A surpreendente liminar concedida por 10 votos contra 1 pelo Supremo Tribunal Federal (STF) à Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), derrubando o teto de R$ 22,1 mil para os salários dos juízes estaduais, que foi criado pela Emenda Constitucional (EC) nº 41, expõe a complexidade do processo de modernização do Judiciário.
O teto para todos os setores do funcionalismo foi criado em 1998 com o objetivo de conter a expansão dos gastos públicos com salários. O subteto para a magistratura estadual foi aprovado em 2003 por pressão de um grupo de governadores liderado por Mário Covas, então à frente do governo paulista. Segundo eles, a Justiça estadual pode ser uma instituição autônoma, mas o caixa é um só e a responsabilidade sobre o que entra e sai é do Executivo, que tem de cumprir metas fiscais.
Embora a ação direta de inconstitucionalidade proposta pela AMB contra o CNJ ainda não tenha sido julgada no mérito pelo Supremo, alguns ministros já anteciparam seu voto e dificilmente mudarão de posição. Se for confirmada, o que é provável, a decisão poderá ter duas graves conseqüências.
A primeira é o risco de esvaziamento da autoridade do CNJ, órgão criado há dois anos para exercer o controle externo sobre a magistratura. Ao longo desse período, ele se destacou por suas iniciativas moralizantes, como o combate ao nepotismo judicial, proibindo a contratação de parentes de juízes para funções comissionadas e cargos de confiança, e a tentativa de acabar com os supersalários de desembargadores, ordenando o corte dos valores excedentes ao teto. Em São Paulo, a viúva de um desembargador tem uma pensão cujo valor é quase 50% maior do que o salário de um ministro do STF.
A segunda conseqüência da surpreendente decisão dessa corte é o risco de que a liminar por ela concedida seja interpretada pelos presidentes dos Tribunais de Justiça como uma espécie de nihil obstat para a concessão de aumentos salariais, sob a forma de incorporação de vantagens funcionais e gratificações como qüinqüênios, sexta-parte, auxílio-moradia, ajuda de custo para mudança, auxílio-paletó, “indenização” para transporte e até “adicionais de qualificação”. Uma das principais preocupações do CNJ, desde sua criação, foi acabar com os penduricalhos concedidos por Constituições estaduais que permitem a juízes e desembargadores estaduais elevar o salário-base para valores acima do teto, usando esse expediente para contornar as limitações impostas pela Constituição Federal.
Segundo a Resolução 13 do CNJ, só a remuneração decorrente de atividade da Justiça Eleitoral e magistério, verbas previdenciárias e verbas indenizatórias podem ser excluídas do cálculo de enquadramento dos salários ao teto. Para a AMB, entidade que, ao longo da tramitação da emenda constitucional relativa à reforma do Judiciário, se notabilizou pela resistência à aprovação do controle externo, o teto constitucional se aplicaria apenas ao salário-base. Na defesa de seus interesses corporativos, a AMB alega que a independência da Justiça depende da independência da magistratura, inclusive no recebimento de vantagens funcionais que são negadas a quase toda a população.
A surpreendente liminar concedida pelo STF derruba as sensatas medidas adotadas pelo CNJ e beneficia a AMB. O relator Cezar Peluso, que foi desembargador no Tribunal de Justiça de São Paulo, por ironia a corte onde mais da metade de seus 2.200 magistrados tem vencimentos acima do subteto previsto pela EC 41, alegou que o Judiciário é um Poder único de caráter nacional e que, por isso, não poderia haver discriminação entre juízes federais e estaduais. O argumento é polêmico, pois se baseia numa distorção da estrutura federativa do País. Se os Estados são autônomos em relação à União, por que os juízes estaduais são submetidos a um regime funcional único?
É difícil saber se a decisão do STF é fruto de um excesso de formalismo na interpretação da Constituição ou do corporativismo da instituição. O fato é que a liminar concedida pelo STF, além de esvaziar a autoridade do CNJ, é mais um obstáculo para o equilíbrio das finanças públicas e reforça a desconfiança com que parte da opinião pública vê o Judiciário, cuja média salarial é a maior dos Três Poderes.
Fonte : O Estado de São Paulo