O Conselho da cidade de Nova York, nos Estados Unidos, aprovou, em 12 de setembro, lei que permitirá às pessoas que não se identificam com gêneros binários e aos pais de bebês intersexuais optarem pelo “X” ao invés de Masculino e Feminino na certidão de nascimento, ou seja, não classificar o sexo no momento do registro. Os transgêneros também poderão, a partir da nova legislação, alterar o gênero em sua certidão de nascimento, sem a necessidade de um laudo médico. A norma entrará em vigor em 1º de janeiro de 2019 e é considerada inovadora. Outros estados americanos, como Oregon, Montana e Califórnia permitem a mudança de gênero na certidão de nascimento, sem a autorização médica, mas não o sinal “X”.
“Essa identificação somente o sujeito pode fazer de si. O médico poderá definir seu sexo, mas não seu gênero. O sexo depende de características biológicas, morfológicas e genéticas. O gênero não necessariamente corresponderá ao sexo. E como sentimento, o gênero não é perceptível por outro que não seja o próprio ser que sente”, reflete a registradora pública, Márcia Fidelis, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).
Ela explica que o desencontro entre o sexo e gênero é amplamente estudado e a conclusão majoritária da ciência é que se pode pertencer a determinado sexo e “sentir-se” de outro. “Situações como essas, relativamente comuns, requerem maior atenção jurídica em nível mundial, principalmente diante dos números alarmantes de doenças mentais e de suicídio ligados a pessoas nessas circunstâncias, e que sofrem rejeição social”, afirma Márcia Fidelis.
Segundo ela, a definição de identidade de gênero que melhor se coaduna com a dignidade humana, é a que permite a sua autodeterminação. “Enquanto atributo humano independente da sexualidade e do sexo, o gênero é uma vivência interna, um sentimento pessoal que poderá definir suas vestimentas, seu modo de falar, de andar e de se relacionar socialmente, características essas que não necessariamente irão corresponder ao seu sexo biológico”, garante.
Patologização de intersexos traz consequências graves
Para Márcia Fidelis, a recorrente patologização da condição intersexo, considerada no Brasil uma “urgência médica”, traz consequências graves. “O estigma ligado a questões que envolvem sexo, sexualidade e gênero está entre as principais causas de segregação social, na maioria das vezes ocasionando violência e outros crimes ligados direta ou indiretamente à discriminação e ao preconceito. Essas situações estão presentes na vida da quase totalidade das pessoas cujo sexo não esteja de fato enquadrado como sendo masculino ou feminino. Contudo, a definição médica do sexo da pessoa pode ter critérios de resultados morosos porque o estudo não se limita a elementos de caráter morfológico de fácil constatação, como a presença de genitália que se enquadre como de um ou de outro sexo. Outras características, de ordem cromossômica e endócrina, devem ser analisadas antes de se certificar um indivíduo como sendo de um dos dois sexos”, diz.
Essa demora, segundo ela, além de angustiante para a família, “posterga sobremaneira o exercício da cidadania por esse indivíduo cujo sexo está para ser definido”. Isso porque, como no Brasil, a definição do sexo é um dos atributos do registro dessa pessoa como cidadã em vários países do mundo. E esse registro é condicionante à sua inscrição em cadastros sociais e de identificação pessoal, sem os quais não é possível acesso a serviços básicos como os de saúde e de educação.
“No Brasil existem exemplos de crianças intersexo, que faleceram com tenra idade, cujos registros foram postergados e tratamentos de saúde adiados porque não havia a definição medicamente segura de seu sexo. Priva-se o ser humano de existir socialmente em função de uma questão que está muito ligada a conceitos morais. Constar no registro de nascimento de uma criança que ela, a priori, não tem definição de sexo, não deveria ser uma discussão jurídica já que se trata de uma realidade. Independentemente das consequências de qualquer ordem, a realidade é que o sexo não pode ser definido como de costume, pela simples análise superficial da genitália do recém-nascido. E são inegáveis os prejuízos que podem sofrer uma criança por não ser registrada imediatamente ao nascer”, reflete.
“Em tempos em que conceitos anteriormente sedimentados se desenvolvem e sofrem alterações em ritmo acelerado com o único escopo de se adequarem a realidade atual, as medidas adotadas pela cidade de Nova York devem ser consideradas como verdadeiro avanço”, afirma o advogado Paulo Malta Lins e Silva, diretor de Relações Internacionais do IBDFAM.
Para o advogado, a interpretação do “mundo e sociedade” através de conceitos binários torna-se cada vez mais obsoleta, devendo ser afastada para que ideais e concepções genéricas se adéquem à realidade atual dos fatos. “A identidade de gênero deve ser interpretada como verdadeiro exemplo de ‘Direito Personalíssimo’ e, portanto, como se depreende da fácil interpretação da própria classificação do direito, deve ser decidido, definido e exercido individualmente por aquele que verdadeiramente o detém”, diz.
Vários países adotam medidas semelhantes
Paulo Lins afirma que outros países já adotaram medidas semelhantes sobre o tema. “Na Alemanha, foi aprovado projeto de lei para legalização do ‘terceiro gênero’ nas certidões de nascimento, fazendo com que o país tenha se tornado precursor europeu no reconhecimento de intersexuais. Além disso, no país, desde 2013, preencher as opções sobre sexo na certidão de nascimento já não é obrigatório, sendo possível deixar a lacuna vazia até a própria pessoa escolher entre o sexo masculino ou feminino ou, até mesmo, continuar sem definir o gênero”, diz.
No Chile, conforme explica o diretor de Relações Internacionais do IBDFAM, ainda não há a ocorrência do “gênero X”, isto é, não prevê o sinal “X” ao invés de “masculino” e “feminino”, mas assim como já acontece nos estados americanos da Califórnia, Oregon e Montana, é permitida a mudança de gênero na certidão de nascimento sem autorização médica.
Na Austrália, a Suprema Corte decidiu, em 2014, que, além dos sexos feminino e masculino, um outro, neutro, poderia ser registrado pelas autoridades. Na Nova Zelândia também é possível que na certidão de nascimento o gênero de uma pessoa seja preenchido como "indeterminado/ intersexual/ inespecífico".
“No continente asiático, o Nepal, desde 2007, decidiu oficializar um terceiro gênero e desde 2015 permite que os nepaleses indiquem um terceiro sexo em seus documentos de identidade, no Paquistão é possível indicar um "terceiro sexo” desde 2009, assim como em Bangladesh, onde o governo bengali aprovou, em 2013, lei que permitiu a inclusão do termo ‘hijra’ em passaporte e outros documentos (o termo é usado no sul da Ásia para designar pessoas trans – ou intersexuais) e na Índia que, em 2009, tornou possível a sinalização da alternativa ‘outro’ além de ‘feminino’ e ‘masculino’ em cédulas de votação. Além disso, no país indiano, desde 2014 há oficialmente um terceiro gênero, tendo o país se tornado o quarto no Sul da Ásia a adotar tal medida, depois de Paquistão, Nepal e Bangladesh”, enumera Paulo Lins e Silva.
Como funciona no Brasil
Em relação à alteração de prenome e sexo no registro civil, recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) permitiu aos brasileiros direitos que equivalem aos que entrarão em vigor em Nova York, em 2019. A decisão do STF na ADI 4275 deu interpretação conforme a Constituição Federal ao artigo 58 da Lei nº 6.015/73, permitindo aos transgêneros essas alterações diretamente perante o respectivo registrador civil, ou seja, por requerimento na esfera administrativa.
Quanto ao intersexo, conforme a registradora pública Márcia Fidelis, não há lei expressa no Brasil que imponha a menção exclusivamente binária do sexo no registro civil de nascimento do cidadão. “Pelo contrário, a Declaração de Nascido Vivo – DNV, formulário emitido e controlado pelo Ministério da Saúde, preenchido pela unidade de saúde que assistiu ao parto, tem campo referente à definição de sexo que apresenta três opções: ‘masculino’, ‘feminino’ e ‘ignorado’. Uma dessas alternativas é marcada pelo médico que constatou o sexo da criança”.
No entanto, ela explica que “sexo ignorado” é diferente do “terceiro sexo” alemão.
Ela expõe: “No país europeu é possível designar o sexo como ‘diverso’, ou seja, nem é masculino e nem é feminino. O sexo é sabidamente diverso. O que se definiu em Nova York possibilita não classificar o sexo no momento do registro como masculino ou feminino. Ou seja, essa definição poderá ocorrer posteriormente, inclusive com a participação do próprio interessado. Ou, como também ocorre em números significativos, poderá nem ocorrer. Muitos indivíduos passam a vida sem saber se seu sexo real é o feminino ou masculino. O registrador civil mencionará no registro de nascimento o sexo indicado pelo médico. Não há valoração técnica a respeito do sexo em esfera registral. O registrador civil não tem, aliás, formação profissional que o permita fazer esse juízo de valor. Ou seja, se o médico indicar a impossibilidade de identificação do sexo da criança, marcando a opção ‘ignorado’, não há empecilho legal para que o registrador indique no registro essa impossibilidade, constando da mesma forma, que o sexo do registrado é ignorado”.
O Manual Técnico da DNV, também elaborado pelo Ministério da Saúde para uniformizar o procedimento e orientar os responsáveis pelo preenchimento do formulário sobre a conduta correta para fazê-lo, indica que a opção “ignorado” do campo relativo ao sexo, deverá ser marcada sempre que o médico não puder identificar de imediato o sexo do nascido.
Mas a prática, segundo afirma Márcia Fidelis, demonstra situação diversa. “A conduta médica diverge da orientação do Manual Técnico, aguardando os resultados das análises definidoras do sexo da criança para que seja expedida a Declaração de Nascido Vivo que, em tese, deveria fazer a identificação da parturiente, indicar características da criança que nasceu, bem como as circunstâncias em que o parto ocorreu. Essa análise tem que ser imediata. Não há motivos para postergação. Ser impossível identificar o sexo é o mesmo que ignorar o sexo. Não há motivos para que no Brasil essa realidade deixe de ser praticada, o que trará mais dignidade a todos os envolvidos”, garante.
Fonte: Ibdfam