Embora o Brasil tenha “alguma proteção aos dados pessoais” de seus cidadãos, é urgente que o país aprove uma lei que defina princípios claros na matéria e proteja contra o mau uso de informações pessoais por empresas. É o que defende o ministro Ricardo Villas-Bôas Cueva, do Superior Tribunal de Justiça.
Para o ministro, o que o Brasil oferece hoje sobre proteção de dados, tanto pela jurisprudência quanto pela doutrina, é insuficiente, e por isso o Congresso precisa agir.
“É preciso que tenhamos urgência na aprovação da lei para que tenhamos alguma proteção de dados”, disse, em palestra nesta terça-feira (15/8), em São Paulo, “sob pena de serem nossos perfis pessoais vendidos como mercadorias, colocando em risco todos os cidadãos”.
Cueva se referiu especificamente a dois projetos de lei já em discussão no Congresso. O primeiro é o PL 5.276/2016, que tramita na Câmara dos Deputados e teve origem em anteprojeto escrito pelo Ministério da Justiça ainda no governo Dilma depois de consulta pública. A proposta é criar um marco civil dos dados pessoais, com a definição de conceitos do que sejam dados pessoais, o que são dados anônimos, o que pode ser vendido, o que pode ser coletado etc.
O outro projeto está no Senado e é de autoria do senador Aloysio Nunes (PSDB-SP). Além de procurar definir conceitos ligados à matéria, o senador também sugere a criação de uma autoridade central de proteção de dados pessoais. “É imperioso que o Congresso se disponha a apreciar com presteza quaisquer dos dois projetos de lei”, disse o ministro.
Hoje, segundo Cueva, os direitos de proteção de dados no Brasil se restringem à legislação consumerista. O Código de Defesa do Consumidor, por exemplo, tem regras específicas sobre bancos e cadastros de restrição a crédito. E há a Lei 12.414/2011, que trata do “cadastro positivo” de consumidores e disciplina a criação de um banco de dados com informações sobre adimplemento de dívidas.
“Já é algum estímulo importante, mas mesmo nos Estados Unidos, onde há leis de proteção ao consumidor nessa área — ainda que não tão desenvolvidas quanto na Europa —, há dificuldades por falta de leis específicas sobre proteção de dados”, comenta o ministro.
Por isso, ele defende que o Congresso Nacional vá além das leis de proteção ao consumidor e crie defesas contra o mau uso e a comercialização de informações pessoais. “É preciso garantir o uso de dados anônimos para fins estatísticos e até para questões de saúde pública, por exemplo”, diz. “Mas também é preciso proteger a privacidade das pessoas.”
A preocupação de Villas-Bôas Cueva é com a popularização das tecnologias de coleta de dados pessoais e a criação do mercado em cima dessas informações. Empresas como Google e Facebook têm como núcleo de seu modelo de negócio a venda de publicidade dirigida ao público-alvo de acordo com informações estatísticas de acesso à internet, localização, hábitos de navegação, hábitos de consumo etc.
O ministro chamou a atenção para a recente decisão da FTC, a agência reguladora do comércio dos Estados Unidos, de permitir que operadoras de cartão de crédito comercializem informações de seus clientes. Ou a transferência da regulação das operadoras de telefonia celular da FCC, que trata de comunicações, para a FTC, que trata de comércio e prestação de serviços. Com isso, abriu-se a porta para a venda de dados cadastrais de usuários de internet móvel e celulares.
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Cueva falou no Congresso Internacional de Direito, que acontece até sexta-feira (18/8) na Faculdade de Direito da USP, para comemorar os 190 anos da fundação da instituição.
A palestra do ministro foi no Salão Nobre e fez parte do capítulo de Direito Civil do evento — também falaram o ministro Luís Felipe Salomão, do STJ, o professor Rui Manuel de Figueiredo Marcos, diretor da Faculdade de Direito de Coimbra, em Portugal, e o professor Francisco Amaral, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O evento foi coordenado pelos professores Silmara Chinellato e José Rogério Cruz e Tucci.
A exposição de Cueva foi sobre o direito à privacidade e à proteção de dados pessoais. Segundo ele, o direito à proteção de dados é uma forma de proteção da privacidade e da vida íntima. Apareceu pela primeira vez na doutrina, explicou o ministro, em um artigo de 1890 dos advogados Samuel Warren e Louis Brandeis, publicado na edição de dezembro da Harvard Law Review, a revista de Direito dos estudantes da Universidade Harvard.
Warren e Brandeis definiram, naquele texto, que a privacidade é a “fundação da liberdade individual”. O contexto era o do início da massificação dos meios de comunicação e de crescentes violações ao direito de imagem, disse Cueva. Ali eles delinearam o right to be let alone, ou o direito de ser deixado em paz. Ou ainda, como eles disseram, "o direito à vida se tornou o direito de curtir a vida". "O direito à liberdade garante o exercício de extensos privilégios civis, e o termo 'propriedade' cresceu para compreender toda forma de posse — tangível ou intangível."
A partir dos anos 1960, as discussões passaram a se consolidar e, em 1973, o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha reconheceu o “direito à autodeterminação informacional”. Ou seja, cada indivíduo é que deve decidir como e quais informações pessoais são divulgadas. Três anos depois, Portugal foi o primeiro país a constitucionalizar o direito à privacidade.
No Brasil, explica Cueva, a proteção de dados nasceu como direito de defesa perante o Estado, mas hoje tem “alcance muito maior, com o rapidíssimo desenvolvimento da informática e os algoritmos cada vez mais poderosos”. E mesmo que a informática e a tecnologia não sejam mais novidade, o país ainda engatinha no tema, analisa o ministro.
Frustrações
Segundo o ministro, a Constituição Federal de 1988 trouxe “a esperança de que pudéssemos avançar”, mas ela acabou frustrada pelo Supremo Tribunal Federal. Ele citou duas decisões históricas da corte, a que definiu os contornos e possibilidades do Habeas Data e a que discutiu o sigilo das comunicações, prevista no inciso XII do artigo 5º da Constituição Federal.
Na palestra desta terça, Cueva disse que o precedente do Supremo sobre Habeas Data, “um precedente importantíssimo do ministro Celso de Mello”, foi muito restrito. Num recurso em HD, a corte definiu que os Habeas Data se prestam a três funções: acesso a registros públicos, retificação desses registros e complementação deles.
Em artigo publicado pela revista Cidadania e Justiça, o ministro apontou que a doutrina vem criticando tanto o Habeas Data quanto a jurisprudência e a legislação sobre ele. O ministro Luís Roberto Barroso, por exemplo, em artigo de 1998, disse que o recurso tem “valia essencialmente simbólica”, e o advogado Dalmo Dallari escreveu, em 1997, que é “uma ação voltada para o passado”, já que “não se destina a assegurar, genericamente, o direito à informação ou o direito à intimidade”.
O precedente do Supremo sobre sigilo das comunicações, para Cueva, dificulta “o reconhecimento do direito fundamental à proteção de dados”. É que, em 2007, o Plenário, seguindo voto do ministro Sepúlveda Pertence, entendeu que a Constituição protege a comunicação de dados, e não os dados em si. “A edição de lei nacional de proteção dos dados pessoais é essencial para suprir as omissões hoje existentes e garantir um nível adequado de proteção”, escreveu o ministro.
Fonte: Conjur