Artigo – Relações patrimoniais de Família: alguns questionamentos – Por Vanessa Ribeiro Corrêa

Autor: Vanessa Ribeiro Corrêa Sampaio Souza

SUMÁRIO: 1 Aspectos gerais; 2 O regime da separação obrigatória de bens e suas implicações sobre o casamento e a união estável;  2.1 O Código Civil de 2002 e a permanência da Súmula 377 do STF; 3 Mutabilidade do regime de bens; 4 A necessidade de outorga para a realização de negócios jurídicos; 4.1 Extensão do art. 1647, CC aos conviventes, por analogia à situação dos cônjuges; 5 A autonomia privada e o conteúdo dos pactos antenupciais e contratos de convivência; 6 As repercussões patrimoniais das uniões simultâneas; 7 Conclusão; 8 Referências Bibliográficas.


1 Aspectos gerais

Um estudo mais atual do Direito Civil parte do pressuposto da família ser garantida pela Constituição como ente responsável pelo desenvolvimento da pessoa, colocando-se sempre em função da realização das exigências humanas. Assim, são estabelecidas diversas formas de estrutura familiar, todas aptas a atender às necessidades do desenvolvimento existencial de cada ser. Essa vocação pode ser percebida nas diferentes formas de análise e de interpretação, criadas pelos operadores do direito, para os vínculos decorrentes desses arranjos, sendo crescente o número de novas teorias e entendimentos acerca dos problemas que envolvem a relação entre pais e filhos e também entre cônjuges e companheiros.

 As relações patrimoniais inserem-se em um contexto tangencial, porém como uma realidade inexorável da vida em conjunto, afigurando-se como matéria digna de tutela, mas sempre com o sentido de acessoriedade, ou melhor, instrumentalização para a mais completa proteção do indivíduo.

                        Tem-se, em termos de codificação, o estabelecimento de regras que regulam a situação patrimonial dos cônjuges e dos companheiros, sendo necessário verificar ainda a possível manifestação de vontade dos próprios interessados sobre essas questões, eis que inserida na esfera de autonomia do casal a organização mais apropriada para essas relações. Para tanto, trabalha-se com um estatuto jurídico de base, ou seja, um conjunto de regras organizadoras do regime patrimonial da família, sobre o qual não cabe modificação com base na vontade humana, com normas sobre o pacto antenupcial e o denominado contrato de convivência, além da organização dos regimes em espécie.

Em se tratando de casamento, as pessoas interessadas – nubentes – podem, para afastar o regime da comunhão parcial, que é o regime legal vigente, escolher, por meio de declaração formal de vontade, qualquer um dos regimes dispostos pelo Código Civil. Podem ainda criar regras próprias a partir das quais serão reguladas as relações patrimoniais advindas do matrimônio, estipulando o que melhor lhes aprouver nesse sentido Segundo Fachin, seria o regime inominado ou misto, universo de auto-regulação[1]. Essa possibilidade encontra respaldo no art. 1639, CC[2].

Em suma, cabe aos cônjuges, em sua autonomia, o regramento de suas relações, pelo menos de conteúdo patrimonial. Caso não o façam, a lei apresenta o regime supletivo. Ou seja, não há casamento sem regime de bens. Para Eduardo de Oliveira Leite, “regime de bens é, pois, o complexo de normas que disciplina as relações econômicas entre marido e mulher durante o casamento.”[3]

A escolha desse regime tem influência que vai além do casamento, alcançando aspectos sucessórios, eis que diferentemente do que ocorria durante a vigência do Código Civil de 1916, é possível, através do conteúdo do pacto antenupcial, estabelecer, ou não, o cônjuge como herdeiro na primeira linha sucessória, em concorrência com os descendentes do de cujus[4].

Percebe-se que a regulamentação jurídica da vida conjugal é traçada através de diferentes nuances, sendo que um aspecto que deve permear todas as discussões dos efeitos patrimoniais nas relações de família diz respeito, principalmente, ao alcance da intervenção do Estado nessas relações, na medida em que cabe a tutela e a proteção das famílias, mas qualquer tipo de paternalismo deve ser evitado, tendo em vista a igualdade constitucional estabelecida entre os indivíduos como um todo e também especificamente entre os cônjuges. A organização do matrimônio no Código Civil de 2002 acompanhou em grande parte a estrutura estabelecida pela legislação anterior, aproveitando-se da construção erguida em benefício da chamada família oriunda das justas núpcias que, juntamente com a propriedade e o contrato, sempre se constituiu como um dos pilares de sustentação do direito privado nacional.

Com menor rigor e cuidado, traçou o legislador as normas patrimoniais básicas referentes à união estável, permitindo-se aos companheiros, através do art. 1725, CC, a organização voluntária sobre os bens, sendo utilizado, no caso de ausência desta e, no que couber, as normas do regime parcial de bens. As repercussões patrimoniais da união estável ainda geram muitas controvérsias diante do não entendimento de que esta relação perfaz-se de fato, com vistas à manutenção da liberdade dos indivíduos, havendo ainda, como será visto, muitas interpretações que insistem em equiparar a união estável ao casamento, para o fim da aplicação de normas de conteúdo patrimonial. Sobretudo nessas uniões deve-se evitar, ao máximo, uma intervenção desarrazoada do Estado, que muitas vezes insiste em substituir a vontade dos interessados por regras já existentes para o casamento.[5]

Diante dessa desigualdade entre os institutos, muitos problemas, sobretudo os de natureza patrimonial, restam para que sejam desenvolvidos e discutidos. Assim, partindo-se daquelas relações que foram reguladas de forma ampla pelo Código Civil, ou seja, dos efeitos patrimoniais do casamento, passa-se a analisar a forma como o assunto deve ser tratado nos casos de união estável, sabendo-se que, nessas hipóteses requer-se uma pesquisa mais aprofundada, uma vez que não se pode realizar uma importação acrítica de sistematização jurídica.

2 O regime da separação obrigatória de bens e suas implicações sobre o casamento e a união estável

Em termos gerais, são as partes interessadas livres para a escolha do tratamento que será conferido aos seus bens após o estabelecimento da união, seja ela livre ou conjugal. Para tanto, existem os instrumentos do pacto antenupcial e do acordo estabelecido voluntariamente por aqueles que vivem em união estável.

No entanto, há pessoas que, por se encontrarem em determinadas circunstâncias, tornam-se impedidas de efetuar a referida escolha, sob o argumento de que necessitam ser protegidas pelo Estado. Nesses casos, deve-se aplicar o regime da separação de bens, que torna-se, portanto, regime obrigatório. O art. 1641 do Código Civil elenca quem são essas pessoas dignas de proteção, sendo as mesmas, em síntese, aquelas que sofrem o risco de perda patrimonial pela possibilidade de confusão de bens, os menores e os maiores de sessenta anos. 

Considerada a aplicação do regime de separação, ter-se-ia uma individualização patrimonial, preservando-se os bens na esfera de interesse de cada um dos cônjuges, tanto no que diz respeito à aquisição como também quanto à administração.

As causas de aplicação do regime de separação obrigatória merecem ser estudadas de forma mais meticulosa.[6]

          O primeiro caso envolve aquelas pessoas que resolvem casar-se durante os efeitos das chamadas causas suspensivas, previstas no art. 1523, CC. Nessa hipótese, está-se diante da possibilidade de prejuízo para os filhos, tendo em vista a alta probabilidade de confusão patrimonial entre os bens adquiridos anteriormente e aqueles advindos da nova união. O inciso tem em vista, igualmente, a proteção de tutelados e curatelados.

          O segundo caso, qual seja a previsão de regime obrigatório de separação para os maiores de 60 anos é, sem dúvida, a mais controvertida de todas as hipóteses descritas no Código Civil.[7] 

          A doutrina clássica do Direito Civil, representada, neste caso, por Pontes de Miranda, era totalmente a favor da estipulação de uma idade a partir da qual o regime de bens a ser aplicado deveria ser o da separação obrigatória. Falava-se que “Todavia, para evitar explorações, consistentes em levar-se ao casamento, para fins de comunhão de bens, mulheres em idade vulnerável, ou homens em fase de crise afetiva, a lei cortou cerce a possibilidade das estipulações convencionais de ordem matrimonial e excluiu o regime comum. É cogente o da separação de bens.” [8]

          Clóvis Beviláqua, acompanhando o pensamento anterior, também era a favor da imposição legal do regime, pois imaginava que essas pessoas já teriam passado da idade em que o casamento se realiza por impulso afetivo.[9]

          Mas, diante do novo cenário de valores adotado pelo constituinte de 1988, o questionamento que se deve fazer é se não haveria uma intervenção desarrazoada na liberdade e na autonomia privada ao não se permitir a escolha do regime de bens com base unicamente na idade da pessoa, ou melhor, na sua configuração jurídica como idoso.

                  Conforme ressaltado por Rodrigo da Cunha Pereira, é necessário que não se confunda tutela com poder de fiscalização e controle, de forma a se restringir a autonomia privada, limitando de maneira exacerbada a vontade e a liberdade dos indivíduos. Assim, deve ser concebida a figura de um Estado-protetor e não de um Estado-interventor, servindo como justificativa o art. 226 da CR e o art. 1513, CC.[10] No caso das pessoas acima de 60 anos, a estipulação do regime teria, ainda na visão daquele autor, ultrapassado o mero sentido de proteção.[11]

                  O desrespeito à dignidade humana faz com que a defesa da inconstitucionalidade da norma seja a melhor solução para o equilíbrio do sistema jurídico, respeitando-se o idoso que deseja unir-se matrimonialmente a outrem.[12]                   

                        Aqueles que entendem ser o mesmo dispositivo constitucional mencionam o seu caráter protetivo e sua vocação para a manutenção da paz familiar, mas, na verdade, o que se encontra na base desse entendimento é o fato de se não aceitar determinados comportamentos do idoso, que na concepção da sociedade em geral, são considerados como indesejados, além do fato de que a possível comunhão de bens vai interferir diretamente na herança a ser deixada, resultado que a muitos incomoda, tendo em vista os interesses meramente patrimoniais que estes possuem. A essa conclusão se chega principalmente porque a integridade física e o bem-estar do maior de 60 anos, em tese, não se encontram sob risco, eis que num regime de comunhão estaria resguardado pela meação, bem como por ser impedido, como qualquer pessoa, de dispor completamente de seu patrimônio através de doação, conforme art. 548, CC. Ou seja, já há na lei proteção suficiente. Como pano de fundo tem-se, além da desconsideração pela vontade do idoso, o ideal de proteção dos herdeiros, na mesma linha do resguardo que a lei confere aos chamados herdeiros necessários, ou seja, impede-se que o próprio titular dos bens, aquele que os adquiriu durante a sua vida, não possa deles dispor da maneira que melhor entender, partindo-se do pressuposto de um paternalismo interesseiro, totalmente desvinculado dos valores atuais adotados pelo Estado brasileiro.

                        Nos Tribunais, a tese da inconstitucionalidade ainda não é vitoriosa, preponderando o entendimento de que a restrição é proporcional e que o intuito protetivo do legislador deve prevalecer.[13]

                       Reflexo da aceitação do conteúdo do dispositivo encontra-se no fato de que o projeto de lei número 108/07 ratifica a determinação de que a partir de certa idade deve-se vedar a livre escolha do regime de bens, alterando somente o limite etário para 70 anos, com base na maior expectativa de vida do brasileiro.

                      Já a última hipótese legal descrita para a imposição do regime de separação obrigatória é aquela que diz respeito a todos que dependem, para casar, do suprimento judicial. Essa disposição tem como objetivo a proteção dos menores, sejam aqueles que dependem do suprimento judicial de idade ou de consentimento. Nesses casos, vislumbra-se, mais uma vez, o intuito do Estado de proteger as famílias, confiando-se no julgador para permitir a constituição de um novo núcleo de convivência, mas não se conferindo ao mesmo órgão a possibilidade de interferência nos aspectos patrimoniais que cercarão aquela vida em conjunto. Ou seja, o juiz decide sobre questão de muito maior interesse, que é a própria comunhão de vidas, mas o legislador, a priori, retira a possibilidade de qualquer intervenção sobre os bens.

       Conhecidas todas as hipóteses legais de aplicação do regime de separação obrigatória, cabível torna-se a indagação acerca da aplicabilidade do regime de separação obrigatória aos casos de união estável.

        Percebe-se claramente que a imposição legal de um regime de organização dos bens é regra excepcional por desconsiderar a liberdade de escolha dos sujeitos, permitindo-se a união, mas interferindo-se o Estado em aspectos econômicos, portanto disponíveis, da nova vida do casal. Diante desse quadro, tem-se que a aplicação extensiva dessa norma para aqueles que escolhem viver em união estável não deve ser aceita, sob pena de aplicação a hipóteses não previstas pelo legislador, sendo desrespeitada, mais uma vez, a liberdade daqueles que optam pela união informal. Segundo Paulo Luiz Netto Lôbo, o regime obrigatório de bens afigurar-se-ia como uma espécie de ônus, na medida em que, segundo lição de Pontes de Miranda, não haveria relação entre sujeitos, sendo sua satisfação um interesse do próprio onerado. Assim, “O regime obrigatório de bens é tipicamente um ônus: a pessoa, incluída em alguma das três hipóteses legais, escolhe em casar ou não casar; se preferir casar, deverá suportar o ônus do regime obrigatório de bens.”[14] Logo, a liberdade e informalidade, bases para a constituição da união estável, não se encontram de acordo com a aplicação irrestrita dessa limitação, sobretudo por dizer respeito a questões patrimoniais que, como visto, funcionam, dentro da família, apenas como instrumento para a realização pessoal daqueles que dela fazem parte.[15]

          No Recurso Especial 736627/PR, entendeu-se pela aplicação do regime de separação obrigatória de bens a um casal de sexagenários que resolveu viver em união estável. Foi ressaltada a necessidade de se estender a aplicação da norma, evitando-se sua utilização somente para o casamento, eis que desaconselhável o estabelecimento de regimes diversos para as duas espécies de comunhão. Alegou-se que estaria sendo estipulado regime mais benéfico para a união estável, o que não seria aceitável, tendo em vista a previsão do art. 226, § 3º da CF/88, que colocaria o companheirismo num plano inferior ao do casamento. Além desses argumentos, com os quais, data venia, não se concorda, afirmou-se que a não aplicação do regime de separação favoreceria a fraude à lei e contrariaria a mens legis da Constituição Federal.[16]

2.1 O Código Civil de 2002 e a permanência da Súmula 377 do STF

                      Considerando que não há escolha livre dos nubentes para a adoção do regime de bens nos casos de separação impostos pela lei, foi criado um tipo de abrandamento para que o patrimônio adquirido durante a união pudesse ser dividido entre os cônjuges. Trata-se do enunciado 377 da Súmula do Supremo Tribunal Federal, de 03.04.1964, cujo teor é o seguinte: “No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento.” Ao que parece, a criação deste enunciado tinha em vista compatibilizar o regime de separação obrigatória com a regra descrita no art. 259 do CC/1916, que dizia “Embora o regime não seja o da comunhão de bens, prevalecerão, no silêncio do contrato, os princípios dela, quanto à comunicação dos adquiridos na constância do casamento.”

       A não repetição deste dispositivo na atual codificação leva a crer que a súmula deva perder os seus efeitos, eis que estipula uma regra discordante da própria essência do regime de separação, esvaziando-o quase por completo.

        Nesse sentido tem-se a decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, segundo a qual “Nenhuma regra semelhante ao art. 259, do CCB/16 contém o vigente Código Civil. É conclusivo, portanto, que a súmula 377 do STF que permite a comunicação dos bens adquiridos na constância do matrimônio não mais possui aplicabilidade em face da atual legislação.”[17]

                         Além desse argumento de ordem objetiva, deve-se levar em conta ainda ser possível que as partes interessadas afastem, através de pacto antenupcial, a aplicação do enunciado, fazendo prevalecer a vontade de eliminar qualquer tipo de comunicação de bens entre os participantes da comunhão. O entendimento sumulado significa apenas uma interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal, em 1964, o que não restringe a liberdade das partes no sentido da pura aplicação do regime de separação.[18]

         Outro aspecto a ser mencionado considera a possibilidade prevista no art. 1639, § 2º, do CC, que permite a modificação do regime de bens durante o matrimônio. Assim, diante de um quadro em que se admite a mudança do regime de bens, não deve prevalecer a aplicação do enunciado aos casos de separação obrigatória. Isso porque, cabe aos cônjuges, tão logo cessadas as causas que conduzem à imposição legal da separação, a opção por qualquer outro dos regimes tipificados pela lei, bem como a criação de um regime próprio, com regras diversas daqueles modelos previamente organizados. Assim, deve-se manter a separação patrimonial enquanto vigentes as causas, deixando-se ao alvedrio das partes a manutenção, ou não, daquelas regras, já que são livres para a escolha de um novo regime. A manifestação expressa de vontade no sentido da modificação do regime torna-se, nesses casos, exigível, principalmente para a proteção dos terceiros, uma vez que pode se afigurar de grande dificuldade para os mesmos descobrir se as causas que geraram a separação legal de bens realmente se extinguiram.

3 Mutabilidade do regime de bens

                        Logo após a vigência do art. 1639, § 2º, do Código Civil, dispositivo que permite a modificação do regime de bens[19], passou-se a questionar se a referida possibilidade poderia alcançar os casamentos anteriores a 2002, ou, se ao contrário, restringir-se-iam aos atos praticados após aquela data.[20] A discussão sempre esteve ao redor da interpretação do artigo já mencionado e do art. 2039, segundo o qual: “O regime de bens nos casamentos celebrados na vigência do Código Civil anterior, Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916, é o por ele estabelecido”. Na doutrina, o melhor posicionamento sempre foi aquele segundo o qual seria possível a extensão aos casamentos anteriores a 2002, sendo considerada a mutabilidade como uma característica do regime de bens, devendo, portanto, incidir sobre os casamentos em curso, por caracterizarem-se estes como uma relação jurídica continuativa.[21] Também para Luiz Edson Fachin essa nova postura do Código Civil alcança todas as relações jurídicas em curso, com base no art. 2035 do mesmo diploma.

                  No Superior Tribunal de Justiça, vem sendo aceita a modificação do regime para casamentos anteriores. O antigo argumento baseado no art. 2039 não vingou, tendo em vista o fato de que a regulamentação anterior deve continuar persistindo no que diz respeito aos regimes trazidos pelo CC/16, como se, por exemplo, alguém tivesse instituído o regime dotal durante a codificação anterior.

                   Para Rolf Madaleno, a intervenção do Estado no sentido da não modificação do regime de bens era uma interferência que não mais se coadunava com o contexto de absoluta identidade de capacidade e de compreensão dos casais, não sendo cabível considerar um dos consortes, tão só pelo seu gênero, como frágil e ingênuo se comparado ao outro parceiro conjugal.[22] A modificação do regime de bens, contudo, afigura-se como ato formal, estando condicionado a diversos requisitos, conforme se retira do próprio art. 1639, §2º: autorização judicial, pedido conjunto de ambos os cônjuges, razões para a mudança e não afronta aos direitos de terceiros.[23]

                        A escolha do regime de bens é ato essencialmente voluntário, sendo feita no momento de habilitação para o casamento ou, mais formalmente, através do pacto antenupcial. Em ambas as hipóteses, porém, a manifestação de vontade ocorre extrajudicialmente.  O mesmo não acontece nos casos em que se busca a sua modificação, cabendo ao Poder Judiciário permitir ou não a mudança. Dessa forma, exige-se que se apresente perante o Poder Estatal pedido conjunto de ambos os cônjuges, verdadeiro corolário do princípio da igualdade e regra para a proteção dos interesses de ambos.

                       É necessário ainda que sejam fornecidas todas as informações e justificativas para o pedido, cabendo ao juiz aferir a procedência das mesmas. Sobre esse assunto, Silmara Chinelato apresenta crítica, por se tratar de interferência desarrazoada do Estado na intimidade alheia. Para a mesma autora: “Com respaldo no direito à intimidade e à vida privada, direitos da personalidade, no meu modo de ver basta que o casal alegue conveniência das partes embasada na experiência de vida em comum.”[24]

                       Ao que parece, a intenção do legislador foi mesmo a de tornar a modificação do regime uma exceção, dificultando, por isso, o procedimento de alteração. É certo que, pela literalidade do dispositivo, não se deve considerar o juiz, nesses casos, um mero homologador da vontade das partes, cabendo a ele verificar a motivação apresentada. A simples conveniência das partes, com o perdão daqueles que pensam contrariamente, não deve ser considerada como razão justificadora para a modificação, sendo esta extraída de outro elemento exigido pela lei, qual seja o pedido conjunto. É óbvio que se não fosse conveniente e nem da vontade de ambos os cônjuges, o pedido de modificação não teria sido apresentado. De forma que, razões objetivas, como, por exemplo, um benefício patrimonial para um dos cônjuges ou para os filhos dos mesmos, ou até a não confusão patrimonial derivada das atividades profissionais de cada um, devem ser apresentadas pelas partes e aferidas pelo julgador. Razões dessa ordem não parecem ferir a privacidade da família, cumprindo tão somente a exigência do legislador. Em suma, não se exige uma análise de rigor ou com excesso de formalismos, mas tão somente a apresentação de motivos para a mudança.[25]

                        O último requisito apresentado pelo legislador diz respeito à proteção dos terceiros, pois pode ocorrer que a intenção do casal seja a de prejudicar terceiros com a modificação do regime patrimonial de seus bens. Assim, preventivamente, permite-se ao juiz perquirir acerca dos possíveis efeitos daquela modificação, indeferindo a mudança caso se constate a possibilidade de prejuízo alheio. Por isso, o provimento 024/03, da Corregedoria Geral de Justiça do Rio Grande do Sul determina que o Juízo competente para a modificação deve publicar edital com prazo de trinta dias para o fim de imprimir publicidade à mudança, bem como resguardar o interesse de terceiros. No mesmo sentido a Corregedoria Geral de Justiça do Estado de Santa Catarina, através do art. 1º do provimento 13/2003.[26] Em qualquer caso, porém, ainda que não fosse a preocupação específica do legislador, caberia a propositura de ação para invalidar a modificação do regime com base na fraude contra credores.

                      Outra discussão sobre a mutabilidade do regime diz respeito à produção de efeitos, indagando-se se estes seriam ex tunc ou ex nunc. 

                      Caso se entenda que a mudança do regime terá efeitos ex nunc, o patrimônio adquirido antes da mudança continuará sendo regido pelas regras anteriores, não sendo afetado pela mudança. De outra parte, se se entender que os efeitos são ex tunc ,todos os bens passam a ser regidos pelas normas do novo regime adotado, seja este típico ou fruto da criação e vontade do casal. A lei nada menciona acerca dos efeitos, mas parece ser mais aceitável defender que os efeitos se produzem de maneira ex tunc, sobretudo pela intenção de defender os terceiros de uma possível fraude a ser perpetrada pelo casal. Se a modificação fosse recair tão somente sobre o patrimônio a ser constituído, os terceiros não poderiam ser, em tese, afetados, sendo desnecessário o excesso de cautela da lei. Dessa forma, deve-se entender que há retroatividade para os efeitos da mudança do regime, salvo interesse manifestado pelas próprias partes no sentido de que a produção de efeitos seja ex nunc. [27]

                      Outra questão interessante sobre a mutabilidade do regime concerne ao entendimento de que em alguns casos impõe-se a partilha de bens entre os cônjuges. Esse posicionamento foi manifestado em decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ao afirmar que em determinados casos, como por exemplo, quando se muda um regime de comunhão universal ou parcial para um regime de separação, há necessidade de prévia partilha dos bens.[28] Data venia deste entendimento, deve ser afirmado que a mudança do regime é um novo título jurídico para a modificação patrimonial, sendo necessária e suficiente a expedição de ofício judicial, e não formal de partilha, para a regularização da titularidade do bem, ato a ser praticado após o devido pagamento do imposto porventura incidente.[29]

                      Sobre a união estável, é muito importante lembrar que o Código não exige qualquer tipo de formalidade para que se altere a organização dos bens adquiridos pelos conviventes. Sabe-se que os mesmos podem dispor acerca de seu patrimônio por meio de uma espécie de ajuste, denominado pela doutrina de contrato de convivência, não havendo para a alteração deste o mesmo rigor existente para a mudança do regime patrimonial. Esse fato serve, mais uma vez, para demonstrar a diferença dos institutos e a impossibilidade de uma aplicação acrítica entre os mesmos, servindo ainda para afastar a submissão da união estável ao casamento como forma de entidade familiar, pois a possibilidade de uma alteração livre é muito mais atrativa que o cumprimento de todos os requisitos exigidos pelo art. 1639, § 2º, CC.

4 A necessidade de outorga para a realização de negócios jurídicos

                        Outra questão patrimonial bastante relevante e que deve ser solucionada à luz da diferença entre casamento e união estável é a que trata da extensão da necessidade de outorga do cônjuge para os negócios jurídicos sobre bens imóveis, praticados pelos companheiros.

Ao se trabalhar com a união estável e as “regras” aplicáveis às situações patrimoniais nela envolvidas, deve-se ter em conta a necessidade de compatibilização entre a liberdade e a segurança. Além disso, deve-se ressaltar a necessidade de proteger os indivíduos em suas escolhas, não cabendo a aplicação obrigatória de todos os institutos pertinentes ao casamento à união estável. Isso ocorre porque ambas são entidades familiares, mas que não são idênticas na sua formação, baseada a união estável num vínculo livre e isento de formalidade e certificação registral, diferentemente do que ocorre com o casamento. Deve-se atentar, sobretudo, para o fato de que o companheirismo não constitui estado jurídico de forma a criar um diferenciado status familiae, o que, por certo, influi de forma preponderante sobre a regulação de muitos aspectos negociais que se apresentam na vida dos companheiros.

Para Pietro Perlingieri, a família não fundada no casamento constitui também uma formação social potencialmente idônea para o desenvolvimento da personalidade de seus componentes, sendo, por isso, orientada pelo ordenamento jurídico a perseguir esta função.[30] Acerca dessa família, segundo o mesmo professor, muitas teorias se desenvolveram: a teoria da irrelevância jurídica, em que não seriam atribuídos efeitos jurídicos à convivência; a da plena equiparação, em que a relevância jurídica seria totalmente idêntica a do casamento, respeitando-se, assim, a affectio das pessoas que deliberadamente resolveram viver fora do casamento; da aplicação analógica, em que se postula a importação de somente alguns conceitos e soluções jurídicas; e a da regulamentação exclusivamente remetida à autonomia privada, neste caso, considerando a deliberada intenção de conviver sem as formalidades do casamento, entende-se que toda exigência de tutela feita por um dos conviventes somente encontraria resposta se os mesmos tivessem previamente, através de negócios jurídicos, disciplinado tal exigência.[31]

Percebe-se que no Brasil a regulamentação jurídica da união estável atende ao conteúdo de várias dessas teorias apresentadas, pois em alguns casos tem-se uma aplicação analógica com a situação estabelecida para os cônjuges, ao mesmo tempo em que existentes lacunas a serem preenchidas pelo intérprete e também matérias em que é plena a manifestação da vontade humana, como no pacto para o tratamento de questões patrimoniais.

Dessa forma, tem-se que, de forma bastante diferente do que ocorre com o casamento, as questões pertinentes às relações patrimoniais e também existenciais na união estável não se encontram plenamente reguladas pelo legislador, impondo-se a solução do caso concreto, mas não necessariamente, como já mencionado, com respostas já existentes para o casamento, já que afiguram-se como situações cuja estrutura é bastante diferente.

  • 4.1 Extensão do art. 1647, CC, aos conviventes, por analogia à situação dos cônjuges

                        O art. 1647 do CC disciplina a realização de alguns negócios jurídicos de cunho patrimonial para aqueles que vivem sob o regime de casados. Assim, tendo em vista principalmente o resguardo da meação, exige-se o consentimento do outro cônjuge para a realização dos atos discriminados pelo dispositivo, salvo para aqueles que resolveram casar-se sob o regime da separação, ressalva muito pertinente, aliás, pois nesses casos, não há comunicação de bens. Atualmente ainda existe discussão a respeito da extensão dessa exigência para aqueles que resolveram viver em união estável, porquanto a regulação desse tipo de entidade familiar seja escassa e na realidade prática sejam muitos os casos de realização de negócios por um dos companheiros sem a ciência do outro.

                        Entendem alguns, como Francisco Cahali, que a união estável não constitui uma nova forma de casamento, de maneira que, a cláusula `no que couber`, do art. 1725, serviria justamente para afastar a necessidade de outorga de consentimento do outro parceiro nos casos de alienação de bens por um dos conviventes.[32] Dessa maneira, a melhor forma de agir para o companheiro daquele que realizou o negócio seria o pedido de indenização caso venha a provar que sofrera algum tipo de prejuízo, em sua meação, com a realização do negócio.

             Já Marilene Silveira Guimarães defende a invalidação do negócio com base na analogia entre a união estável e o casamento.[33] Enquanto isso, Rodrigo Toscano defende a necessidade de outorga, mas ressalta a importância do papel do terceiro e de sua boa-fé. A invalidação do negócio seria a consequência jurídica mais adequada, uma vez provada a inexistência da outorga, aliada ao fato de que o terceiro com quem se contratou sabia ou tinha como saber a respeito da existência da união estável.[34]

O primeiro posicionamento afigura-se como o mais plausível, na medida em que protege os interesses do terceiro com quem se contratou ao mesmo tempo em que cria meios para a defesa do companheiro prejudicado com a realização do negócio.

A exigibilidade do consentimento expresso do companheiro, da mesma forma como ocorre com o cônjuge, desvirtua a natureza da convivência confundindo-a com o casamento. Esse instituto, conforme já afirmado, cria o estado de casado, para o qual são determinadas certas exigências legais, tais como aquela descrita no art. 1647. Para a união estável não há esse tipo de imposição, sendo descabido ao intérprete estendê-la.

Na doutrina, Gustavo Tepedino entende que

     A aplicação à união estável, por empréstimo do regime de comunhão parcial, como determina o Código Civil, não quer significar, contudo, que as formações familiares extraconjugais se submetem a regime de bens propriamente dito. A natureza do regime de bens associa-se ao ato jurídico formal de constituição da família, justificando-se a amplitude de seu espectro de incidência na vida patrimonial dos cônjuges em razão da publicidade derivada do registro do ato matrimonial no cartório competente, em favor da segurança de terceiros. Daqui decorre que a união estável invoca a disciplina da comunhão parcial no que concerne exclusivamente à divisão dos aquestos, não já no que tange aos demais aspectos do regime patrimonial atinentes, por exemplo, à outorga conjugal para a alienação de bens (art. 1647, I, Código Civil) ou para a celebração de contrato de fiança (art. 1647, III).[35]


 

Diante da inexistência de registro da união livre, o terceiro não possui qualquer meio para a verificação do estado do indivíduo com quem se contrata. Dessa maneira, deve-se afastar também a terceira vertente, que pugna pela proteção dos interesses do terceiro de boa-fé, eis que não caberia a este invadir a intimidade das pessoas com quem se está a contratar para descobrir a situação pessoal afetiva de cada um, além do que forçaria o julgador a imiscuir-se nessa possibilidade de conhecimento, definindo se havia ou não boa-fé no caso concreto, o que, certamente, seria bastante inseguro por sua subjetividade.

                        O Superior Tribunal de Justiça já entendeu ser plenamente válida a constituição de garantia sem o consentimento do companheiro, no caso em que o devedor omitiu do banco credor a existência da união estável, ainda que isso viesse a resultar em prejuízo para a meação da embargante, no caso, a convivente. Assim, foram julgados improcedentes os embargos de terceiros, cabendo à convivente ingressar com ação em face de seu parceiro, ou seja, a matéria deveria ser resolvida interna corporis. Um dos argumentos para a não invalidação do ato de oferecimento de garantia sem o consentimento foi o de que a união estável, embora possua repercussão jurídica, é um fato da vida, não havendo exigência de que seja registrada para que exista.[36]

5 A autonomia privada e o conteúdo dos pactos antenupciais e contratos de convivência

Conforme visto anteriormente, há liberdade para o casal, seja ele formado pelo matrimônio ou pela união estável, criar regras para a organização de seus bens durante a convivência. Para tanto, tem-se o pacto antenupcial e o contrato ou pacto de convivência. Desde o Código de 1916, tendo sido acompanhado pelo legislador atual, o pacto realizado pelos nubentes afigura-se bastante formal, devendo ser, conforme art. 1653, realizado por meio de escritura pública, sob pena de nulidade. Já para o pacto de convivência não se estipulou um tipo específico de solenidade, ressaltando-se tão somente a necessidade de que seja feito por escrito, podendo o mesmo ser realizado antes ou no curso da união estável.[37] Diferentemente do que ocorre no casamento, o contrato de convivência, como retromencionado, é mutável, independentemente das formalidades previstas para a mudança de regime de bens.

Tendo em vista as diferenças entre os institutos, entende-se que não se deve utilizar o termo “regime de bens” para a união estável justamente para não haver equiparação com a situação patrimonial decorrente do casamento[38]. Tanto é assim que o próprio art. 1725 utiliza a cláusula “no que couber” para a aplicação da comunhão dos bens adquiridos durante a união. Como visto anteriormente, Francisco Cahali insere em tal cláusula a desnecessidade da outorga do convivente para os atos de alienação[39], enquanto Guilherme Calmon Nogueira da Gama confere significado estrito ao termo, defendendo que a comunhão deve operar-se exclusivamente sobre os aqüestos adquiridos de forma onerosa durante a união, afastando a comunhão dos bens previstos no art. 1659 e também no art. 1660, II, III e IV.[40]

Tradicionalmente pensa-se no pacto antenupcial ou em qualquer outro acordo realizado por aqueles que estão interessados em ter uma vida em comum, como um documento que serve estritamente para atender às questões patrimoniais. Assim é que, para Pontes de Miranda, sobre o casamento, só poderia o pacto referir-se aos bens, sendo que qualquer convenção sobre os deveres conjugais seria indecorosa e injurídica, tendo-se como não escrita a cláusula que viesse a interferir em tais aspectos da vida em comum, bem como sobre os direitos paternos.[41]

Afirma expressamente o art. 1655, do CC, ser “nula a convenção ou cláusula dela que contravenha disposição absoluta de lei.” Com base neste dispositivo, costuma a doutrina interpretar o conteúdo desses ajustes, afastando a idéia de que interesses de cunho existencial, tais como aqueles referentes ao modo de vida e de convivência entre as pessoas, possam ser previamente estipulados pelas partes. Persiste, ainda majoritariamente, entendimento antes esposado por Carvalho Santos, para quem tudo o que diz respeito à organização da família não pode ficar à mercê da vontade das partes, pois interessa à sociedade e, por isso, não poderiam os cônjuges alterar o que está estipulado quanto aos direitos conjugais.[42]

                      Esse passa a ser, portanto, o grande questionamento acerca do conteúdo dos pactos: poderiam ser tratadas questões de cunho pessoal, tanto no que diz respeito aos cônjuges, como também quanto aos filhos ? Ou seja, caberia a ampliação da autonomia privada para o fim de afastar os deveres determinados pela lei ?

Para o pacto de convivência, entende Francisco Cahali que o seu conteúdo não pode contrariar a lei, a moral e os bons costumes, sendo, porém, cabível a fixação de cláusula de indenização por rompimento da relação, seja imotivado ou culposo. Seria, ainda, inadmissível a regulação sobre os efeitos pessoais, pois essas disposições ou seriam inúteis, eis que já previstas no ordenamento, ou, ineficazes, pois não se permitiria às partes dispensar o cumprimento de determinadas obrigações pessoais.[43]

Acompanhando o entendimento, Mathias Coltro defende que no contrato de convivência seria válida a cláusula de indenização por rompimento, culposo ou não, sendo incabível a renúncia aos alimentos; não seria também aceitável abdicar previamente do dever de lealdade entre os cônjuges.[44] Neste último sentido, encontra-se também entendimento de Rolf Madaleno.[45] Maria Berenice Dias repudia a inserção de cláusulas que retirem o poder familiar dos pais, ou venham a alterar a ordem da sucessão hereditária, considerando ainda como não escritas as estipulações que impliquem renúncia aos alimentos ou ao direito de usufruto sobre os bens dos filhos. Caberia, contudo, a definição de questões domésticas, tais como quem tem o dever de ir ao supermercado, a proibição de fumar dentro do quarto, etc.[46]

É clara a intervenção do Estado através da criação de deveres para aqueles que decidem conviver, seja através de casamento ou união estável. Essa tutela vai no sentido de garantir a subsistência de ambos, num ambiente de convivência saudável, baseado no respeito, bem como garantindo-se a existência e a exclusividade de relacionamento íntimo, ao determinar a fidelidade e a lealdade. Para os filhos, estipulou-se o dever de guarda, sustento e educação, sendo, sem dúvida, impossível afastar qualquer um desses deveres, eis que indisponíveis pela necessidade de proteção dos filhos menores, cuja base é, inclusive, constitucional.

Entre os cônjuges e companheiros, tem-se, então, três deveres que merecem atenção: assistência, respeito e fidelidade/lealdade.

A assistência material conduz ao questionamento sobre os alimentos e a possibilidade de os mesmos serem dispensados ou renunciados. Sobre esse assunto, afigura-se melhor entender ser incabível, no pacto antenupcial ou contrato de convivência, a livre disposição sobre os alimentos, eis que inexistente, no momento, qualquer previsibilidade sobre eventual necessidade posterior dos mesmos. Não se pode renunciar a algo cuja existência e extensão ainda não se concretizaram. Assim, poderia a parte interessada, posteriormente, diante da cessação da convivência, postular o pagamento dos mesmos, provando a sua situação de necessidade, porquanto sua fundamentação encontre-se, atualmente, mais amparada no princípio da solidariedade que na situação de convivência.

                        Sobre os deveres de fidelidade/lealdade, vida em comum no domicílio conjugal e respeito, tem-se que, em se tratando o pacto antenupcial, inquestionavelmente, de acordo pertinente a assuntos de conteúdo patrimonial, não caberia uma regulamentação individualizada acerca do exercício desses deveres em sede do mesmo pacto, afastando-se a juridicidade de cláusulas que digam respeito à renúncia ao dever de fidelidade/lealdade, bem como a descrição de regras que venham a organizar o cumprimento do débito conjugal ou listar as condutas que poderiam ser consideradas como infração ao dever de respeito. Isso porque essas matérias dizem respeito à esfera de intimidade de cada um, cabendo aos próprios cônjuges ou companheiros a valoração dos atos praticados. A conduta de regular, através de acordo, o modo de condução da vida privada nada mais é que publicizar a vida íntima, permitindo ao outro, cujos interesses foram desrespeitados, a possibilidade de argüir a convenção em seu favor, exigindo o seu cumprimento. Sabe-se que, atualmente, tem-se defendido a exclusão da análise da culpa em sede de ações de separação, eis que constitui invasão do Estado na vida privada dos indivíduos[47]. Assim, se se tem vista a exclusão dessa análise em sede das denominadas separações culposas, porque permitir às partes a inserção de cláusulas com esse teor nos pactos antenupciais ou contratos de convivência ? Cabe às partes, em sua intimidade, a resolução de tais questões, afastando-se qualquer interferência estatal, tanto em sede legislativa como também em sede judicial, daí a desnecessidade de uma previsão convencional expressa acerca desses assuntos.

6 As repercussões patrimoniais das uniões simultâneas

A estrutura familiar de nosso país, e de outros, tem sua base na vedação do incesto e da simultaneidade de relacionamentos. Essas diretrizes básicas encontram-se dispostas, para o matrimônio, no art. 1521, I e VI, CC e, para a união estável, no art. 1723, §1º, CC.

Sabe-se que, durante muito tempo, tendo em vista a concepção social e jurídica de que a família se constituía somente através do casamento, convivia-se com um sentimento geral de ilegitimidade e preconceito para com as uniões livres. Chamadas inicialmente de concubinato[48], muito tempo foi necessário para que esse tipo de união fosse tido como legítimo, de forma a gerar direitos e deveres entre os companheiros, eliminando, dessa forma, as discriminações desarrazoadas sofridas por aqueles que se uniam informalmente.

O Código Civil de 2002 rompeu o silêncio e passou a tratar da união estável a partir de seu art. 1723, conferindo àqueles que convivem o título de companheiros. No entanto, resolveu também pronunciar-se acerca do já conhecido concubinato, afastando, de uma vez por todas, as anteriores equiparações.  Dispôs o legislador em seu art. 1727 que “As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato.” Assim, parece afastar da regulamentação codificada aqueles que estabelecem relações paralelas a um casamento ou – nada impede que se acrescente – a uma união estável, eis que existente para este tipo de entidade familiar, conforme o art. 1724, o dever de lealdade e os mesmos impedimentos existentes para o matrimônio (art. 1723, §1º). Assim, uma segunda união, paralela àquela anteriormente constituída, não poderia ser objeto de proteção jurídica enquanto família. Para Rodrigo da Cunha Pereira, a classificação realizada no art. 1727 permite a distinção entre o concubinato não adulterino, que seria a união estável, e o concubinato adulterino, que seria o concubinato propriamente dito. Elucida o mesmo professor que a razão desta classificação não pode ter, de forma alguma, cunho moral, mas tratar-se simplesmente de um princípio organizador da constituição da família, qual seja a monogamia.[49]

Segundo Pietro Perlingieri:

     É oportuno distinguir a união livre, mas estável, entre um homem e uma mulher como única e substitutiva do casamento da outra que se configura como adicional à união matrimonial. A convivência estável e séria entre um homem e uma mulher (fala-se de `família não-fundada no casamento` ou, menos apropriadamente, de `família de fato`), sem que nenhum deles seja ligado por um precedente vínculo matrimonial, é um fenômeno de liberdade que não se põe em contraste com precedentes e oficiais assunções de responsabilidade e que não pode certamente colorir-se com as qualificações de ilegitimidade ou de ilicitude. Ilícita, ao contrário, é a convivência que se estabelece quando um dos conviventes seja ligado por um precedente casamento (quando, entende-se, o casamento não tenha sido dissolvido por divórcio ou não tenha sido declarado nulo).[50]

                       

                        A necessidade de observação do princípio da monogamia, faz com que não se possa considerar como entidade familiar aquela convivência que se estabelece paralelamente a uma união formalizada pelo casamento ou pela união estável. A possível existência de puro e verdadeiro afeto, nesses casos, deve ser desconsiderada por não observar as regras básicas de constituição das relações familiares que envolvem homem e mulher, sob pena de uma mitigação ilimitada que não tardará sobre o questionamento acerca da constituição de família entre parentes muito próximos – as chamadas relações incestuosas.

                        Como argumentos para a proteção das uniões simultâneas a título de instituição familiar, costuma-se afirmar que a exclusão da (o) consorte – da relação adulterina – na divisão dos bens, acarretaria benefícios para aquele que é infiel, e também o fato de que a conduta de constituir famílias ao mesmo tempo poderia ser explicada pela psicologia sob a denominação de poliamorismo, fenômeno que trabalha com a existência de relações afetivas paralelas, em que seus partícipes conhecem e aceitam uns aos outros, em uma relação múltipla e aberta.[51] Com o devido respeito àqueles que defendem esses posicionamentos, deve-se considerá-los descabidos: o primeiro, por ser irrestritamente contra legem, além de não poder ser utilizado nos casos em que os parceiros do concubinato são ambos infiéis para com seus consortes originais; e o segundo porque, o Direito deve manter uma linha de coerência e de uniformidade no tratamento das questões que se desenvolvem entre os seres humanos. Se o Direito tiver que se adequar e proteger todas as condutas que podem ser explicadas pela psicologia, perdida estará a característica de generalidade e abstração das normas jurídicas.

                        No entanto, não se pode deixar de considerar que a existência das uniões paralelas é uma realidade fática que muitas vezes acarreta efeitos de grande conseqüência, como por exemplo, a aquisição conjunta ou o auxílio na aquisição de bens.

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