Em vez de modernizar serviço notarial, Câmara discute votar anistia escandalosa a tabeliães indicados sem concurso.
O ESPÍRITO da anistia contagiou Brasília. Deputados e senadores empenham-se em votar projetos que presenteiam -à custa do contribuinte, do usuário de serviços públicos e de princípios constitucionais- setores enrascados com a lei.
É o caso de 3,7 mil titulares de cartórios -28% dos 13.416 no país- que correm o risco de perder as sinecuras caso uma determinação que consta da Carta desde 1988 seja, enfim, aplicada. Trata-se do preceito que manda preencher esses cargos apenas por concurso público. A Câmara tem engatilhado um projeto de emenda constitucional tornando efetivos titulares de cartório indicados para o cargo por algum padrinho na administração.
Há poucas efetividades mais efetivas, com perdão do pleonasmo, do que ser agraciado com um cartório no Brasil. O posto é vitalício. O proprietário terá renda assegurada até o fim da vida, titular de um oligopólio, quando não de um monopólio, para a venda de serviços que em grande parte se tornaram obsoletos e inúteis.
Ao abrigo da concorrência, o tabelião não tem interesse em oferecer serviços diferenciados. É estimulado apenas a estrangular custos, a fim de aumentar a margem de ganho pelos serviços que presta -regiamente remunerados com base numa tabela, fixada pelas Assembléias estaduais sem critério transparente.
À mercê do atendimento precário e obrigados a procurar o serviço por força de uma miríade de exigências burocráticas, os usuários sofrem as conseqüências do arcaísmo. O concurso público foi um passo tímido rumo à modernização dos serviços notariais. As relações econômicas e sociais no Brasil ainda são oneradas inutilmente nesse modelo colonial de gestão pública.
A reforma dos cartórios deveria começar pela separação entre interesse público e assuntos privados. Registros de imóveis, por exemplo, ficam na primeira categoria, que deveria ser exercida diretamente pelo governo -no caso, pelas prefeituras.
O que for privado, como o registro de contratos e a grande maioria dos serviços, deveria ser submetido a um regime de livre concorrência. Quem quiser abrir um cartório e reunir as condições mínimas para tanto, que abra, cobre o preço que quiser e submeta-se à regulação pública. Outra necessidade crucial é simplificar radicalmente as exigências documentais feitas pelas diversas esferas do governo. Não se evita fraude, por exemplo, com o “reconhecimento” da assinatura.
Em vez de votar a escandalosa anistia, os legisladores deveriam emancipar os cartórios de sua origem patrimonialista.
Fonte: Jornal Folha de São Paulo – 16.12.08