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Direito e Justiça
Função promocional do testamento

Ana Luiza Maia Nevares – Advogada, doutora e mestre em direito civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), professora de direito civil da PUC Rio, autora de A função promocional do testamento, Editora Renovar. Sócia do escritório Bastos-Tigre, Coelho da Rocha e Lopes Advogados 

É preciso revisitar a autonomia privada testamentária à luz do cotejo entre os princípios constitucionais da solidariedade e da liberdade, corolários do princípio constitucional do respeito à dignidade da pessoa humana.

A partir da tendência à publicização ou socialização do direito privado, percebe-se que a autonomia privada, no início poder absoluto dos indivíduos, foi sendo, paulatinamente, cerceada, para que encontrasse limites nos fins sociais que passaram a ser impostos pelo Estado social.

Desse modo, devem-se avaliar as searas nas quais a liberdade individual se manifesta, pois a autonomia privada não se esgota na esfera patrimonial, sendo certo que não há qualquer espaço relativo à manifestação da autonomia privada que esteja fora do controle de análise do merecimento de tutela do ato ou da atividade desenvolvida pelo agente, a partir da confrontação dos mesmos com os valores constitucionais.

A avaliação do merecimento de tutela dos atos privados segundo os valores constitucionais está em consonância com o que se denomina de função promocional do ordenamento jurídico, na medida em que esse se vale de técnicas de encorajamento destinadas não apenas a tutelar, mas também a provocar o exercício dos atos conforme os ditames constitucionais.

Nesse cenário, busca-se examinar o fenômeno sucessório na perspectiva das pessoas envolvidas no mesmo (sucessores e autor da herança e testador), uma vez que a transmissão dos bens causa mortis deve ser um instrumento para a concretização da dignidade da pessoa humana e não um fim em si mesmo.

Estando a sucessão hereditária assentada na propriedade e na família, as mudanças por que passaram os dois últimos institutos repercutem diretamente na dinâmica da primeira, tornando inevitável a necessidade de revisão do fenômeno sucessório.

Revisitar a autonomia privada testamentária pressupõe assimilar que o testamento não é apenas um ato de atribuição de bens, podendo servir a objetivos qualificados do testador, quais sejam, os interesses de natureza existencial.

A partir da perspectiva dos sucessores, verifica-se a existência de limites à autonomia privada testamentária diretamente baseados na normativa constitucional, diante da análise não só da licitude das deixas contidas no testamento, como, ainda, do merecimento de tutela das mesmas diante dos princípios constitucionais. Assim, é possível identificar casos nos quais haverá uma contraposição relevante entre os interesses dos sucessores e aqueles contidos no testamento.

Tratar-se-á da verificação de um conflito entre a autonomia privada testamentária, expressão da livre iniciativa e da liberdade (CRFB/88, artigo 1º, inciso IV; artigo 5º, caput; artigo 170), e os direitos fundamentais calcados na dignidade da pessoa humana (Constituição Federal de 1988, artigo 1º, III), quando o bem objeto da disposição testamentária serve ou é indispensável/relevante à moradia ou ao exercício profissional do sucessor.

Ainda no campo patrimonial, é possível encontrar limites à autonomia privada testamentária diante de disposições de última vontade que estejam em dissonância com os objetivos constitucionais. Será o caso de condições e encargos impostos pelo testador que atentem contra a moral e os bons costumes, violando o princípio geral da liberdade civil, política ou religiosa dos beneficiados, bem como de disposições testamentárias que expressamente estabeleçam uma discriminação quanto aos sucessores, mesmo que se esteja diante da quota disponível.

Nesses casos, estar-se-á diante de uma deixa testamentária que contém objeto ilícito (Código Civil/2002, artigo 166, II). Outras vezes, não haverá ilicitude propriamente dita, mas sim não merecimento de tutela de tal disposição diante dos referidos objetivos constitucionais, em virtude do dever de solidariedade, imposto quanto ao exercício da autonomia privada.

A busca de mecanismos capazes de tutelar as disposições testamentárias que contenham objetivos qualificados do testador é consequência da revisão da autonomia privada testamentária. Há muitas dificuldades em se enquadrarem as situações jurídicas existenciais no fenômeno sucessório, uma vez que o mesmo está construído com base no princípio da patrimonialidade. No entanto, diante do vasto conteúdo possível do testamento, é preciso dar especial atenção aos objetivos qualificados do testador, quais sejam, aqueles que dizem respeito à sua esfera pessoal e existencial.

Nessa linha, alcança-se a função promocional do testamento, ou seja, as disposições testamentárias que realizam valores positivos do ordenamento jurídico brasileiro, usando-se como método a ponderação dos interesses, diante do já referido cotejo entre os princípios constitucionais da solidariedade e da liberdade, para que sejam alcançadas as soluções que melhor realizam a dignidade da pessoa humana no âmbito da autonomia privada testamentária, quer quando se está diante de disposições de cunho patrimonial, quer quando o objeto de análise são as disposições de cunho existencial.  
 
 

Fonte: Jornal Estado de Minas – Caderno Direito e Justiça