Artigo – Uvas verdes. Os filhos no processo de separação – Por Neide Heliodória e Juliana Gomes

“Os pais comeram uvas verdes, e os dentes dos filhos se embotaram?”

(Ezequiel 18:2)


No dia-a-dia das audiências da Central de Conciliação das Varas de Família da Comarca de Contagem, observamos situações que se repetem: mulheres e homens inconformados com o fim do relacionamento e incapazes de reconstruir a vida sem antes destruir a do ex-cônjuge/companheiro.

E para essas pessoas nessa guerra vale tudo, até mesmo usar como armas os próprios filhos.

O método utilizado é inescrupuloso, nefasto: inicia-se uma campanha desmoralizante, caluniosa e difamante do ex-parceiro, manipulando-se a criança para que passe a acreditar nas mentiras engendradas. No “bom” (porque eficiente) e velho estilo hitlerista: “quanto maior a mentira, maior é a chance de ela ser acreditada”.

Frases como “ele não quer nem saber do filho dele”; “ela nos abandonou para viver com um drogado”; “larguei o pai dele porque é um bêbado e me batia”; “a família dele não presta, não quero a minha filha misturada com aquela gente”; “a atual mulher dele é uma vagabunda e maltrata meu filho quando ele dorme lá”, etc. são ouvidas diuturnamente nas audiências e também pelos filhos, e não há, num primeiro momento, como ter certeza se esses fatos ocorrem ou ocorreram na verdade.

Assim, criam na criança falsas memórias de agressões físicas e verbais, até mesmo de abusos sexuais que nunca existiram. Sem contar as chantagens emocionais impostas aos filhos (“quando você fica com seu pai até esquece que eu existo”) ou ao próprio ex-companheiro (“se você não ficar comigo, vou fugir com nosso filho e você não o verá nunca mais”); e a privação do contato com o genitor(a) e seus familiares.

Um jogo patológico e leviano que gera conseqüências dramáticas: afastamento do pai/mãe do convívio com o filho, postura agressiva e de rejeição da criança em relação ao genitor coativamente alienado, ações cíveis e criminais, além de traumas psicológicos que podem vir a ser irrecuperáveis.

O filho, e até mesmo o genitor que o manipula, passa a não conseguir discernir o que é realidade e o que é fantasia. E tal situação pode gerar dúvidas difíceis de dirimir, mesmo para juízes, psicólogos e assistentes sociais habituados a lidar com o Direito de Família.

Como alerta a Desembargadora Maria Berenice Dias: “Diante da dificuldade de identificação da existência ou não dos episódios denunciados, mister que o juiz tome cautelas redobradas. Deve buscar identificar a presença de outros sintomas que permitam reconhecer que está frente à síndrome da alienação parental e que a denúncia do abuso foi levada a efeito por espírito de vingança, como meio de acabar com o relacionamento do filho com o genitor. Para isso, é indispensável não só a participação de psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais, com seus laudos, estudos e testes, mas também que o juiz se capacite para poder distinguir o sentimento de ódio exacerbado que leva ao desejo de vingança a ponto de programar o filho para reproduzir falsas denúncias com o só intuito de afastá-lo do genitor” (Grifo nosso).

Uma das soluções propostas pela doutrina, e que já está a caminho, seria a instituição da guarda compartilhada como primeira opção, pois, na maioria dos casos, aquele que detém a guarda única, exclusiva ou unilateral é que usa do maior tempo de contato com o filho para manipulá-lo.

Compartilhando-se a guarda, seria mais difícil que o afastamento se desse e anular-se-ia o excesso de poder que o guardião exclusivo acredita deter, a ponto de restringir ou até mesmo proibir as visitas e a participação do outro genitor na vida da criança.

É preciso lembrar, como adiante faremos com mais acuidade, que a síndrome da alienação parental se trata de uma patologia psíquica e que, portanto, merece ser tratada como tal, sem, contudo, eximir o agente da conduta dolosa de arcar com as conseqüências de seus atos, inclusive penalmente, se o caso.

É de extrema relevância que pais e mães que percebam essa “prática” busquem auxílio jurídico, de preferência especializado, e psicológico o mais rapidamente possível, visando sua contenção e de seus efeitos. Como em qualquer doença, o diagnóstico precoce pode ser a única chance de evitar o mal maior.

O Direito perpassa pela busca da “verdade dos fatos” para ser exercido.

No que tange à Psicanálise, esse objetivo já nasce frustrado, pois, a verdade é de outra ordem: a do inconsciente. Portanto, em ações de família, onde é possível e interessante acontecer uma articulação entre as duas disciplinas, o papel da Psicanálise é escutar as informações que estão nas entrelinhas, palavras que quase ocultam essa “verdade”.

À guisa de tratar dessa oitiva mais atenta, há que se falar em inconsciente. Devemos lembrar que “onde a palavra erra, é ali que ela confessa”, ou seja, estamos todos sujeitos a cometer atos falhos e quando isso acontece o inconsciente faz sua aparição, geralmente dizendo de uma verdade constrangedora.

Em uma audiência de tentativa de conciliação, diante de uma disputa de guarda de um menor, um pai disse: “Quero a minha filha com pais”. Esse pai até quis dizer “PAZ”, mas o inconsciente o fez falar “pais”. Pontuamos, então, sobre o desejo dele que dizia da preservação da criança, que deveria ser cuidada pelos dois genitores. A partir daí, surgiu a possibilidade da guarda compartilhada, apontada pela fala deste pai.

Quando se trata, por exemplo, a Síndrome da Alienação Parental, o que importa é trabalhar uma questão calcada na fantasia deste outro que dissimula os fatos para confundir a criança envolvida em tal trama.

O poder do guardião está impregnado, neste caso, de enganos, pois, se a criança é tratada como um “falo” – um objeto de uso a favor da vitória ou derrota do outro genitor – o perigo à espreita aponta para um comprometimento emocional, principalmente dessa criança. Infelizmente, o guardião que usa de tal artifício parece esquecer deste fato no qual o Direito se desdobra: o melhor interesse da criança.

O jogo perverso e perigoso estabelecido entre os ex-consortes coloca em risco a saúde emocional de seus filhos, “usados” para pagar uma conta de ressentimentos que ficou entre o casal, em que uma das partes ainda não elaborou a perda da condição de marido ou mulher. Há que se trabalhar com o cônjuge que se julga “perdedor” suas próprias questões relativas ao “fracasso” da relação, para que não haja uma contaminação dos papéis que devem ser preservados: de pais, que deveriam prover os filhos de conforto, inclusive emocional ou psicológico.

Mister salientar também um conceito importante na Psicanálise: “Retificação Subjetiva”, que é a responsabilização de cada pessoa em seu sofrimento, ou seja, o término de uma relação envolve duas pessoas, não há que se falar em culpa.

Podemos lembrar também do conceito psicanalítico que trata da “compulsão à repetição”. Longe de uma vigília que deve partir de cada um, todos corremos o risco de repetirmos padrões de nossos pais, avós, parentes, enfim.

Será que os filhos devem ser arrastados para a desilusão de uma relação (de consortes) que termina? Como ficará a expectativa de construção de relações de afeto dessas crianças ou adolescentes com seus consortes no futuro? Impregnada de falsas impressões? Contaminadas por um pai ou uma mãe desimplicados de sua solidão?

Todos nós somos faltosos, estamos sempre em busca de algo que não temos ainda, e isso é essencial, pois, é o que nos faz desejar outras coisas e o desejo é o que nos dá um traço dinâmico. Ainda assim, nossa solidão é inexorável, no sentido da sensação de desamparo que todos experimentamos, ainda que estejamos bem. Nosso “furo”, nossa falta aparece e é assim que deve ser, para sonharmos com outras coisas na medida das nossas conquistas.

E diante dessa angústia existencial, deveria nos restar a fraternidade. Deveríamos caminhar “solitários e solidários” apesar da separação.

Vale lembrar que é salutar para a criança não enxergar os pais como plenos ou todo-pais. É saudável para os filhos ver que os pais têm outros interesses, que eles não são plenamente pais, que são sujeitos desejantes e faltosos também.

Filhos precisam de “raízes” e de “asas”. A estrutura emocional de uma criança deve ser bem cuidada e ao mesmo tempo, esta deve ter o direito de tecer suas próprias impressões sobre o par parental, que deve ficar neste lugar. O que finda é a relação conjugal do casal. A relação enquanto “pais”, essa é para sempre.

Desta forma, os enganos ou o desencontro amoroso dos pais não poderá macular o olhar da criança, pois sua necessidade passa por ver e ser vista na condição de filho(a), que é completamente diferente da condição dos adultos que experimentaram um fracasso amoroso.

Tempo de concluir: os filhos poderão, assim, saborear uvas doces e deverão levar esse traço de memória, esse sabor para suas próprias relações de afeto.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CORREIO BRAZILIENSE. Em família-Amor que exclui mães e pais atingidos pela Síndrome da alienação parental fazem de tudo para afastar os filhos dos ex-companheiros. Disponível em <http://www.apase.org.br/940000-alienação.htm>

DARNALL, Douglas. Uma definição mais abrangente de alienação parental. Disponível em <http://www.apase.org.br/940000-alienação.htm>

DIAS, Maria Berenice. Alienação Parental. Disponível em <http://mariaberenicedias.com.br/site/frames.php?idioma=pt>.

DIAS, Maria Berenice. Síndrome da alienação parental, o que é isto? . Disponível em <http://mariaberenicedias.com.br/site/frames.php?idioma=pt>.

LISBOA, Maria Helena Alcântara. Alienação parental – relato de um caso. Disponível em <http://www.apase.org.br/940000-alienação.htm>

ROUDINESCO, Elisabeth. Dicionário de Psicanálise – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

SOUZA, Euclydes de. Alienação parental, perigo eminente. Disponível em http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=27.

 

Neide Heliodória Pires da Silva: Psicanalista e Supervisora da Central de Conciliação das Varas de Família da Comarca de Contagem

Juliana Gomes de Carvalho: Advogada e coordenadora da Central de Conciliação das Varas de Família da Comarca de Contagem – MG

 

Fonte: Site Jus Navigandi