Clipping – Brasileirinhos sem certidão de nascimento – Globo Repórter

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A dona de casa Raimunda da Cruz dos Santos esperava por um menino, mas nem sempre o médico acerta. É rotina de quase todo dia. No hospital de Tonantins, no interior do Amazonas, são quase 30 partos por mês. É o 16º filho vivo de uma mulher que tem apenas 32 anos de idade. Fora os outros dois que morreram.

"Eu estava com 15 anos quando o primeiro nasceu. De lá para cá, foi praticamente um por ano. Moro em Jacariperpétuo. De barco, acho que são umas seis horas até Tonantins", conta Raimunda.

Tempo e distância têm sempre dimensões amazônicas no Alto Solimões. Talvez, por isso, o IBGE encontre, na região, um dos maiores índices de crianças sem certidão de nascimento do Brasil.

"Só sete filhos são registrados. Oito ainda não são", diz Raimunda.

Para chegar a qualquer comunidade fora da sede do município, é preciso usar o barco. O rio é a estrada do caboclo. Nem sempre dá para chegar até o hospital. Metade dos partos é feita em casa mesmo. Mas a culpa não é só do tempo e da distância.

O agricultor Nelson Neide conta que gastaria cerca de R$ 100 para ir e voltar do cartório para fazer o registro da filha. Isso porque a comunidade de São João Batista é uma das mais próximas da sede do município de Tonantins. Até lá, leva-se uma hora e meia de barco a motor e gasta-se pelo menos R$ 120 de combustível. Muitos não conseguem juntar esse dinheiro nem com um mês de trabalho na roça. Se o estado não for à procura dessas pessoas, dificilmente elas sairão do isolamento ao qual estão condenadas.

A pedido do Globo Repórter, o líder da comunidade foi de casa em casa reunindo o povo sem documento. Em menos de 20 minutos, 30 crianças e adultos sem certidão estavam no palco da pracinha.

"Para estudar, às vezes eles fazem uma coisa escondida. Nós é que somos o documento deles. Eles fazem isso por intermédio de amizade", conta o líder comunitário Antônio Nazário.

Seu Antônio tem 80 anos. É um dos fundadores da comunidade. Durante toda a sua vida, sempre encontrou a mesma dificuldade para registrar a criançada. Com os adultos, é pior ainda. Mesmo quando a Justiça autoriza o registro tardio, o cartório demora.

"Batemos tudo direitinho, pagamos tudo direitinho e disseram que no próximo mês podíamos ir. Fomos lá e nada. Voltamos e até hoje não chegou", conta o líder comunitário.

A escrevente Adazinda Araújo diz que faz o que pode. Ela conta que nascem muito mais crianças do que são registradas. "Eu já fui a essas comunidades, mas não com freqüência, porque isso depende muito de questões políticas", justifica.

Vítima do desinteresse das autoridades, boa parte da população ribeirinha passa toda uma existência sem nenhuma relação formal com o estado brasileiro.

O agricultor Cristóvão Arcanjo é pai de nove filhos. Nem ele nem as crianças foram registrados. "Naquele tempo, meu pai não se interessava. Sei que tenho o direito de tirar o documento, mas somos pobres. Os funcionários do cartório vêm, mas prometem e não tiram", conta.

Enfim, registrada

Será que isso só acontece em lugarejos escondidos em algum braço de rio? Caminho do progresso, as modernas estradas de São Paulo podem levar ao mesmo desencanto, ao mesmo atraso, pertinho da capital.

A agricultora Vandira Cardoso e o marido, Jorge, passaram a vida capinando o solo fértil do estado mais rico do Brasil. Mas nunca ganharam salário. São meeiros, lavradores que dão metade do que colhem para o dono da terra e ficam com a outra metade como pagamento. Em Biritiba-Mirim, a apenas 110 quilômetros de São Paulo, sempre foi assim, desde que Vandira era criança.

"Eu nem tinha brinquedo. Debulhávamos o milho, amarrávamos uma palhinha no sabugo e um paninho. Nosso brinquedo era o bonequinho de milho. Gosto de mexer com a terra. Desde os 12 anos eu trabalho em lavoura", conta dona Vandira.

Mas trabalhar tantos anos assim, sem contra-cheque e sem férias, é exaustivo. Vandira é hipertensa e queria descansar.

"Estou cada vez mais cansada da idade, não agüento trabalhar mais. E até agora não ganhei nada. Se eu pudesse ter aposentadoria, até que juntaria um dinheirinho e compraria uma casinha bem pequeninha", comenta dona Vandira.

Foi só um dia desses, quando sentiu-se mal no trabalho e procurou um posto de saúde, que dona Vandira descobriu: para se aposentar, precisa da certidão de nascimento, que nunca tirou.

"Estou com 68 anos, mas não sei quando vou fazer 69. Não tenho aniversário. Os outros fazem festa, mas eu nunca fiz. Eu não existo! Não tenho nada. Não tenho documento, ninguém sabe de nada", lamenta dona Vandira.

Jorge e Vandira tiveram 18 filhos. Só um nasceu no hospital. Todos os outros partos foram feitos em casa mesmo. O tempo foi passando, e Vandira foi se acostumando a viver sem documentos. Só mesmo quando a doença chegou é que se deu conta da falta que eles fazem. Quando precisa ir ao médico, tem de pedir ajuda a um dos filhos. O pessoal providencia a papelada e assina o que for preciso.

"Todos os meus filhos foram registrados. Pus todos eles na escola para estudar. Dei para eles tudo o que eu não tive. Tinha dias que eu ficava sentada pensando que era uma tristeza, desde pequenininha, ser desse jeito: não ter registro, não saber ler. Eu chorava. Uma vez por semana ficava sentada só chorando mesmo. Que vida! Eu acho que podemos correr mundo a fora que não vai haver uma pessoa igual a mim, sem registro, sofrida. Tem tanta coisa que eu quero fazer e não posso", desabafa dona Vandira.

Vandira entrou na Justiça para tentar conseguir o registro tardio de nascimento. Não há um só dia em que ela não vá para o trabalho pensando no documento que ainda virá. A pouco mais de cem quilômetros de Biritiba-Mirim, já no litoral do estado de São Paulo, em Ubatuba, um processo semelhante corre há seis anos, provocando uma longa e penosa espera.

A empregada doméstica Ana Paula Almeida Santos conta que nasceu no dia 8 de agosto de 1968. "Eu sei porque eu vi a minha mãe falando", diz. Ana Paula nasceu em algum lugar do interior da Bahia, do qual não se recorda o nome. Mudou-se com a mãe e os dois irmãos para Cruzeiro do Sul, mas não os vê há quase 30 anos. Ainda criança, trabalhou como empregada doméstica em Salvador. Depois, sua casa foi a estrada. Zanzou de cidade em cidade, atravessou quatro estados. Quando, enfim, chegou a Ubatuba, já tinha percorrido dois mil quilômetros. Sempre a pé, ou na carona de um caminhão.

"Não posso viajar de ônibus porque eles exigem documento para comprar a passagem. Essas pessoas que nascem e se criam na roça vivem uma outra vida. Parece que elas vivem em uma redoma. É diferente. É levantar cedo, ir para roça, voltar, fazer comida, comer e ir dormir, para levantar bem cedo e ir trabalhar. É isso. E eu vivi boa parte da vida nessa redoma", conta Ana Paula, que tem 40 anos e está em Ubatuba há dez. Só conseguiu lugar para morar à base de confiança.

"Eu aceitei ela do jeito que ela é. Eu e meu marido confiamos nela, e nós estamos aí até hoje", conta a dona de casa Regina Célia Tavares.

Na casa onde trabalha como empregada doméstica, o patrão fez um contrato de boca.

"É lógico que eu tenho interesse na regularização do resgistro dela, porque eu não posso ficar com ela indefinidamente assim, ilegalmente. Deus olha por nós todos, pode ter certeza", comenta o aposentado José Antonio de Souza Filho.

A cada passo que dá na vida, Ana Paula precisa convencer os outros de que é uma pessoa de bem.

"Quando meu gás acaba, eu chego lá embaixo e compro, porque o seu João e a dona Júlia me conhecem, sabem que eu trabalho, sou uma pessoa direita, gosto de andar certa. Agora, do contrário, não adianta, não consigo abrir crédito em loja nenhuma. Dentro desse quartinho não tem nada que eu comprei", aponta Ana Paula.

Não há nada a fazer, além de esperar. Ana Paula tem de passar por uma detalhada checagem, determinada pela Justiça de Ubatuba.

"Há necessidade que seja feita toda uma investigação minuciosa, sob pena de estado fornecer identidade para alguém que não tenha condições ou tenha alguma mácula em seu passado", explica o advogado Wagner Andriotti, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

Ana Paula precisou brigar bastante para registrar sua única filha. Mas a estudante Paloma Xavier dos Santos agora está estudando, com todos os documentos em dia. As duas acompanham, juntas, cada etapa do processo judicial.

"Acho que essa luta é tão importante para ela quanto para mim, porque ela vai ficar bastante feliz. O dia em que o documento chegar na mão da minha mãe, ela vai sair pulando, feliz da vida. E eu junto com ela", diz Paloma.

Quanto tempo vai levar, ninguém sabe. Mas na casa de Vandira, em Biritiba-Mirim, a novidade já chegou. Uma nova sensação que lhe roubou o sono na noite passada.

"É como se eu tivesse nascido hoje. Estou nervosa, mas feliz", comenta dona Vandira.

A viagem até Paraibuna, onde ela nasceu, dura menos de uma hora.

"Vandira Cardoso, sexo feminino, nascida em domicílio na zona rural, no município de Paraibuna, São Paulo, no dia 15 de outubro de 1939. A registrada é filha de José Cardoso dos Santos e de Benedita Nazário dos Passos", diz um funcionário do cartório.

"Depois de 68 anos…", diz seu Jorge.

"Há tanto tempo eu esperava…", emociona-se dona Vandira. "Agora, eu vou fazer o meu aniversário", planeja.

Luta por um documento

Com trânsito bom, dá menos de uma hora do centro de São Paulo. Mas cruzar o portal do Hospital Geriátrico e de Convalescentes Dom Pedro II, em Jaçanã, na Zona Norte de São Paulo, é como entrar em um outro mundo, onde vive gente sem passado, sem história, sem direitos.

"São pessoas que passaram a vida deanbulando pelas ruas, ou mudando de cidades, e que, por algum motivo, sofreram as conseuquências da violência urbana", a diretora técnica do hospital, Suely Luciano Pires.

E o pior: um em cada dez pacientes do hospital chega sem certidão de nascimento e sem qualquer outro documento capaz de reencontrar a dignidade extraviada.

"Os outros nos xingam de vagabundas, porqie não temos registro e nem carteira de trabalho", conta a paciente Ivani Maria dos Santos.

Pelos corredores do hospital, uma sucessão de histórias incompletas, partidas, onde o começo está descolado do fim e onde as lembranças se perderam no tempo.

"Meu nome é Ivani Maria dos Santos, eu estou muiot velha, mas não lembro a minha idade. Só sei que eu nasci no dia sete de setembro.

"O paciente chega ao nosso hospital com uma história fragmentada, até mesmo por perda de referência. Ele já perdeu algumas referências de família, de trabalho. Até pela própria situação conjuntural do país hoje, ele vem da rua e vai para a rua por vários motivos", diz a assistente social Eliane Pereira da Silva.

Há dois anos, quando chegou ao hospital, doente e sem documentos, Vilobaldo Vieira de Aquino disse que tinha sido registrado no Nordeste. Mas, depois de muito pesquisar, o hospital descobriu que o nome dele só constava na certidão de casamento dos pais. A certidão de nascimento que ele diz ter perdido jamais foi registrada no livro do cartório.

Mas nem todo o desleixo do mundo apaga a vida de uma pessoa. Antigas reminiscências, aos poucos, reaparecem em flashes, refazendo a história de cada um.

"Tanta bobagem que eu fazia, tanta brincadeira boba. Brincava de boneca. Pegava pepininhos e enfiava palitinhos para fazer cavalo. Eu morava na roça, nunca morei na cidade. Esta é a primeira vez", conta dona Ivani.

A vida interiorana está na origem de quase todos eles. Um passado às vezes preservado com impecável precisão.

O paciente Severino Rafael da Silva é preciso: "Tenho 69 anos, oito meses e sete dias. Minha infância começou lá em Cabrobó. Por volta dos 14 anos fui para Caruaru. Dois ano e pouco depois, fui para Recife, onde fiquei até 5 de janeiro de 1974, quando cheguei no posto de saúde".

Seu Severino passou um mau pedaço por causa de bebida. Hoje não bebe mais, mas os problemas de saúde começaram na juventude. Só na primeira vez que ficou em um hospital, ainda no Recife, é que foi batizado e registrado. Mas perdeu o documento e não consegue lembrar nem do cartório.

"Tem que estar em algum lugar", afirma seu Severino.

Encontrar o pedaço que falta no quebra-cabeças da vida é a grande aspiração de todos. É disso que depende o reencontro com o mundo lá fora.

Não é só o passado que está preso nas armadilhas da memória. Sem certidão de nascimento, as portas da máquina do estado também se fecham, e a pessoa não consegue nem se aposentar. Por isso, todos os dias o hospital recomeça a mesma busca de sempre: por um lugar, por um parente, por um fato, qualquer fiapo de lembrança serve para tentar recompor a identidade perdida.

As assistentes sociais são como detetives. Essa investigação minuciosa pode demorar anos. Mas, infelizmente, nem sempre encontra o fio da meada. João não conseguiu dar pista alguma. Foi encontrado na rua. Depois de um derrame, perdeu a fala e a memória. Seu passado é um imenso e silencioso vazio.

"Muitos deles chegam sem ter nome ou chegam com apenas um nome que foi recebido em outro hospital ou outra instituição onde estava internado. Isso não quer dizer que aquele nome é o nome dele. Muitas vezes esse nome, que pode ser um nome falso, é a única informação que nós temos para identificar esse paciente e buscar a cidadania dessa pessoa", diz Eliane Pereira da Silva.

Ainda que não seja o de batismo, João agora tem um nome. A certidão saiu graças a Segunda Vara de Registros de São Paulo. Um João sem sobrenome, de pais ignorados, nascido em lugar não sabido. Mas com direito à aposentadoria como todo cidadão.

"Eu acho que isso deveria partir de outros poderes e da conscientização das pessoas na política, na cultura, na educação. E não o Judiciário cuidando disso. É uma situação que chama atenção no século 21. Nós temos que cuidar disso", ressalta o juiz Marcio Bonilha Filho.

Com o amparo da Justiça, o Hospital Dom Pedro II continua sua busca, sem desprezar nenhuma informação. Às vezes, a mais frágil das pistas vira um indício concreto. No caso do paciente Joaquim Barbosa dos Santos virou mais do que isso.

"Joaquim Barbosa dos Santos, nascido no dia 4 de outubro de 1942, em Lagoa Seca, Seabra, estado da Bahia. Nós já tiramos também a sua identidade", anuncia a assistente social Eliane.

"Não me reconheço mais. Ô, meu Deus", surpreende-se seu Joaquim.

Dia de grande recompensa do hospital: mais uma certidão de nascimento na enfermaria.

Dona Inavi Maria dos Santos também conseguiu ter o documento em mãos. "Eu acho é bom!", comemora dona Ivani.

Golpe de políticos desonestos

O maior problema está onde menos se esperava. Em vez do sertão, é no litoral, mais chuvoso e mais próspero, que o Unicef encontrou o município campeão cearense de crianças sem certidão de nascimento: Camocim, a quase 400 quilômetros de Fortaleza.

Expedita está com 5 anos. Não foi registrada até hoje. O pai é o pescador José Edmar do Nascimento. Se queixa da dura vida no mar. Mas, agora que nasceu mais um filho, vai tentar ir até a sede do município.

"Nasceu outro. Vou fazer os registros todos juntos", diz José Edmar.

No distrito de Guriú, a escolinha da vila de pescadores está cheia de crianças sem certidão.

É o caso de Fátima Gabriela, Francisca Jacinta e Cibele.

"Aceito elas na escola, porque sei o quanto é necessário elas estarem estudando. Eu aceito com os documentos que elas têm: a cópia do cartão de vacina", conta a professora Maria do Socorro Vasconcelos.

Entre as famílias, não há uma percepção clara da importância do registro.

"Tem uns quilômetro daqui até lá. Eu tenho que pagar uma moto ou um carro. De pé, é uma caminhada", revela o pescador Francisco Bernardo de Moura.

De todas as razões para a falta de registro, a mais cruel e a mais inacreditável é a ação de golpistas e políticos desonestos. Eles procuravam povoados do sertão e aldeias de pescadores no litoral do Nordeste para emitir certidões de nascimento falsas e, assim, tirar dinheiro ou então manipular os votos em época de eleição. Golpes aplicados há 15, 20 anos atrás, só estão sendo descobertos agora.

Nos lugarejos mais distantes da sede do município, a chegada de um escrevente era única chance de acesso a um documento oficial.

"Os cartórios vêm sempre em época de eleição, em tempo de campanha. Eles vêm registrar o povo de graça, para tirar o título de eleitor. Com isso, até eu vacilei e fiz o registro dos meus filhos", conta líder comunitária Rita de Cássia Pereira da Silva, de Pedra Branca, no Ceará.

Ninguém desconfiou. A vizinhança toda aderiu. A estudante Rosilene de Cássia Pereira da Silva, que hoje tem 19 anos, tinha 2 quando foi registrada na casa dela mesmo, na comunidade de Bracinho. A família tinha esperança de que os filhos não repetissem a história dos pais.

"Eu estudei, mas foi pouco. Não sei ler, só sei fazer meu nome", diz a lavradora Efigênia Avelino de Souza.

Nem dá para contar quantas horas de trabalho, quantos cestos de palha de carnaúba. Efigênia deu duro. Graças à mãe, Rosilene sempre teve material escolar para estudar. Freqüentou as aulas, completou o ensino fundamental. Mas quando precisou tirar a segunda via da certidão de nascimento, descobriu que o documento era falso. Não pôde renovar a matrícula. Foi proibida de freqüentar a escola. Impedida de fazer o que mais gostaria.

"Participar de um curso, viajar. Eu não me sinto cidadã. Eu me sinto diferente dos outros. Já tenho 19 anos e nunca votei", desabafa Rosilene.

Toda manhã, bem cedinho, os irmãos já estão de uniforme. O lugarejo inteiro toma o caminho da escola, menos ela.

"Agora vou tocar a vida. A esperança é a última que morre. Eu tenho esperança de que um dia ele esteja aqui nas minhas mãos e que eu retorne a minha vida. Um dia eu vou conseguir", afirma Rosilene.

O Conselho Tutelar de Camocim descobriu que o golpe foi tramado há 17 anos atrás por um cartório que nem existe mais, no lugarejo de Passagem, interior do município vizinho de Chaval.

"De todas as pessoas da região, 70% foram registradas no cartório de Passagem. Possivelmente, com certidões falsas. Nós temos tentado, da maneira possível, contornar essa situação. Os registros eram feitos na tentativa de manipular o voto", diz a coordenadora do Conselho Tutelar, Edilene da Silva Mota.

"Não havia registro. Havia certidão, mas não registro. De modo que quando precisavam de uma segunda via, constatava que não existia o registro", diz o promotor de Justiça, Hugo Alves da Costa Filho.

"No caso deste cartório, o responsável já faleceu", revela Edilene da Silva Mota.

"Não tive nenhuma notícia de qualquer processo contra qualquer político", afirma o promotor de Justiça.

De 2006 para cá, o Conselho Tutelar já conseguiu registrar 600 crianças. Mas, como Rosilene, quem tem mais de 18 anos, precisa entrar na fila da Justiça. O Ministério Público pressionou o cartório de Camocim a agilizar a emissão de certidões.

"O cartório levava de cinco a seis meses para expedir uma certidão de nascimento", conta a oficiala substituta Mara Maria Magalhães.

A pressão do promotor funcionou. O cartório agora leva cerca de dez dias para liberar uma certidão de nascimento. Mas solução, mesmo, só quando todo mundo colaborar.

"Já existe um termo assinado pela diretora do hospital, pelo Ministério Público e pela oficiala de registro do Primeiro Ofício para que as crianças saiam da maternidade com o seu registro", adianta o promotor de Justiça.

Não é preciso andar mais do que 130 quilômetros para saber que a meta de Camocim já é realidade em Itarema, o município que mais registra crianças no Ceará. Qualquer moleque sabe onde fica o cartório da cidade.

O motorista Jadson Alves conta que tem um filho registrado no cartório. "Se não regsitrar, eles botam na cola", diz.

O cartório Laura tem o nome da dona. Encontramos a própria, Laura Costa, que tem 72 anos, mas trabalha desde os 23, com a mesma pressa de sempre. Para ela, toda a certidão é urgente.

"Trabalho no cartório desde 1959. Desde então, já fiz muitas certidões de nascimento. Não dá para contar", diz dona Laura.

Todos os dias, a filha mais velha de dona Laura, Mary Costa Roque, cumpre a mesma rotina. Com o livro de registro na mão, espera pela motocicleta que vai levá-la à outra ponta de uma parceria que deu certo. Que melhor lugar para emitir a certidão de nascimento do que o hospital da cidade?

"Meu neném nasceu às 6h. O registro foi rapidinho. O pessoal do cartório veio aqui e resolveu tudo", comemora Maria Raiale de Souza.

"A gente segura aqui no hospital e só libera quando tem a certidão em mãos, com tudo direitinho", conta a diretora do hospital, Maria Ioneide Franco.

"Isso só foi possível porque a cidade inteira pensa da mesma forma: criança sem registro é algo totalmente descabido", ressalta dona Laura.

"As pessoas não registradas não constam na estatística, não são cidadãs. Brasileiro que não tem registro não tem nada, não consta como nascido", finaliza Laura Costa.

Cidadania, ainda que tardia

Em Santa Quitéria, cidadezinha pobre no interior do Maranhão, todo mundo tem registro.

"Não estamos mais atrasados como éramos. Hoje, se precisarmos, até para o céu nós vamos com esse documento na mão. Naqueles tempos, andávamos nos escondendo, não podíamos fazer negócio. Éramos criados como caça do mato, sem saber para onde podíamos nos dirigir", lembra o lavrador Vicente Viana da Silva.

Vicente mostra com orgulho o jornal e a foto da família dele no dia do mutirão liderado pela comarca. O juiz Jorge Moreno até já foi embora da cidade. Mas Santa Quitéria foi o primeiro município do estado a erradicar o chamado sub-registro de nascimento, que é quando a família não tira a certidão quando a criança nasce. Não há um só rincão, nem um único povoado, que não tenha sido visitado pelo Judiciário.

No distrito de Tabatinga, todas as crianças receberam certidão de nascimento em 2005. A lavradora Maria Neide da Conceição mostra os registros da molecada. "São seis filhos, todos registrados", orgulha-se.

Na casa de Raimunda Pereira de Souza, a dona Mundoca, onze pessoas foram registradas, inclusive ela. "Fiquei sem registro até os 50 anos de idade. Antes, não tinha nenhum benefício, só de boca. Estou muito satisfeita", comemora.

Nos vilarejos pobres de Santa Quitéria, o óbvio direito de ter um documento oficial é comemorado como uma conquista espetacular. Um recorte de jornal, com a foto do juiz que comandou o mutirão, agora é quadro de parede em sinal de gratidão.

"No meu entendimento, isso significa cidadania", comenta o presidente da Associação de Moradores de Tabatinga, José de Ribamar dos Santos.

Distância, pobreza, descaso. São muitas as razões. E são muitos os casos em que a reparação só acaba vindo no fim da vida.

"Eu não tinha nada na vida", lembra o aposentado José Alves dos Santos, conhecido como seu Celidônio, que registrou-se aos 70 anos de idade e só então descobriu que ser identificado como cidadão brasileiro é muito mais do que mera formalidade. "Hoje eu tenho uma geladeira de R$ 1,9 mil e duas bicicletas", comemora ele. Tudo graças à sonhada aposentadoria que a certidão permitiu. Dinheirinho certo. Pela primeira vez na vida, o conforto mínimo e a inédita dignidade do orgulho.

"Eu comprei um conjunto de panela para usar no fogão a gás. Custou mais de R$ 100. O fogão, a bicicleta, a panela de pressão, o botijão e as cadeiras custaram R$ 400. Tudo a prestação", conta.

Nos fundos da casinha recentemente mobiliada, Celidônio busca o seu tesouro – escondido, embrulhado, amarrado.

"O negócio aqui é bem seguro mesmo. Está aqui: José Alves dos Santos, nascido em 13 de maio de 1935. Já tenho como provar meus 73 anos", diz.

Econômico e previdente. Prestações já quitadas. Celidônio, ou melhor, o cidadão registrado José Alves dos Santos, faz sua propaganda. "Eu sou sozinho, mas estou conseguindo caçar uma coroa", adianta Celidônio, que agora, com registro, já pode casar.

Direito de existir

Nem o governo sabe quantos brasileiros estão vivendo como se não existissem. O IBGE recebe um relatório anual dos cartórios e compara com o número de nascimentos nos hospitais. No último levantamento, só do ano de 2006, 13% dos recém-nascidos não tinham sido registrados.

A cada ano, portanto, seriam 400 mil novos bebês sem certidão. Ainda assim, é um número bem melhor do que o de oito anos atrás. Em 2000, eram 800 mil recém-nascidos sem certidão. Mas quantos milhões permanecerão sem registro?

O governo federal já começou a identificar as pessoas que não têm certidão de nascimento nos estados da Amazônia e também no Maranhão e no Piauí.

Uma nova mobilização nacional vai ser lançada em novembro. A promessa do Plano Social de Registro Civil e Documentação Básica, lançado no ano passado, é erradicar o sub-registro de nascimento até 2010.

O que nem todos sabem é que é dever do Estado garantir o registro civil de todas as crianças. Até os 12 anos de idade, é um procedimento simples, feito diretamente no cartório e totalmente de graça. Só depois dos 12 anos é que o juiz tem de intervir. É lei. O primeiro ato de respeito que o país deve a uma pessoa. Negado a tantos brasileiros, o direito de existir não é favor nenhum.

 

Fonte: www.globoreporter.globo.com