Autorização judicial exclui sobrenome paterno

A farmacêutica gaúcha C.M.S.T. ganhou o direito de retirar o sobrenome do pai. Ela alegou ter passado “anos de forte angústia e desconforto moral por carregar consigo um nome que não significava absolutamente nada”. O processo tramitou na 7ª Câmara Cível do TJRS.

A ação de alteração de registro civil postulava a exclusão do patronímico paterno, tendo em vista que os genitores da autora não convivem desde 1975, e desde então o pai dela nunca mais a procurou, tornando-se um total desconhecido.

A sentença de primeiro grau, na comarca de Cachoeira do Sul, fora de improcedência do pedido.

No recurso de apelação, a farmacêutica sustentou já haver provado, desde a inicial, através de extensa prova documental, que “é conhecida e identificada no seu meio social apenas com o sobrenome materno” e, que não haveria risco de lesão a terceiros de boa-fé. Além disso, o pai da autora vive na mesma cidade, e ambos nunca conviveram. Ele alega ter sido abandonada afetiva e materialmente.

O recurso também sustentou que “o registro civil deve realmente espelhar a dinâmica da vida, e não a situação estática posta no momento em que houve o seu lançamento”.

A 7ª Câmara utilizou argumentos com base na situação excepcional prevista no artigo 58 da Lei de Registros Públicos, que autoriza a alteração do sobrenome. O relator Luiz Felipe Brasil Santos afirmou que “não havendo risco de lesão a terceiros de boa-fé, não há razão plausível para obstar a supressão pleiteada, uma vez que o princípio da imutabilidade vem sendo relativizado, em consonância com a nova ordem jurídico-constitucional que alçou o nome a direito da personalidade, afeto à dignidade da pessoa humana”. A decisão autoriza a supressão do sobrenome iniciado pela letra S.

O advogado Lauro Rocha Júnior atuou em nome da farmacêutica. A ação não tramitou em segredo de justiça. (Proc. nº 70011921293).

Acórdão

Situação excepcional na retirada do patronímico paterno

Registro civil. supressão do patronímico paterno. Situação excepcional amparada no art. 58 da Lei dos registros públicos.

Uma vez que o patronímico paterno representa constrangimento para a apelante, pela rememoração da rejeição e do abandono afetivo e, considerando que a exclusão não interfere na sua identificação no meio social, onde é conhecida pelo sobrenome materno, na linha adotada pela jurisprudência do STJ, é de ser reconhecida, na hipótese dos autos, a situação excepcional prevista no art. 58 da LRP, que autoriza a alteração do sobrenome.

DERAM PROVIMENTO. UNÂNIME.

Apelação Cível nº 70011921293

Sétima Câmara Cível – Comarca de Cachoeira do Sul

C.M.S.T., apelante

Ministério Público, apelado.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos.

Acordam os Magistrados integrantes da Sétima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em dar provimento ao apelo.
Custas na forma da lei.

Participaram do julgamento, além do signatário (Presidente), os eminentes Senhores Des. Ricardo Raupp Ruschel e Dra. Walda Maria Melo Pierro.

Porto Alegre, 05 de outubro de 2005.

DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS,
Relator.

RELATÓRIO

Des. Luiz Felipe Brasil Santos (RELATOR) – Trata-se de recurso de apelação interposto por C. M.S.T., irresignada com sentença que julgou improcedente a sua pretensão de supressão do patronímico paterno.

Suscita preliminar de nulidade do processo por cerceamento de defesa, uma vez que não lhe foi permitida a produção de provas. Quanto ao mérito sustenta que;

(1) a jurisprudência tem se firmado no sentido de que devem ser apreciadas as razões íntimas e psicológicas do portador do nome, abrindo a possibilidade de uma interpretação mais liberal diante da regra da imutabilidade;

(2) carrega o sobrenome do pai sem que este nada signifique de bom em sua vida, marcada pela total ausência e abandono paterno;

(3) o sobrenome do pai só lhe traz desconforto e abalo emocional;

(4) o registro covil deve espelhar a dinâmica da vida e não a situação estática do momento do lançamento;

(5) o STJ já admite a relativização da regra da imutabilidade;

(6) demonstrou nos autos que é conhecida no meio social apenas com o sobrenome materno;

(7) não se trata de mero capricho ou burla à lei, mas sim de eliminar a causa de forte angústia e desconforto moral. Pede provimento.

O Ministério Público opina pelo conhecimento, afastamento da preliminar de nulidade e não-provimento do recurso.

É o relatório.

VOTOS

Des. Luiz Felipe Brasil Santos (RELATOR) – A questão da supressão do patronímico paterno por razão de foro íntimo, como no caso dos autos, não demanda maior dilação probatória, além daquela que acompanha a inicial, pendendo apenas de apreciação sob o prisma do Direito. Assim, não verifico o cerceamento de defesa apontado, razão pela qual rejeito a preliminar suscitada.

Quanto ao mérito, tem razão a apelante.

O abandono e a ausência paterna nos mais importantes momentos de sua vida são razões juridicamente relevantes, a ensejar a supressão judicial do patronímico paterno e não podem ser desconsideradas pela simples aplicação do princípio da imutabilidade. A querela envolvendo o nome da pessoa, quando invocadas razões íntimas e dolorosas de rejeição e abandono afetivo pelo pai, requer cotejo mais amplo do que a mera subsunção às normas registrais.

No caso dos autos, a apelante provou, já na inicial, que é conhecida e identificada no seu meio social apenas com o sobrenome materno. Não havendo risco de lesão a terceiros de boa-fé (vide fls. 42/48), não há razão plausível para obstar a supressão pleiteada, uma vez que o princípio da imutabilidade vem sendo relativizado, em consonância com a nova ordem jurídico-constitucional que alçou o nome a direito da personalidade, afeto à dignidade da pessoa humana.

Em situação análoga manifestou-se a Quarta Turma do Colendo STJ, em processo da relatoria do Em. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, pela relativização da imutabilidade do nome, como se infere do corpo do voto condutor (RESP 66.643-SP), proferido no ano de 1997:

“A Lei de Registros Públicos, ao tratar da disciplina relativa ao nome civil, dispõe, no art. 57, que pode haver alteração do nome desde que ocorra motivo bastante para tanto e se faça pela via judicial. A propósito, Walter Ceneviva afirma que a ´lei limitou a mutabilidade de modo não absoluto´ (Lei de Registros
Públicos Comentada, 9ª ed., Saraiva, n. 150, p. 110).”

Dessa forma, não fosse a mitigação do ordenamento positivo, condescendente com a mudança pela adoção, pelo casamento e pela legitimação posterior ao nascimento, a melhor doutrina tem-se adaptado às situações concretas de cada caso, sempre fiel à dinâmica do Direito e da própria vida, ´arte de conduzir os homens´ na feliz expressão de Ripert, mais rica que as nossas teorias.

No campo do Direito Processual, há muito já se superou a idéia do rito pelo rito, da forma pela forma, estando voltado o seu estudo para a instrumentalidade, para os escopos também políticos (na acepção pura do termo) e sociais, com vistas à realização efetiva da Justiça e do bem comum. O Direito Material, por sua vez, caminha no mesmo trilho, principalmente pela abolição da interpretação gramatical da lei, procurando o máximo de integração sistemática e teleológica para substituir o já ultrapassado rigorismo legal. É, em última análise, a aplicação da doutrina da ´lógica do razoável´, admiravelmente desenvolvida por Recasens Siches, que entre nós encontra ressonância na norma do art. 50 da Lei de Introdução.

Conforme anota Benedito Sivério Ribeiro, ´a jurisprudência vem dando a correta interpretação ao art. 58 da LRP: o que se pretende com o nome civil é a real individualização da pessoa perante a família e a sociedade´ (Análise dos casos que implicam alterações no Registro Civil, tese apresentada no 1º Simpósio Nacional de Serviços Notariais e Registrais, Revista ANOREG, 1996. p. 136).

Assim, se o nome é o traço característico da família, razão assiste ao recorrente em pleitear a retirada do patronímico. Seu pai, como afirmado e reconhecido na sentença, nunca foi presente, nunca deu assistência moral ou econômica a ele e à sua mãe”.

O precedente transcrito norteou o entendimento que foi aos poucos se consolidando na jurisprudência daquela corte, tanto que, no ano 2000, a Segunda Seção, por maioria, acompanhou o ministro Ruy Rosado Aguiar em voto versando sobre a matéria, finalizando com a seguinte conclusão (RESP 220059):

“Devo registrar, finalmente, que são dois os valores em colisão: de um lado, o interesse público de imutabilidade do nome pelo qual a pessoa se relaciona na vida civil; de outro, o direito da pessoa de portar o nome que não a exponha a constrangimentos e corresponda à sua realidade familiar. Para atender a este, que me parece prevalente, a doutrina e a jurisprudência têm liberalizado a interpretação do princípio da imutabilidade, já fragilizado pela própria lei, a fim de permitir, mesmo depois do prazo de um ano subseqüente à maioridade, a alteração posterior do nome, desde que daí não decorra prejuízo grave ao interesse público, que o princípio da imutabilidade preserva. A situação dos autos evidencia a necessidade de ser aplicada essa orientação mais compreensiva da realidade e dos valores humanos em causa”.

Mais recentemente, em junho de 2003, o STJ confirmou o entendimento nos autos do RESP 401.138, em decisão colegiada da Terceira Turma, assim ementada:

DIREITO CIVIL. ALTERAÇÃO DO ASSENTAMENTO DE NASCIMENTO NO REGISTRO CIVIL. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO AFASTADA. PRODUÇÃO DE PROVA. DEFERIMENTO.

Em que pese a divergência doutrinária e jurisprudencial, o princípio da imutabilidade do nome de família não é absoluto,admitindo-se, excepcionalmente, desde que presentes a justa motivação e a prévia intervenção do Ministério Público, a alteração do patronímico, mediante sentença judicial.

No caso dos autos, atendidos os requisitos do artigo 57 c/c o parágrafo 1º do artigo 109 da Lei nº 6.015/73, deve ser autorizada a produção de prova requerida pela autora, quanto aos fatos que embasam o seu pedido inicial.

Recurso provido.

Diante de tais circunstâncias, dou provimento ao apelo para autorizar a supressão do patronímico paterno SILVEIRA do nome da apelante, em todos os documentos civis (nascimento, casamento, nascimento da filha).

Des. Ricardo Raupp Ruschel (REVISOR) – De acordo.

Dra. Walda Maria Melo Pierro – De acordo.

Julgador de 1º Grau: ANGELO FURIAN PONTES