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O que diz a lei
Direito de família

Ana Carolina Brochado Teixeira – Advogada especializada em Direito de Família e Sucessões, professora de Direito Civil no Centro Universitário UNA, diretora do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).

Homossexuais

Direitos na relação entre pessoas do mesmo sexo

Sou homossexual e vivi durante 15 anos com outro homem. Há três anos, estamos separados e, atualmente, vivemos uma briga pela divisão de nossos bens e pagamento de pensão. O que posso fazer para resolver a questão? No nosso caso, é possível entrar com uma ação judicial de separação, como os casais heterossexuais, fazer a partilha dos bens e definir a pensão que terei de pagar a ele? Isso pode ser feito em cartório ou é preciso chegar à Justiça?

• Renato, por e-mail

Prezado Renato,

Finalmente, o direito tem adotado uma perspectiva inclusiva, tendo em vista que a diversidade de orientação sexual não é razão suficiente para deixar de caracterizar um par como entidade familiar, geradora de todos os efeitos de direito de família. Isso faz parte de um longo processo de mudança de mentalidade e de transformação na estrutura familiar. Hoje, não falamos mais em um único modelo de família, mas em várias espécies de famílias, que têm a pluralidade como questão central. Para isso, também contribuiu a mudança de foco, a passagem da família de uma instituição econômica e patriarcal para um núcleo afetivo, voltado para a promoção da personalidade e dignidade de seus membros. A família passou a existir em função de seus componentes, e não o contrário.

Essa ideia de inclusão perpassou a Constituição Federal, na medida em que seu artigo 226 previu como tipos de família o casamento, a união estável e a família monoparental, o que abriu margem para a proteção de outras formas de entidades familiares, como a anaparental (formada por irmãos), a homoafetiva, a socioafetiva, entre outras.

Sendo mais direta na resposta à sua pergunta, é totalmente possível você pleitear a declaração da entidade familiar, que viveu com seu então companheiro, para que ela gere efeitos de direito de família, tais como partilha de bens e pensionamento alimentício, se existirem os requisitos da necessidade de quem pleiteia e da possibilidade de quem deve pagar. Se houver possibilidade de acordo, vocês podem optar pela via cartorária ou pelo Poder Judiciário.

Mas, se o caso for litigioso, fugindo à regra do consenso, é juridicamente possível que você ajuíze uma ação para requerer o reconhecimento desta família que formaram. Para tanto, existem alguns fundamentos importantes. Atualmente, é imperiosa a consideração do caráter essencial do direito personalíssimo à orientação sexual, sob pena de flagrante ofensa aos princípios da igualdade substancial, liberdade, dignidade da pessoa humana e solidariedade. Além desse, a pluralidade das entidades familiares e o fato de o artigo 226 da Constituição ser uma enumeração exemplificativa também são argumentos consistentes para embasar o pedido.

Nesse sentido, não mais se pode aceitar o argumento de ser o pedido declaratório de união homoafetiva juridicamente impossível, em face da inexistência de previsão legal expressa no ordenamento jurídico pátrio. O próprio Superior Tribunal de Justiça (STJ) apreciou a matéria, por meio do Recurso Especial 820.475, entendendo possível que o julgador examine a controvérsia sob “as lentes” do direito de família.

Recentemente, o STJ manifestou-se sobre a possibilidade de o companheiro homossexual receber pensão previdenciária complementar, sob o argumento de que a dependência econômica é inerente a uma entidade familiar, sendo esta a lógica da união entre pessoas heterossexuais, que também deve se aplicar à homoafetiva (REsp 1026981), cuja ementa é a seguinte: “Direito civil. Previdência privada. Benefícios. Complementação. Pensão post mortem. União entre pessoas do mesmo sexo. Princípios fundamentais. Emprego de analogia para suprir lacuna legislativa. Necessidade de demonstração inequívoca da presença dos elementos essenciais à caracterização da união estável, com a evidente exceção da diversidade de sexos. Igualdade de condições entre beneficiários.”.

Também o Supremo Tribunal Federal (STF), por meio do ministro Celso de Mello, relator da medida cautelar em ação direta de inconstitucionalidade (ADI 3.300-DF), em 3 de fevereiro de 2006, manifestou-se pela primeira vez quanto à possibilidade de reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar.

Todavia, não foi sempre assim, pois a união homoafetiva está percorrendo um “caminho jurídico” bem parecido com o da união estável; antes de ser reconhecido pela jurisprudência como família, já foi reconhecido como sociedade de fato, ou seja, cada um teria direito ao que investiu diretamente para aquisição do patrimônio. Contudo, aos poucos, a jurisprudência superou a interpretação da união homoafetiva como sociedade de fato, espécie prevista no artigo 981 do Código Civil de 2002, que prevê que “celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados”.

Inicialmente, o enfrentamento dessas questões era mais aceito se visto sob a ótica do direito das obrigações, desvinculadas das relações de afeto; contudo, essa abordagem não é compatível com a contemporaneidade, por força da incidência do direito civil-constitucional, ou seja, da força normativa da Constituição. Mesmo porque não se pode mais conceber a ideia de que tais relações não gerem efeitos típicos do direito de família.

As perguntas devem ser enviadas para o e-mail direitoejustica.em@uai.com.br 

 

 

Fonte: Jornal Estado de Minas – Caderno Direito e Justiça