Pela proposta que tramita na Alerj, Defensoria Pública será alertada sobre todos os casos
O deputado estadual Alessandro Molon (PT) vai pedir à Mesa Diretora da Assembléia Legislativa que encaminhe à votação em plenário, logo após o recesso, projeto que obriga os cartórios a comunicar à Defensoria Pública os casos de crianças registradas sem o nome do pai.
Para convencer a direção da Casa, Molon mostrará os dados de reportagem do GLOBO, publicada ontem: de cada quatro crianças que nascem no Brasil, uma não tem o nome do pai na certidão, número bem acima do padrão europeu.
– Se for comunicada, a Defensoria poderá agir. É um direito da criança saber quem é o seu pai. Além da questão das raízes, da origem, há também questão do apoio material para subsistência e o direito sucessório – explicou Molon.
Molon explicou que o projeto, de sua autoria, é inspirado em proposta defendida pelo ex-presidente da Associação dos Defensores Públicos do Rio Denis de Oliveira Praça, que considera esse direito “inalienável e irrenunciável”.
Na época, Denis alegou que a maioria dos casos de não registro paterno nas certidões não chega ao conhecimento dos defensores públicos.
– A comunicação automática aos núcleos da Defensoria Pública dará a elas a possibilidade de agir em nome da criança – disse Molon.
Na Alerj, o projeto já passou por todas as comissões e está pronto para ser votado. Seu texto também prevê que as mães dessas crianças sejam comunicadas sobre os caminhos para uma ação de investigação de paternidade.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) também pretende dar início a uma campanha de busca de pais que não registraram os filhos com a ajuda das Justiças estaduais
Adultos ou crianças, filhos sem pai querem saber de onde vieram
Aos 8 anos, Dalva Goulart de Oliveira, hoje com 60, viu o pai pela primeira vez. Ele apareceu na porta de sua casa, em Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, e disse que ia registrá-la, mas isso nunca aconteceu.
– Fiquei muito feliz ao vê-lo e chamei logo de pai.
Tudo o que eu queria era o seu amor – conta Dalva, que o encontrou de novo aos 14 anos e ouviu uma frase que não esquece: “Você acha mesmo que sou seu pai?” – Isso me magoou. Ele sabia que era meu pai. Cresci esbarrando com ele na rua, mas sem seu nome na certidão e me sentindo envergonhada quando precisava tirar qualquer documento, preencher qualquer ficha. Parecia que eu era filha de qualquer uma. Há oito anos, ela tomou coragem e foi atrás de suas origens. Descobriu onde a família de seu pai morava e quis conhecê-los.
– Ele já tinha morrido.
Mas eu queria descobrir como era, queria ter uma foto comigo – diz ela, que até hoje só sabe o primeiro nome do pai. – É Luiz. Nunca tive coragem de perguntar o sobrenome. Fiquei com medo que achassem que eu queria saber para ir à Justiça pedir dinheiro. Irmã de Dalva por parte de mãe, Leda, de 66 anos, também não tem o nome do pai na certidão de nascimento.
– Ele só registrou um dos meus seis irmãos e mesmo assim porque quem ia batizá-lo bateu o pé. Minha mãe nunca cobrou – diz Leda, que tem uma sobrinha que age exatamente como sua mãe. – Ela tem quatro filhos e só um conseguiu ser reconhecido pelo pai.
Na família da dona de casa Roseane Maria de Lucas, de 30 anos, que vive em Pernambuco, a história também se repete. Ela cresceu sem o pai, e seu filho, de 11 anos, também nunca viu o seu: – Meu pai abandonou minha mãe grávida e nunca quis saber da gente. Aos 17 anos, eu engravidei de um namorado, ele sumiu, e eu achei melhor o bebê não ter o nome dele. A diferença entre a minha história e a do meu filho é que ele adora o pai sem nunca ter visto.
Quer tanto conhecê-lo que acabei de entrar na Justiça para pedir o reconhecimento da paternidade. Na casa de Rosângela de Melo Fonseca, em Jaboatão dos Guararapes, também foi a filha Norma Lúcia, de 12 anos, que fez pressão para conhecer o pai. A menina cresceu sabendo que havia sido abandonada, mas volta e meia fazia perguntas e pedia para ver as fotos em que ele aparecia.
– Nós brigamos quando ela tinha oito dias. Ele sumiu. Fiquei com medo de brigar de novo e preferi registrá-la sem o nome dele – conta Rosângela, que lembra ter se sentido mal ao ver a filha questionar por que as irmãs tinham o nome do pai e ela não. Vi que ele fazia falta. Eu até queria procurá-lo, mas faltava coragem. Foi aí que o destino deu uma mãozinha. Em novembro de 2008, Rosângela estava num ônibus parado no sinal. Outro parou ao lado e, ao olhar o trocador, ela teve uma surpresa.
– Era o pai da minha filha. Trocamos telefones, eles se conheceram e ele quis reconhecê-la.
O reconhecimento, porém, ainda não foi feito. Rosângela ficou com medo de estragar o noivado do ex-namorado, esperou que ele casasse, e só em novembro de 2009 foi à Justiça pedir para não pagar a taxa de R$ 170 que alguns cartórios cobram para alterar a certidão: – Para quem não queria brigar, até que entrei numa briga boa contra os cartórios que não cumprem a lei.
Presidente da Associação Pernambucana de Mães Solteiras (Apemas), Marli Márcia da Silva, que há 18 anos auxilia mães que buscam o nome do pai para seus filhos, diz que muitas mulheres vão à Justiça só quando as crianças pedem. Segundo Marli, elas não fazem isso logo que os filhos nascem porque, ao serem abandonadas, sentem que deixar o pai fora da vida da criança é uma espécie de vingança: – Os homens não insistem. A mulher acha que está se vingando, mas na verdade não está pensando na criança, que cresce e sente falta do pai
Uma a cada quatro crianças não tem dados paternos na certidão
De cada quatro crianças que nascem no Brasil, uma não tem o nome do pai na certidão de nascimento. O número está bem acima do verificado em países europeus, como a França, onde somente 2% de pessoas são obrigadas a carregar esse vácuo – e muitas vezes trauma – nos documentos de identificação. É o que mostram estimativas de especialistas e inspeções preliminares em cartórios realizadas pelo Conselho Nacional de Justiça, órgão responsável por fiscalizar a atuação do Poder Judiciário.
Doutora em sociologia pela Universidade de Brasília (UnB) e autora do livro recém-lançado “Em Nome da Mãe. O não reconhecimento paterno no Brasil”, Ana Liési Thurler calcula que o campo “nome do pai” está vazio para no mínimo um quinto, e no máximo um quarto dos registros de nascimento.
A socióloga cruzou dados de 183 mil certidões nos cartórios de Brasília e os comparou com pesquisas do IBGE sobre filhos fora do casamento. De acordo com o CNJ, quase 25% das crianças não têm filiação paterna na certidão. A corregedoria do órgão está prestes a dar início, no primeiro semestre deste ano, a uma caça inusitada a pais desconhecidos, num programa nacional que está passando pelos últimos ajustes antes de sair às ruas. A ideia é usar informações do Censo Escolar dos municípios brasileiros para achar pais que fogem, pelos mais diferentes motivos, de suas obrigações.
– Os pais não reconhecem seus filhos porque não querem pagar pensão alimentícia. Geralmente, já não vivem mais com a mulher, não gostam dela e não têm laços afetivos com a criança.
Então, não querem dar dinheiro – alerta Marli Márcia da Silva, presidente da Associação Pernambucana de Mulheres Solteiras (Apemas).
País não produz números oficiais
O Brasil não tem dados oficiais sobre o assunto. De 1984 a 1993, o IBGE produziu uma série sobre nascimentos fora do casamento. O último dado disponível aponta que, entre as crianças nascidas naquele período, 57,5% estavam nesse grupo. Ana Liési diz que hoje, duas a cada três crianças (66%) são concebidas fora do matrimônio – em relações estáveis, eventuais ou casuais -, uma das razões para que o nome do pai não apareça na certidão de nascimento. São poucos os que conseguem recuperar a filiação paterna. No universo pesquisado pela socióloga, em média, somente 10% dessas pessoas têm sucesso.
– Entre 2000 e 2008 foram emitidos no país 31,2 milhões registros de nascimento, segundo dados oficiais. Se admitirmos uma incidência de 25%, significará 7,8 milhões de crianças sem reconhecimento paterno. Se adotarmos a incidência de 20%, os números serão também altos: 6,2 milhões de crianças – calcula Ana Liési.
A situação das mães é oposta nos números pesquisados pela socióloga. No DF, apenas 0,12% dos registros aparecem sem reconhecimento materno. A responsabilidade excessiva sobre a mãe tem ainda a chancela de documentos do poder público. A Declaração de Nascidos Vivos só pede informações sobre a mãe. Não há campos sobre o pai. Para a o antropólogo Gilberto Velho, do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o reconhecimento paterno é fundamental na vida em sociedade: – Filho é uma aliança entre duas famílias. O filho sem o nome do pai passa a ser considerado fruto de uma aliança imperfeita
Fonte: Jornal O Globo – 10.01