B. A segunda letra do alfabeto é o nome do filho de 1 ano de Roberto, 38, e Luísa Martini, 35, sócios de um grupo de agências de publicidade.
O nome abreviado foi escolhido para que a criança tenha o mínimo de influência e carga social possível, afirmam eles. O mesmo vale para gênero: os pais se esforçam para não dar roupas ou brinquedos socialmente ligados a um sexo para sua prole.
A família também cunhou um novo sobrenome para a criança, que não será divulgado para preservar a privacidade do bebê. A seguir, trechos do depoimento deles à Folha.
ROBERTO, O PAI
Meu filho, B, nasceu em novembro de 2016. Antes disso, a gente já vinha sentindo mudanças nas relações que a gente estava construindo em casa. Estávamos numa tentativa de amenizar a carga do que a sociedade acabou imprimindo na gente. Não só preconceitos, mas todas as predefinições do que é certo e do que é errado, do que é branco, do que é preto.
Primeiro questionar e depois entender que nenhuma verdade resiste ao tempo. Não houve discussão sobre como íamos criá-lo. Foi tudo muito natural. A chegada do B foi esse momento. Como a gente recebe uma vida nova chegando? As verdades em que a gente acreditava estão caindo, como a gente pode passar isso para ele?
A gente foi por vários caminhos quando pensamos no nome. Mas, quando veio esse, a gente pensou “Bah, chegamos”. Não sabemos se esse nome vai ser complementado quando B for adulto. A gente não pensa nisso. É um nome que ele pode seguir o caminho que quiser seguir, pode mudar, pode complementar.
A mesma coisa com gênero. Nossa concepção de gênero vai se modificar. Na cidade de Nova York são mais de 30 gêneros aceitos. Não queríamos limitar. Esse nome foi a coisa mais simples e adaptável para o caminho que ele quiser seguir.
No cartório, teve um pouco de processo de convencimento. A pessoa que estava registrando teve que perguntar para um superior se podia registrar aquele nome. A gente também criou um sobrenome novo, mas ele carrega um dos nossos sobrenomes porque foi uma coisa que eles insistiram. Se fosse um nome totalmente novo seria mais interessante.
Isso não quer dizer que ele não faça parte da família. É óbvio que ele faz parte da nossa família. Nós somos os guardiões do B. A gente queria entregar para ele a coisa mais simples. Não foi um processo superdesenhado, arquitetado. É uma intenção genuína, mas que ainda está acontecendo.
Fiz uma pesquisa e descobri que tem outras pessoas batizadas só com uma letra. Depois, vieram me contar também que existem outros bebês nomeados com uma letra ultimamente. Se a gente está fazendo, é porque está acontecendo.
A gente tenta não pensar que roupa vai comprar, se é de menino ou de menina. Compra o que faz sentido, seja um vestido ou uma calça mais larga, uma camiseta maior. A gente tenta trazer cores mais primárias. É difícil achar roupa de bebê mais básico, mas temos conseguido bem.
O B não é muito de brinquedo. Ele gosta de coisas que giram. Tem um livro que tem rodas, e ele adora. Mas não é algo que a gente intencionou, aconteceu. Quando ele ganha presente, tende a ganhar coisas associadas com o sexo masculino, porque é o gênero de nascença. E tudo bem.
Quando a gente foi decorar o quarto dele, chamei um artista que é superlegal. Ele desenhou várias coisas, dentre elas um skatinho e um capacetinho. Por um segundo achei estranho, mas depois me dei conta de que skate não é coisa de menino, isso era um condicionamento antigo. Mudou.
Nosso trabalho é tentar minimizar uma carga que é simbólica, e que vem pesada. A gente sabe que não tem como anular a sociedade. Mas nomear é um pouco colocar uma intenção. Queríamos que ele não carregasse um caminho pré-determinado.
A gente está supertranquilo quanto ao contato com outros pais. As relações que a gente tem ainda são bem fechadas à família.
Tanto os meus pais quanto os pais da minha mulher são bem abertos. A festinha de um ano dele teve como tema um coelhinho que ele gosta pra caramba e tem no quarto dele. Nunca chegou a esse ponto de ter que conversar sobre isso com alguém.
Não tenho medo de crítica. Meu único receio é preparar ele para o mundo. Eu acho que isso acontece com qualquer pai, já tinha uma filha antes. A gente está vivendo um período novo da existência desse mundo. A gente é um bicho que se adapta, e assim sobrevive. E o mundo não é fácil também. Se a gente não levar com leveza esses desafios, é muito difícil.
LUÍSA, A MÃE
A principal coisa é que a gente queria um nome que não tivesse carga ou direcionamento, de o que ele deveria ser. Não só de gênero, mas também de significado. No Brasil, quase 90% dos nomes são bíblicos e a gente não tinha conexão com isso.
Eu acredito que o nome carrega uma carga energética. A gente queria um nome que fosse um espaço em branco, para nosso filho poder explorar sua personalidade. E que seu nome fosse fácil para qualquer cultura. Esse nome traz uma liberdade para ele conseguir andar por diversas culturas, lugares e línguas.
A gente decidiu quando eu estava com seis meses de gravidez. Não veio nenhuma ideia forte como essa. Daí ele nasceu e a gente começou a chamar ele de B, para ver se pegava, e ele respondeu.
A gente começou a chamar e ficou. A gente contou para a família, que no início achou estranho. Ninguém nunca viu. O atendente do cartório disse que em 30 anos foi a primeira vez que ele viu alguém com um nome de letra única.
Não é um nome estranho, é só um nome que é uma letra. A família ficou preocupada, achando que ele poderia ser piada, sofrer bullying no futuro. Mas o bullying pode ser feito com qualquer coisa.
E a gente realmente acredita que essas novas gerações não vão achar estranho. Sempre que a gente conta para outras crianças, elas não têm problema, só chamam ele de B. Teve gente que falou: “Que legal, quero fazer igual”.
Esses padrões culturais de comportamento foram determinados muito tempo atrás. A sociedade carrega sem questionamento. O questionamento começou uns anos atrás, o que eu acho muito bom. A humanidade sofre muito por causa desses padrões.
Nossa intenção não é criar um filho sem gênero, é criar um filho sem estereótipo de gênero. Eu tento me afastar do que é um código de masculino e feminino padrão e colocar coisas mais neutras.
Ele usa uma roupa que tanto uma menina quanto um menino poderiam usar. Sem um choque. É importante tentar sair do estereótipo do gênero. Como mãe, é uma responsabilidade da criação emocional dele, porque as pessoas sofrem muito se não se adequam a esses padrões. Ele vai crescer mais tranquilo, com menos atrito com a sociedade para coisas que não são tão importantes assim.
Eu sei que ele vai entrar na escola, entrar em outros meios sociais, e isso vai ser uma questão. Estou procurando escolas em que eu possa conversar sobre isso, e que tenham educadores que já tenham isso na sua pauta.
Já estive em alguns lugares que é super “menino aqui”‘, “menina ali”. Já estive em alguns lugares que estão querendo mudar, fazer um evento em que meninas possam se fantasiar de pirata e meninos possam se fantasiar de bruxa.
Essa geração Z, que nasceu depois de 1995, lida muito melhor com a mudança, com a ausência de definição. É uma sabedoria absurda, uma conexão com natureza e com energia. Meu olho brilha, eu quase choro quando vejo essas coisas acontecendo.
Não recrimino quem dá presente ligado a estereótipos masculinos. Eu só falo “não faz isso” quando alguém fala algo sobre o comportamento dele ligado a padrões antigos masculinos. Se alguém fala “não chora, porque menino não chora”, eu digo “menino chora sim”.
Fonte: Jornal Folha de São Paulo