Após uma linda cerimônia de casamento, um casal de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, descobriu que, perante a Justiça, o matrimônio não valia de nada.
O documento assinado com um suposto juiz de paz tinha até brasão da República, mas era falso, e os dois seguem solteiros oficialmente. A polícia investiga o caso.
O RJ2 foi atrás dos responsáveis pela certidão, um “juiz de paz eclesiástico”, recomendado por uma igreja evangélica, e descobriu que o golpe é velho.
O casal descobriu a mentira por acaso.
“Minha cunhada, a irmã dela foi a primeira a casar, antes de mim. Ela ganhou neném, aí foi registrar a menina. Chegando lá, o cartório falou que a certidão era falsa. Aí fui, liguei para ele: ‘pastor, estou sabendo que a certidão de casamento era falsa. A minha também é?’ Aí, ele: ‘minha filha, espera um pouco’. Dois dias depois, me ligou e confirmou que a minha era falsa”, contou a noiva, a técnica de enfermagem Paloma Ferreira da Silva.
A certidão parece original, até com o papel timbrado do governo federal. Tem todos os dados, números e até o endereço do Tribunal de Justiça do Rio – que fiscaliza os cartórios.
No final do suposto documento, os dizeres “autoridade eclesiástica juiz de paz”, “casamento religioso com efeito civil” – e a assinatura do responsável: presidente Ismael de Souza Martins.
Ismael tem relação com a igreja evangélica que o casal frequenta em Duque de Caxias. Foram os pastores da congregação que o indicaram para o casamento.
O caso foi registrado na delegacia de Caxias (59ª DP). A polícia ouviu, na tarde desta segunda-feira (11), os dois pastores da igreja de Caxias que recomendaram o juiz de paz falso e espera ouvir outros envolvidos no golpe.
A defesa dos pastores negou que eles tenham relação com as atividades ilícitas atribuídas a Ismael Marins, que está colaborando com as autoridades e que também são vítimas do falso juiz de paz.
Além da dor de saber que tudo foi uma farsa, vem a preocupação: Paloma conseguiu tirar os documentos com o nome de casada usando a certidão falsa.
“Esses falsos juízes de paz, eles cometem o crime de estelionato, uma vez que eles conseguem obter uma vantagem financeira, induzindo a erro a vítima, causando um prejuízo financeiro.
Mas, é importante também destacar que, além do prejuízo financeiro e essa parte mais apelativa, criminal, de certo modo há também um dano causado no campo emocional, uma vez que as vítimas, elas muitas das vezes se deparam somente com a existência desse falso casamento quando vão comparecer a um órgão público para confecção de algum documento, como a alteração de um registro de identidade para a colocação do sobrenome de casado, e recebe a informação dos representantes desses órgãos públicos de que a certidão não é válida. Em outras palavras, que les não estão efetivamente casados”, explicou o delegado Alamberg Miranda.
Mulher de falso juiz já foi presa por golpes
O RJ2 foi atrás dos responsáveis pelo casamento falso. na certidão, o endereço do chamado “cartório cerimonial” levou a equipe até um prédio na Avenida Brasil em Guadalupe. Ninguém foi encontrado.
Seguindo o CNPJ desse suposto cartório, o RJ2 descobriu uma vila em Oswaldo Cruz e perguntou pelo juiz Ismael
“O Ismael não mora mais aqui não, por quê?”, perguntou uma mulher.
Ela é Myrian Maria de Souza, esposa do “juiz de paz” e uma conhecida da polícia justamente por fazer casamentos falsos.
Myrian foi presa em 2020 por enganar mais de 300 casais ao longo de 7 anos. O esquema era o mesmo: certidões falsas. Na época, a polícia informou que o casal realizava cerca de dez cerimônias por mês e faturavam mais de R$ 6 mil.
Ela nega que as certidões sejam falsas.
“Nós temos provas documentais. Inclusive, ato estatuto, ele tem o certificado estadual emitido em Brasília. Então, está tendo uma confusãozinha, conflitos, de desconhecimento de causa. Porque a lei é nova (…) Como é falso se tem certificado digital aprovado em Brasília, com CNPJ. Então, não posso falar mais. Somento eu digo a vocês, que tem documentação certa, não tem nada de falsidade.”
Para Gustavo Fiscarelli, presidente da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais, “não existe casamento que tenha efeito civil no Brasil que não passe pelo registro em um cartório”.
“Essa é a máxima. De fato, é um golpe comum, infelizmente. Quando ele fala “religioso com efeito civil” é uma espécie de casamento previso na lei de registros públicos que permite ao casal que, depois que faça a homologação, o requerimento de habilitação do casamento junto ao cartório de registro civil, o cartório emite um certificado de habilitação. A partir disso ele pode marcar uma cerimônia com uma autoridade religiosa (…) Aí, é feito um termo de religioso, e esse termo retorna ao cartório para que seja registrado. Esse é o casamento religioso com efeito civil”, explicou Fiscarelli.
Segundo a Justiça, o chamado “juiz de paz” tem que ser nomeado por um conselho de magistrados. E não existe o chamado “juiz eclesiástico” muito menos o ”cartório cerimonial”.
“O juiz de paz, ele só pode ser nomeado pelo conselho da magistratura. Eles usam esse nome público para captar indevidamente o cidadão. Ele não é juiz de paz nem existe esse cargo de juiz eclesiástico. A lei prevê que só juiz de paz pode realizar casamentos. E a lei estadual 8699 diz que é proibido qualquer ente usar o nome cartório como forma de captar clientela”, disse o juiz Marcello Rubioli, da Corregedoria-Geral de Justiça.
O Anderson e a Paloma ainda não sabem quando vão se casar oficialmente, agora de verdade, num cartório. Mas a união saiu fortalecida do baque.
“Nós não sabíamos, então, não estávamos pecando, não estávamos fazendo nada perante a Deus. Quero acordar desse pesadelo, acordar e achar que foi uma mentira. Mas, infelizmente, não tem como. Não só brincou comigo mas com outras vítimas, vai saber que ele não está fazendo outras também”, disse Paloma.
O que dizem os citados
A defesa dos pastores negou que eles tenham relação com as atividades ilícitas atribuídas a Ismael Marins, que está colaborando com as autoridades e que também são vítimas do falso juiz de paz.
O RJ2 não conseguiu contato com Ismael Marins.