Por Maria Berenice Dias: advogada (OAB-RS nº 74.024)
Às vezes é necessário mensurar o tempo para visualizar mudanças. Um exemplo é o Projeto de Lei nº 1.151/95, que regulava a união civil entre pessoas do mesmo sexo. Para a época foi considerado uma proposta arrojada. Mesmo com as modificações que levaram à alteração do nome para parceria civil registrada continuou sendo um projeto de vanguarda.
No entanto, passados 13 anos, os avanços e as conquistas foram de tal ordem que não mais se justifica sua aprovação. Seria um retrocesso. A norma constitucional, que reconheceu a união estável como entidade familiar, foi regulamentada. A Lei nº 11.340/06 – a chamada Lei Maria da Penha – ao criar mecanismos para coibir a violência doméstica, trouxe moderno conceito de família: uma relação íntima de afeto, independente da orientação sexual.
Apesar da resistência do legislador, o Superior Tribunal de Justiça já garantiu às uniões de pessoas do mesmo sexo acesso à justiça ao afastar a extinção do processo sob o fundamento da impossibilidade jurídica do pedido. Quer fazendo analogia com a união estável, quer invocando os princípios constitucionais que asseguram o direito à igualdade e o respeito à dignidade, o fato é que os avanços vêm se consolidando.
O Poder Judiciário, ainda que vagarosamente, tem garantido direitos no âmbito do direito das famílias, assistencial e sucessório. Inclusive em sede administrativa é deferido, por exemplo, direito previdenciário por morte, bem como visto de permanência ao parceiro estrangeiro quando comprovada a existência do vínculo afetivo com brasileiro.
Tudo isso, no entanto, não supre o direito à segurança jurídica que só a norma legal confere. Daí a necessidade de buscar a inserção das uniões homoafetivas no sistema jurídico. O silêncio é a forma mais perversa de exclusão, pois impõe constrangedora invisibilidade que afronta um dos mais elementares direitos, que é o direito à cidadania, base de um estado que se quer democrático de direito.
Como não mais cabe continuar tentando a aprovação do projeto da parceria civil registrada com sua redação original, lúcida a solução proposta, por consenso, pelas mais representativas entidades do movimento LBGT. Durante o V Seminário Nacional realizado no dia 27 de novembro de 2008, no Senado Federal, foi apresentado substitutivo que acrescenta um artigo ao Código Civil: “Art. 1.727-A – São aplicáveis os artigos anteriores do presente Título,[1] com exceção do artigo 1.726,[2] às relações entre pessoas do mesmo sexo, garantidas os direitos e deveres decorrentes”.
De modo para lá de sensato é assegurada a aplicação das normas da união estável às uniões homoafetivas. Ao não serem nominadas de união estável, se contorna o aparente óbice constitucional que limita seu reconhecimento à relação entre um homem e uma mulher. De outro lado, para evitar que se diga tratar-se do temido “casamento gay”, é afastada a incidência do dispositivo que autoriza a transformação da união estável em casamento.
Claro que esta não é a proposta que melhor atende ao princípio da igualdade, mas, ao menos, acaba com histórica omissão que gera enorme insegurança. Há outra vantagem. Aproveitar o projeto já existente queima algumas etapas, evitando que se imponha todo um novo calvário para a aprovação de lei que garanta direitos a parcela da população que não mais pode ficar à margem do sistema jurídico.
Com certeza esta proposição vem ao encontro do interesse de todos, e sequer os segmentos mais conservadores têm motivos para repudiá-la. Afinal, só se está buscando assegurar o que a jurisprudência, de há muito, já vem consagrando.
Insistir no silêncio afronta o direito fundamental à felicidade – o mais importante compromisso do Estado para com todos os cidadãos. Assim, é chegada a hora de resgatar o débito que a sociedade tem para com uma parcela da população que só quer ter assegurado o direito de ser feliz.
(*) E.mail: mbdia@terra.com.br
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[1] Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
§ 1o A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente.
§ 2o As causas suspensivas do art. 1.523 não impedirão a caracterização da união estável.
Art. 1.724. As relações pessoais entre os companheiros obedecerão aos deveres de lealdade, respeito e assistência, e de guarda, sustento e educação dos filhos.
Art. 1.725. Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens.
Art. 1.727. As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato.
[1] . Art. 1.726. A união estável poderá converter-se em casamento, mediante pedido dos companheiros ao juiz e assento no Registro Civil.
Fonte: Espaço Vital