúdo dos direitos, como a proteção do tráfego sobre os mesmos.”

 

O Direito brasileiro adotou sistema jurídico pautado na segurança preventiva (Civil Law), herdado da longa tradição do direito romano-germânico. A prevenção de possíveis conflitos e litígios se dá com a atuação inicial do notário, para intermediar o interesse dos contratantes, fazendo incidir regras gerais que concretizam objetivamente a boa-fé, substrato do postulado constitucional da solidariedade (artigo 3º, I, Constituição Federal).

 

Diferentemente da Common Law que admite completa liberdade de forma.

 

Nos países do Notariado Latino, a lei atribui ao documento notarial um especial grau de eficácia, muito superior ao do documento particular. É o sistema adotado no Brasil (artigo 236, parágrafos 1º a 3º, CF). O notariado do tipo latino prevê a independência do profissional do direito face ao Estado, sua imparcialidade em relação aos particulares e a exigência de submissão a concurso público. Atribui fé pública e presunção de legalidade aos documentos produzidos. Tais elementos constituem de forma vital na realização da segurança jurídica no âmbito dos negócios jurídicos.

 

Prevenir implica em facilitar, abreviar ou reduzir o risco de litígios, proporcionando segurança jurídica aos cidadãos e, por isto, protege os direitos dos usuários do Direito. Por tabela, reduz o custo das transações, vale dizer, sobram mais recursos para as atividades produtivas.

 

Norberto Bobbio definiu sistemas como (…) “entes que se relacionam com o todo, mas também de forma coerente entre si”.

 

Surge então a indagação: como dar racionalidade ao sistema judiciário brasileiro?

 

A Constituição Cidadã de 1988 trouxe com ela o despertar da cidadania. Vivemos a Era dos Direitos com explosão de demandas sociais, o que, sem dúvida, é positivo na construção de uma sociedade justa, solidária e igualitária.

 

O problema surge quando o Estado, a sociedade e os indivíduos transferem a busca do justo exclusivamente ao Poder Judiciário.

 

Traço cultural da sociedade brasileira é a ausência de controle informal. O indivíduo que tem um atrito com outra pessoa não é recriminado pela vizinhança, escola ou trabalho caso acione de pronto a Justiça antes de tentar solucionar o conflito por meios alternativos.

 

Por sua vez, o Estado é, de longe, o maior litigante judicial, abarcando em suas três esferas cerca de 70% dos processos em tramitação. As agências estatais reguladoras (BACEN incluso) não atuam preventivamente, de modo a evitar novas demandas pulverizadas em milhares e milhares de processos individuais.

 

É preciso ter em conta que administrar Justiça (artigo 133, CF) não equivale necessariamente a ingressar em juízo.

 

Temos ainda no Brasil um caldo profissional atávico: os cursos jurídicos ainda focam apenas no litígio; excesso de cursos jurídicos (país tem mais cursos jurídicos do que o resto do mundo somado); e expressivo número de advogados (apenas o Estado de São Paulo tem mais advogados que todo o Japão, p. ex.).

 

Em recente entrevista, Kazuo Watanabe traz algumas importantes reflexões:  “A Justiça é obra coletiva (…) A boa organização da Justiça não depende só do Poder Público, depende da participação da sociedade (…) A sociedade não pode ser tão dependente do Estado na resolução dos conflitos, tem de ter mecanismos próprios para solucionar as disputas (…) No entanto, o processo judicial traz um estado de incerteza , mesmo para aquele que tem razão em vista, porque a decisão é do juiz (…)”  (http://www.conjur.com.br/2014-nov-23/mudanca-cultura-litigio-mediacao-nao-basta; acesso em 26/11/14, às 15:55h).

 

Recentemente foram divulgados pelo CNJ os dados estatísticos do Relatório Justiça em Números 2014. Por tais dados percebe-se que o custo do Judiciário no Brasil gira em torno de 1,27% do PIB (= R$54.610 bilhões/ano). Comparativamente, o custo da violência no Brasil atinge o montante de 6,00% PIB (= R$258.000 bilhões/ano), consoante divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

 

Temos em estoque 95,9 milhões de processos judiciais (média de um processo para cada dois brasileiros), com taxa de congestionamento de 70,9%. Nos últimos cinco anos este estoque aumentou em 12 milhões de novos processos, com crescimento anual médio de 2,78%. Todavia, se considerado apenas o último ano este crescimento foi da ordem de 3,4%, o que indica curva ascendente. Em contrapartida, o número de juízes vem caindo: apenas 16,5 mil.

 

Neste descortino, os juízes brasileiros proferiram em 2013 a média de 4,28 decisões/sentenças por dia, computados os 365 dias do ano, com sábados, domingos e feriados, uma das maiores operosidades de todos os sistemas judiciais do planeta. Por vicissitudes do próprio sistema, lamentavelmente boa parte destas decisões não resolvem o litígio propriamente dito, pois não alcançam o mérito da causa.

 

Desenvolvemos um sistema judicial complexo e anacrônico. Quatro instâncias, duas justiças comuns (Estaduais e Federal), e três justiças especializadas (Trabalhista, Eleitoral e Militar).

 

A aritmética é a seguinte: embora nunca tenha se julgado tanto, o esforço individual de cada magistrado derrete como gelo em distorção do sistema que estimula a resolução de conflitos pelo Judiciário. Conclusão: devemos aumentar a eficiência, incentivar a resolução dos conflitos por meios alternativos e desoprimir o sistema judicial.

 

Qual o papel dos cartórios neste contexto?

 

Os Cartórios são instituições oficiais e integram a estrutura do Poder Judiciário como serviços auxiliares (artigo 103-B, III, CF). Compreendem os únicos serviços estatais totalmente comprometidos com as garantias da autenticidade, segurança, eficácia e publicidade dos atos jurídicos mais importantes e possuem capilaridade em todo território nacional.

 

Na Constituição Federal de 1824 havia uma norma que dizia que ninguém poderia ter acesso à Justiça sem provar que tentou previamente a conciliação e que isso seria feito por um juiz de paz. A figura de juiz de paz que temos hoje remonta a essa instituição antiga, mas hoje juiz de paz é juiz de casamento. Esta ferramenta poderia sim ser usada para determinadas demandas, inclusive com a participação dos tabeliães, potencializando a capilaridade dos cartórios. Hoje, impera a regra da inafastabilidade absoluta da jurisdição, desprovida de qualquer modulação. A Constituição Cidadã foi muito generosa, nem tanto precavida.

 

A desopressão do Judiciário passa por prestigiar o Sistema do Notariado Latino, incentivar a via alternativa da desjudicialização nos casos de administração pública de interesses privados (ex.: usucapião administrativa). Fortalecer a segurança jurídica preventiva, tanto a estática, como a dinâmica (ex.: Princípio da Concentração na Matrícula); redução da litigiosidade adotando-se como política do Estado o estímulo à conciliação, mediação e arbitragem; além de racionalizar o processo judicial.

 

No que concerne ao Princípio da Concentração na Matrícula, nenhum fato jurídico – judicial ou extrajudicial, público ou particular –, com repercussão no direito real inscrito, ou sobre a pessoa de seu titular, deve ficar alheio ao sistema de publicidade registral imobiliária. Assegura-se o devido prestígio à segurança jurídica preventiva e dinâmica do comércio. Contribui para conferir maior eficácia ao efeito do registro: oponibilidade. Gera alerta aos terceiros de boa-fé, equalizando direitos em princípio antagônicos daqueles e dos credores. Reduz a burocracia e agiliza as transações imobiliárias.

 

O Código de Normas dos Serviços Notariais e de Registros do Estado de Minas Gerais (Provimento CGJMG 260, de 18/10/13), normativa para a qual integrei o grupo de trabalho respectivo, largou na frente, prevendo-o especificamente, a saber:

 

"Art. 621: O serviço, a função e a atividade registral imobiliária se norteiam pelos princípios constantes do art. 5º e pelos específicos da atividade, tais como: (…)

 

IX – da concentração, a possibilitar que se averbem na matrícula as ocorrências que alterem o registro, inclusive títulos de natureza judicial ou administrativa, para que haja uma publicidade ampla e de conhecimento de todos, preservando e garantindo, com isso, os interesses do adquirente e de terceiros de boa-fé

 

Art. 824. Além dos casos expressamente previstos em lei e neste Provimento, serão averbadas na matrícula as sub-rogações e outras ocorrências que, por qualquer modo, alterem o ato.

 

Art. 825. Os atos, fatos e contratos relativos ao imóvel, registro ou averbação ou às pessoas neles constantes poderão ser averbados para que produzam efeitos contra terceiros.

 

Art. 826. As informações constantes dos registros ou das averbações são suficientes para atestar tanto a titularidade dos direitos quanto as restrições pessoais e os ônus, encargos ou gravames existentes no imóvel."

 

Cerca de um ano após (7/10/14), foi editada e MP 656 cujos artigos 10 a 17 tratam especificamente do tema.  Referida medida se apropria, de certa forma, do tema a que se dedica o Projeto de lei 5.708 em lenta tramitação no Congresso. Torna-se oficialmente desnecessária a obtenção de certidões de feitos ajuizados em nome do proprietário e vendedor do imóvel, prática esta de reduzida eficácia por três motivos: 1) inexistência de um cadastro centralizado de ações judiciais em curso; 2) adoção do foro relativo do lugar do fato nas ações pessoais; 3) possibilidade de a ação judicial que venha a atingir a propriedade do imóvel ainda não tenha sido ajuizada, e só o seja após o imóvel ter sido vendido, trazendo para o comprador o dissabor de se defrontar com a evicção mesmo tendo adotado todas as cautelas documentais que estavam a seu alcance.

 

Nos termos do parágrafo único do artigo 10 da MP 656: “Não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula no Registro de Imóveis, inclusive para fins de evicção, ao terceiro de boa-fé que adquirir ou receber em garantia direitos reais sobre o imóvel, ressalvados o disposto nos artigos 129 e 130 da Lei de Falências (Lei 11.101/2005), e as hipóteses de aquisição e extinção da propriedade que independam de registro de título de imóvel".

 

Prestigia-se o sistema de publicidade registral imobiliária: examinando a certidão da matrícula no Registro de Imóveis, o comprador pode ter a certeza de que existem, ou de que não existem, ações judiciais que possam atingir o imóvel adquirido. O que não estiver na matrícula do imóvel, não atinge o direito inscrito. Cabe ao credor ser diligente, providenciando o quanto antes o registro da citação ou a averbação da existência da ação na matrícula do imóvel, cuja razoabilidade deverá ser aferida pelo juiz. Quanto ao cancelamento posterior poderia ser operado automaticamente, pelo decurso do tempo, observadas determinadas condições, algo que pode ainda ser previsto em futuro próximo. Mais: a averbação é gratuita para quem não possa arcar com os emolumentos (artigo 12, II.). Simples e eficiente.

 

Marcelo Rodrigues é desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais e especialista em Direito Notarial e Registros Públicos.

 

 

Fonte: Conjur