A senha foi criada, supostamente, para facilitar e organizar o atendimento a usuários de serviços públicos e privados. As pessoas já estão até acostumadas a entrar nos locais e procurar pela maquininha que libera um papelzinho com um número. Há senha nos lugares mais variados, como empresas de telefonia, laboratórios, cartórios, serviços de saúde e muitos outros. Nem dá para discutir agora se a senha funciona também como um estratagema porque, no fundo, no fundo, as filas continuam. Em vez de investir no fim da fila, fornecem senhas.
Com a senha em punho, o candidato ao serviço senta-se em uma cadeira (quando há lugar para assentar) e fica aguardando o barulhinho da maquininha e o momento em que o número do visor coincide com o do papel. Se o interessado levar um livro ou um jornal, não consegue avançar na leitura, porque a toda hora tem que conferir se está sendo chamado. Uma tensão permanente.
Mas como as coisas que estão ruins sempre podem piorar, conseguiram inovar. Tem um cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais, na região central de Belo Horizonte, em que o cidadão entra numa fila respeitável para, pasmem, pegar a senha. O lugar é apertado, desconfortável, abafado, com o ruído permanente de um ventilador enorme que quase esbarra na cabeça dos presentes, já que o pé direito do local é bem baixo.
A fila se estica ao lado de umas cadeiras em que noivos e pais que querem registrar o filho aguardam pelo numerozinho que, a qualquer momento, pode aparecer no visor eletrônico afixado lá na frente. É lá na frente, também, no final da fila, que está a placa: “Informações e senhas”.
Dá pena, porque tem casal desavisado que leva o filho recém-nascido para fazer o registro. Aparecem mães com cara de quem acabou de receber alta na maternidade, carregando nos braços o filho todo enroladinho, e pais com cara de quem está perdendo dia de serviço. A mãe, que já esperou nove meses, espera mais longos minutos, enquanto o pai da criança enfrenta a fila, apanha um formulário e vai preencher com os dados básicos enquanto aguarda sua vez. São pessoas simples que se viram como podem para preencher o papel. Não há ninguém para orientar. Existem apenas uma bancada, algumas canetas amarradas e um formulário desafiador, em branco. Por exemplo: no local reservado a “naturalidade”, um pai escreveu “brasileiro”. Foi o que entendeu.
Uma pena, porque as crianças, naquele cartório, estão prestes a ter um registro oficial de nascimento. É um ato solene. A rigor, é o primeiro ato de cidadania do bebê. Desanimador, por sinal. Pais e mães, bem como os bebês, mereciam mais atenção e estímulo para terem a dimensão exata do valor da cidadania.
Pior também para os noivos e noivas, em buscas dos proclamas e dos registros. Naquele ambiente, pode acontecer o início do fim do sonho do casamento, porque é um banho de realidade brasileira. Se a vida em comum for por esse caminho, não é bom sinal. Ou será que é uma amostra dos percalços comuns à vida a dois? Uma primeira prova, talvez?
Mais uma vez está dada a senha: esse negócio de direito do consumidor bem que melhorou, mas o caminho a percorrer ainda é longo. Ou melhor, as filas ainda são longas e as senhas, definitivamente, não vieram para resolver o problema. O recurso é entrar na fila, aguardar a vez e esperar por dias melhores. Os mais impacientes que procurem onde reclamar. Mas lá também deve ter fila.
Fonte: Jornal Estado de Minas