‘Cartórios’ e ‘juízes’ eclesiásticos realizam casamentos sem validade legal

Rio – Não há como negar que a proposta é atraente. Casamento rápido — em uma semana, se assim desejarem os noivos — , barato e com validade dupla: no civil e religioso. Por trás da oferta, espalhada em placas e painéis de ruas das zonas Norte e Oeste do Rio, está uma organização de falsos juízes de paz — que incluíram no título o nome ‘eclesiástico’.


Por valores que podem chegar, em alguns casos, a quase metade do preço cobrado pelos cartórios regulamentados pelo Tribunal de Justiça do Rio (TJ-RJ), eles realizam cerimônias e emitem certidões de casamento sem validade legal. Esse tipo de negócio tem estruturas próprias, como o Cartório Eclesiástico, e movimenta um mercado de serviços que inclui conciliação, união estável e até divórcio.


Casais desavisados vêm tendo sérios prejuízos. “Não sei nem como dizer para minha mulher que este momento tão sonhado pode ter sido um engano”, contou o vendedor João, de 37 anos. “Pra mim, estamos casados no civil e religioso. Paguei R$ 412 à juíza de paz eclesiástica. Fui nela porque era mais em conta do que no cartório e porque um conhecido também se casou lá”, explica.


O eletricista Carlos, 45 anos, teve mais sorte. Um colega convidado para ser testemunha estranhou o preço e resolveu investigar. “Ele foi lá e perguntou detalhes. Depois, se informou num cartório oficial e descobriu que a certidão não serviria para nada”.


Uma destas ‘juízas’ de paz eclesiásticas atende em sua casa, em Madureira, e diz ser pastora. Cobra R$ 465 para celebrar o casamento religioso e civil, se os noivos tiverem juntos a renda de até R$ 1,5 mil. Se o os dois ganharem mais que isso, o valor é de R$ 600. No cartório, o custo é de cerca de R$ 791. A promessa? Casar uma semana depois, se os documentos necessários — certidão de nascimento, carteira de identidade, CPF, comprovante de residência — forem entregues no dia seguinte à primeira visita em sua casa.


Curso de 'juíza'


Quando questionada se emite certidão de casamento válida, a mulher não titubeia: “É claro, minha filha. Eu sou juíza!” . Explica que o documento será emitido pelo cartório eclesiástico, que funciona na mesma rua: “É o primeiro Cartório Eclesiástico no mundo”, costuma se gabar. E conta aos interessados que fez o curso de ‘juíza’ em Deodoro e desembolsou R$ 3 mil para isso.


O Tribunal de Justiça não reconhece o juiz de paz eclesiástico. De acordo com a Corregedoria do TJ-RJ, este tipo de juiz atua somente como ministro religioso. Segundo o órgão, ainda, essas pessoas nem deveriam usar a expressão “juiz de paz”. “O documento (emitido por esses juízes eclesiásticos) não tem efeito civil. Portanto, o termo de ‘casamento religioso’ (emitido por eles) não altera o estado civil de ninguém”, explicou a nota da Corregedoria. Perante a lei, os noivos continuam, então, solteiros.


Documento não é aceito por órgãos públicos


Os problemas enfrentados por quem é enganado pelo casamento civil falso vão muito além da frustração e do prejuízo. O documento emitido não tem validade para ser usado em nenhum órgão público.


Uma decisão administrativa do Tribunal de Justiça do Rio, de julho de 2013, resultou na expedição de ofícios ao Detran, Tribunal Regional Eleitoral, Ministério do Trabalho e Emprego e à Receita Federal “recomendando que se abstenham de praticar atos de identificação civil tendo por base documentos expedidos por ‘Cartório Eclesiástico’ ou ‘Cartório Eclesiástico Cerimonial’.


A Polícia Federal também informou que somente aceita registros oriundos de cartórios públicos regulamentados e fiscalizados pelos Tribunais de Justiça dos Estados. “Registros de entidades particulares não geram efeitos civis”. Há dez anos atuando como juíza de paz, Lilah Wildhagen contou como soube de vários casos do golpe. Os relatos chegam pelo seu blog e, segundo ela, esse grupo não atua apenas no Rio. “Uma noiva de São Paulo me escreveu. As pessoas acham que casaram, mas a verdade é que não mudaram o estado civil”, contou.


Cartórios eclesiásticos questionados


Presidente da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen ), Priscilla Milhomem diz que os cartórios eclesiásticos não pertencem à entidade. “Esses casamentos não têm valor legal nenhum, caso não sejam registrados no cartório. Se o juiz de paz eclesiástico estiver ligado a qualquer entidade religiosa, constituída legalmente, ele vai celebrar como religioso, apenas. A questão é que algumas pessoas estão achando que ao se casar com o juiz eclesiástico estão substituindo a habilitação no cartório”, alertou ela.


O processo de habilitação no cartório oficial, que deve ser feito pelos noivos, demora pelo menos 30 dias. Depois deste prazo, não havendo nenhum impedimento legal, as proclamas do casamento são publicadas no Diário Oficial da Justiça e também afixadas num local de fácil acesso no cartório.


Se, em 15 dias, ninguém se manifestar contrariamente, é expedido um documento que se chama Certidão de Habilitação, com validade de 90 dias. A figura do juiz de paz, ao contrário do juiz de paz eclesiástico, tem previsão constitucional e a sua nomeação decorre de ato do Presidente do Tribunal de Justiça, por isso ele está subordinado à fiscaliza e à disciplina do Poder Judiciário.


Quanto custa casar?


– No cartório


Processo completo com certidão: R$ 529,10 (Valor do registro: R$ 52)


Reconhecimento de firma: R$ 5,70 cada. Será necessário fazer isso para os noivos e as duas testemunhas: R$22,80


Abertura de firma: R$ 29,28 cada. Será necessário fazer isso para os noivos e as duas testemunhas: R$ 117,12


Autenticação dos documentos dos noivos — Carteira de Identidade, CPF, comprovante de residência, Certidão de Nascimento ou Casamento: R$ 5,85 cada. Total: 46,80.


Autenticação dos documentos das testemunhas— identidade, CPF, comprovante de residência, certidão de nascimento ou casamento: R$ 5,85 cada. Total: R$ 23,40. (Se a firma tiver mais de cinco anos aberta terá que abrir outra)


Total: R$ 791,22


– Na Defensoria


Quem não pode arcar com as custas para habilitação para casamento poderá procurar os Núcleos de Primeiro Atendimento, da Defensoria Pública. É possível obter o ofício de requisição de gratuidade que é endereçado ao Cartório de Registro Civil da residência do requerente.


Os interessados deverão levar (original e duas cópias): certidão de nascimento ou casamento — se divorciado ou separado judicialmente deverá apresentar a certidão de casamento com a averbação, carteira de Identidade ou profissional, CPF, comprovante de residência e de renda, para ser verificado o direito à gratuidade de Justiça.


Se o casal já vive em união estável, deve levar também a certidão de nascimento dos filhos e documetnação dos bens em comuns, se houver.


Os endereços dos Núcleos estão no portal da Defensoria Pública (www.portaldpge.rj.gov.br). Esta informação poderá, também, ser obtida através da Central de Relacionamento com o Cidadão, pelo telefone 129 ou e-mail: crc@dpge.rj.gov.br

 

Fonte: O Dia