Clipping – Legião de invisíveis – Jornal O Globo

A cada ano, 400 mil crianças deixam de ser registradas no país, mas número está diminuindo

Lucas tem quatro meses de vida, mas ainda não é considerado um cidadão. “É ninguém”, segundo a mãe, Irdeane Pereira de Sousa, de 15 anos. É que, como ela própria não tinha documentos, não pôde registrar o filho.

Como Lucas, a cada ano, mais de 400 mil brasileirinhos deixam de ser registrados até o primeiro ano de vida. Segundo o último levantamento do IBGE, divulgado neste mês, em 2007, 12,2% dos nascidos não foram registrados. Não há estatísticas sobre os brasileiros adultos sem registros.

Lucas e a mãe Irdeane, uma das crianças que não foram registradas no primeiro ano de vida – Eliaria Andrade/Diário de S.Paulo

O sub-registro de nascimento é definido pelo IBGE como o conjunto de nascimentos não-registrados no próprio ano de ocorrência ou até o fim do primeiro trimestre do ano subseqüente. Na análise da série 2000-2007, apresentada este mês, o percentual de sub-registro de nascimento no país variou de 21,9%, em 2000, para 12,2%, em 2007, sendo que no último ano praticamente não houve alteração, com leve redução de 0,5 ponto percentual.

Irdeane é mãe solteira e saiu do Maranhão em maio para viver com a família em Polvilho, um bairro de Cajamar (SP). Sem documentos, nem emprego, mal sabe ler e escrever.

No cômodo de 16m² que divide com Lucas, seus dois irmãos e o pai, que é deficiente físico, falta comida e muito mais. Irdeane não soube explicar o que significa a palavra cidadania, mas sente na pele a falta dos seus direitos mais básicos. Ela afirma que o pior mesmo é viver sem documentos. É como se não existisse legalmente.

– Gente sem documento é ninguém.

Quero que o Lucas seja doutor, para cuidar dos velhinhos doentes.

Mas até agora, não consegui nem entrar no Bolsa Família – conta Irdeane, que graças à ajuda de vizinhos, acaba de receber a própria certidão de nascimento.

Secretaria faz campanha nacional

Nascida em Caxias (MA), Irdeane mudou-se para Polvilho em maio, ainda grávida. Não sabia que precisaria de documentos: – Na viagem, ninguém me pediu nada. Nunca na vida me pediram documento.

Agora, aqui em São Paulo, me disseram que podem até dizer que roubei o meu filho. Vou parar na polícia, presa. Cidadania é isso, poder ser presa? Fico com medo. Se levar o bebê no hospital, se ele passar mal. Melhor não levar, não é? Quando a Pastoral da Criança descobriu a situação da família Sousa, em Polvilho, percebeu que não adiantava apenas oferecer a multimistura para Irdeane se alimentar melhor e incentivá-la a amamentar Lucas. A entidade participa da campanha que o governo federal mantém para reduzir o número de subregistros no país.

– No caso da Irdeane, não conseguimos fazer o registro. Ela nasceu no Maranhão e ficou tudo muito complicado. Então procuramos os vicentinos (outra entidade católica), que a ajudaram – conta Fabiana Regina Oliveira da Silva, vizinha dos Sousa.

Com a chegada do registro, Irdeane começou a procurar trabalho e vai tentar ser uma das beneficiárias do Bolsa Família: – Agora vou caçar trabalho. Quero ter dinheiro para a comida. Eu sei fazer as coisas. Bolo, eu adoro e sei fazer direitinho. Mas não tenho as coisas para fazer, para misturar. Com o documento, eu vou ter tudo.

A campanha nacional para o registro civil e a documentação básica, criada pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos e seguida por 20 instituições, como a Pastoral, Unicef e bancos federais, terminou dia 19, e o balanço será divulgado no início de 2009. A meta é atingir menos de 5% de sub-registro em todo o país até 2011. No Censo de 2010, o IBGE deverá contar também os adultos sem registros.

Entre 2000 e 2007, segundo o IBGE, houve uma redução progressiva dos percentuais de sub-registro de nascimento, com destaque para a Região Norte, que passou de 47,1% para 18,1%. Embora o Norte tenha apresentado a maior redução nos percentuais, a cobertura em conjunto com o Nordeste ainda é bastante deficitária.

Em 2007, Norte e Nordeste mantiveram sub-registros de 18,1% e 21,9%, respectivamente.

Já o Sul do país tem a melhor cobertura de registros de nascimento, com percentual de sub-registro de apenas 1,4%, em 2007. No mesmo ano, o Sudeste atingiu a proporção de 5,5% e o Centro-Oeste, 10,6%.

Ainda segundo a análise do IBGE, de 2000 a 2007, as maiores reduções de sub-registro de nascimento, em pontos percentuais, ocorreram no Maranhão, Pará, Amazonas e Tocantins, respectivamente, 38,8%, 37,2%, 33,8% e 29,1%. Contudo, em 2007, esses estados ainda estavam classificados na faixa de sub-registro superior a 10%.

O estudo do IBGE mostra ainda que, em 2007, o Distrito Federal, São Paulo e Rio Grande do Sul foram os únicos estados cujas proporções de registros de nascimentos de mães com menos de 20 anos foram inferiores as proporções das mães entre 30 a 34 anos.

O Paraná e o Rio também se aproximam desse perfil. Em contraposição, o Maranhão e o Pará tiveram as maiores proporções de registros cujas mães tinham entre 15 e 19 anos, em torno de 25%. Por outro lado, as maiores proporções de registros de nascimentos com mães entre de 35 a 39 anos foram verificadas no Rio Grande do Sul (10,9%), São Paulo (9,5%), Distrito Federal (9,4%), Santa Catarina (9,0%) e Rio de Janeiro (8,9%).

Erradicação do sub-registro enfrenta dificuldades

Para Zilda Arns, há no país problemas com índios, ciganos, além de difícil acesso aos cartórios

A médica Zilda Arns é reconhecida como a brasileira com mais ampla experiência na luta pela cidadania dos mais pobres no país. Ela ensina que dois são os ingredientes para a baixa auto-estima de um cidadão: o analfabetismo e a falta de registro. No Brasil, eles andam juntos.

Há 25 anos, quando fundou a Pastoral da Criança, um quarto das famílias que atendia não tinha documentos e era analfabeta. Hoje os índices caíram pela metade, mas ainda preocupam Dona Zilda: – Era muito comum encontrarmos famílias inteiras analfabetas e sem documentação. Hoje, o problema se restringe mais aos ciganos e aos indígenas. Mas há ainda também muitos problemas com os migrantes, que não têm dinheiro nem estrutura para acessar os cartórios das cidades onde nasceram. Sem documentos, nem os postos de saúde querem atendêlos. Depois, os cemitérios não querem enterrálos. É muito cruel.

Zilda Arns e sua pastoral participam ativamente da campanha do governo para eliminar o sub-registro. Mas ela também tem críticas: – Como é que pode uma pessoa muito pobre ter que voltar à sua cidade natal para conseguir uma cópia de certidão? Ou ainda pagar para que o cartório envie seu documento? A certidão é a porta de entrada para a cidadania, mas ela tem estado fechada – afirma.

Zilda Arns se mostra indignada com o fato de o Brasil, que tem um sistema privado de registros, não possuir cartórios totalmente informatizados: – Hoje, pelo computador, eu acesso 43 mil comunidades da Pastoral, que atende dois milhões de crianças e mães. Como é que o Brasil, que é tão rico, não conseguiu ainda informatizar seus sistemas de registros? Esses cartórios estão muito antiquados. Deveriam ser obrigados a se modernizar.

A fundadora da Pastoral da Criança considera ainda que o governo precisa garantir o respeito aos povos nômades, como os ciganos, os indígenas, caboclos e quilombolas. Os nômades são os mais discriminados nos cartórios, justamente por não terem endereço fixo pela própria cultura.

– Nas campanhas mesmo do governo, falase tanto em registro e alfabetização, mas os povos nômades estão excluídos. São inclusive desrespeitados porque não têm endereço fixo.

Deveriam explicar que as caravanas são a base da cultura dos ciganos, por exemplo – diz.

Zilda Arns argumenta ainda que é preciso também organizar equipes volantes para fazer os registros dos indígenas, ribeirinhos, quilombolas e outros povos que vivem distantes dos centros urbanos.

– É mais fácil mandar três pessoas que obrigar 100 a se deslocar pela mata, pelos rios, para chegar a um cartório – avalia.

A coordenadora da campanha nacional de mobilização, da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, Leilá Leonardos, afirma que Dona Zilda tem razão em sua avaliação. Ela explica que um dos eixos do projeto que visa a erradicação do sub-registro é a informatização dos cartórios. Outro projeto é de inclusão dos povos nômades, dos que vivem nas ruas, sem-teto, além de indígenas, quilombolas e ribeirinhos.

– A proposta é de padronização e informatização.

Agora, o sistema brasileiro de registros é privado. Muitos cartórios brasileiros ainda operam com máquinas de escrever. Um de nossos projetos é promover uma linha de financiamento para computadores. Estamos avançando – afirma Leilá Leonardos.

A coordenadora esteve em São Paulo na última semana da campanha e encontrou uma situação assustadora: do total de 6.349 pessoas hospitalizadas há mais de um ano na cidade de São Paulo, 1.312 não têm documentos.

– Isso é só um exemplo. Nós não temos sequer os dados globais do país sobre o número de adultos não documentados. Nem estimativas.

Mas estamos trabalhando e temos projetos importantes, já consolidados – argumenta Leilá Leonardos.


“Sem documentos, nem os postos de saúde querem atendê-los.

Depois, os cemitérios não querem enterrá-los. É muito cruel”

Zilda Arns, fundadora da Pastoral da Criança


“A certidão é a porta de entrada para a cidadania, mas ela tem estado fechada”

Zilda Arns


“Nós não temos sequer os dados globais do país sobre o número de adultos não documentados.Nem estimativas”

Leilá Leonardos, coordenadora da campanha da Secretaria Nacional de Direitos Humanos


 

Fonte: Jornal O Globo – 29.12.08