Clipping – Câmara pode efetivar dono de cartório sem concurso – Jornal Folha de São Paulo

Mudança constitucional beneficia 3,7 mil titulares dos 13.416 estabelecimentos do país.

Constituição de 1988 tornou obrigatório o concurso para definir quem controla os cartórios, mas regra só foi regulamentada em 1994

A Câmara dos Deputados pode votar hoje ou amanhã a proposta que tem o objetivo de efetivar na função, sem concurso público, responsáveis por cartórios. De acordo com a Associação Nacional de Defesa dos Concursos Públicos, a chamada “PEC (Proposta de Emenda à Constituição) dos Cartórios” beneficiará 3,7 mil titulares dos 13.416 cartórios de todo país.

Deputados do PMDB, do PT e do PTB defendem a votação nesta semana. A PEC beneficiará quem atende a dois critérios: é tabelião titular ou substituto nos últimos cinco anos e ocupava funções no cartório entre 1988 e 1994. Isso porque a Constituição Federal de 1988 determinou a realização de concurso público de provas e títulos para comandar os cartórios, mas a regra só foi regulamentada em 1994.

O CNJ (Conselho Nacional de Justiça) se manifestou contra a PEC. O parecer pedindo sua rejeição, assinado pelos conselheiros Antônio Humberto, Joaquim Falcão e Marcelo Nobre, foi enviado aos presidentes da Câmara e do Senado e à Casa Civil.

A regulamentação, contudo, remeteu à legislação dos Estados definir regras para concursos e remoção e omitiu a situação dos então responsáveis pelos cartórios.
Segundo Naurican Lacerda, tabelião concursado em Brasília e integrante da associação que é contra a PEC, a proposta vai beneficiar famílias inteiras e filhos de autoridades, em especial em Mato Grosso do Sul, em Minas Gerais, no Tocantins, em Goiás e no Paraná. A associação é formada por pessoas aprovadas em concurso e que aguardam nomeação para os cartórios.

Beneficiados

Entre os beneficiados pela PEC, segundo a associação, está Valter Sâmara, amigo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e da primeira-dama Marisa Letícia, de Ponta Grossa (PR); o presidente do Flamengo, Marcio Braga, do Rio de Janeiro; e um irmão do advogado do empresário Marcos Valério (acusado de ser o operador do esquema do mensalão).

Sâmara é dono do 1º Tabelionato de Protestos de Títulos em Ponta Grossa e comanda cartórios desde a década de 70. Segundo ele, fez concurso para assumir um cartório ainda durante o governo militar de Ernesto Geisel (1974-79).
Mas, por decreto, trocou duas vezes de posto até assumir um dos mais rentáveis cartórios de Ponta Grossa. Sâmara nega que será beneficiado pela PEC. “Na época remoção não era concurso, era automático.

Por isso não vou ser beneficiado nem prejudicado. Hoje já não é assim”, diz ele, afirmando ser defensor do concurso público para tornar mais justo o processo. “Mas também não pode mandar embora quem dedicou uma vida ao cartório.”

Entidades como a ATC (Associação dos Titulares de Cartórios) defendem que os interinos já são beneficiados pelo tempo que permaneceram no cartório sem atenderem à norma constitucional do concurso. “Não podemos esquecer que a Constituição de 1988 já efetivou aqueles que eram titulares até sua promulgação. Não se pode repetir esse privilégio”, diz o presidente da ATC, Robson de Alvarenga.

Procurados ontem, Márcio Braga, do 9º Ofício do Registro de Distribuição do Rio, e Maurício Leonardo (irmão do advogado de Valério, Marcelo Leonardo), do 8º Ofício de Notas em Belo Horizonte, não responderam aos recados deixados pela reportagem.

Braga declarou ao Conselho Nacional de Justiça que assumiu em agosto de 1994 por decreto o comando do cartório. Leonardo afirmou ter entrado por concurso público em novembro de 1997, um ano antes de colar grau em direito.

A associação em defesa dos concursos públicos informa, entretanto, não ter havido concurso em Minas Gerais nessa data. “Os primeiros concursos foram em 1998”, afirma Naurican Lacerda. Ele diz que só no Estado de Minas, por exemplo, há 2.200 pessoas que foram aprovadas em concursos públicos e não vão assumir seus cargos caso a PEC seja aprovada.

O líder do PT na Câmara, deputado federal Maurício Rands (PE), defende a proposta, alegando que ela vai favorecer pequenos cartórios que ficaram “num limbo entre a Constituição e a regulamentação da lei”.

Proposta é inconstitucional, diz ministério

O secretário de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça, Rogério Favreto, afirma que a efetivação, sem concurso público, de responsáveis e substitutos por serviços notariais e de registro é inconstitucional. “A proposta viola o princípio do concurso público, previsto na Constituição, fere um preceito basilar”, afirmou.

“A posição do Ministério da Justiça é contrária à aprovação da PEC. O próprio Supremo Tribunal Federal, que é quem, em última instância, poderá julgar essa questão, já se manifestou, em outras ocasiões, contra a dispensa de licitação”, afirmou Favreto.

O conselheiro Antonio Umberto de Souza Jr., do Conselho Nacional de Justiça, afirmou que ninguém pode conquistar um cargo público, de caráter vitalício, por “usucapião”.

“A questão é muito simples. Como essas pessoas [não concursadas] chegaram ao cargo? Chegaram porque há uma regra que prevê a substituição temporária em caso de vacância do titular, pois nenhum cartório pode ficar fechado. Em seis meses, deve ser feito um novo concurso. Por culpa própria ou por culpa alheia, o concurso demorou, o que não significa que eles possam conquistar o cargo por usucapião. Se querem a vaga, podem tentar o concurso”, disse o conselheiro.

O presidente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Cezar Britto, também afirma que a proposta é inconstitucional. “É inconstitucional porque elimina o concurso público.”

Britto aguarda apenas a apreciação pelo Congresso para consultar o Conselho da OAB e entrar com ação na Justiça contra a PEC.

A Associação dos Notários e Registradores do Brasil disse que é a favor dos concursos, mas que não pode abandonar tabeliães “que há anos prestam serviços ao país”. O presidente, Rogério Portugal Bacellar, disse em nota que o governo deve “arrumar uma solução” para pessoas “com 20, 30 anos de substituição”.

Para o presidente do Colégio Notarial do Brasil, José Flavio Bueno Fischer, o concurso não é atestado de bons antecedentes, mas é rigoroso na seleção, pelo menos no aspecto jurídico e no intelectual. “É a forma mais democrática de acesso e que garante, pelo menos, ser o candidato aprovado conhecedor do direito aplicável ao exercício da profissão.” A ATC (Associação dos Titulares de Cartórios), contrária à PEC, diz que sua aprovação será ruim para a imagem dos cartórios. Segundo a entidade, a seleção oficial rigorosa levou à melhora da qualidade dos serviços prestados. “O concurso público tem renovado a atividade”, diz.

Cartório chega a faturar até R$ 2,2 mi mensais, diz CNJ

Levantamento mostra que maioria dos cem maiores cartórios está no Rio e em SP.

No Estado paulista, onde 5 concursos já foram feitos, só 300 cartórios, de cerca de 1.500, são ocupados por titulares concursados

Os cartórios no Brasil têm faturamentos que vão de R$ 500 a R$ 2,2 milhões por mês. O levantamento feito pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça) mostra, entretanto, que mais da metade deles tem rendimento médio de R$ 5.000.

Os cem maiores cartórios, a maioria localizada nos Estados do Rio de Janeiro e de São Paulo, faturaram entre R$ 500 mil e R$ 2 milhões por mês em 2007, segundo o CNJ. O cargo do titular de cartório é vitalício.

No Estado paulista, onde cinco concursos já foram realizados, só 300 cartórios -de cerca de 1.500- são ocupados por titulares concursados. Além da dificuldade das provas, o Estado optou por fazer concursos por áreas, para evitar grande número de inscritos.

Entidades como a ATC (Associação dos Titulares de Cartórios) defendem a necessidade de concursos para garantir a qualidade e o atendimento.

Os cartórios são uma concessão do governo em que uma pessoa é responsável por garantir a idoneidade de registros oficiais como os de bens imóveis, nascimentos, casamentos, óbitos, procurações, testamentos, atas e documentos. “São um grande arquivo de registros oficiais de cada cidadão”, diz Robson de Alvarenga, presidente da ATC.

A Constituição de 1988 determinou a obrigatoriedade do concurso, dando fim à nomeação dos titulares de cartórios pelos governos -que em geral passavam de pai para filho.

Uma lei de 1994 regulamentou o artigo 236 da Constituição. Desde então, Estados como São Paulo, Minas Gerais e Rio e o Distrito Federal realizaram, em média, cinco concursos cada um. Para concorrer à vaga de escrivão, é necessário ter diploma de bacharel em direito. A nova regra determinou que, sempre que o titular de um cartório morre, é transferido ou desiste do posto, há um prazo de seis meses para a realização de um novo concurso.

Uma vez aprovado, o candidato poderá escolher -de acordo com sua classificação- o cartório que irá assumir. O titular escolhe seu substituto e contrata os funcionários, arcando com os custos gerais. Em troca, fica com cerca de 60% do valor pago pelos usuários dos serviços como faturamento.

Os cerca de 40% restantes são destinados ao Estado, utilizados em fundos para registros gratuitos -como registro civil e de óbito- e aparelhamento dos tribunais de Justiça.

Entidades da área rebatem a idéia de que os cartórios são sempre um bom negócio. Como argumento, citam locais que não são preenchidos em concursos não por falta de aprovados, mas porque os candidatos não aceitam assumir por considerarem o lucro baixo. Citam cartórios em São Paulo que, apesar dos concursos, estão há 50 ou cem anos atuando com substitutos. É o caso do Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais e Tabelião de Notas do Município de Planalto, vago desde 1907.

 

Fonte: Jornal Folha de São Paulo – 16.12.08