No nosso dia-a-dia é comum ouvirmos a expressão “pai é quem cria”. Será que a sabedoria popular tem mesmo razão? Essa expressão é muito interessante para o direito de família, principalmente por vivermos na era do exame de DNA, com o qual se confere a paternidade biológica com 99,99% de precisão. Mas qual será a verdadeira paternidade? A biológica, proveniente dos vínculos consangüíneos e que pode ser confirmada com os avanços científicos ou a jurídica, decorrente da imposição legal?
Diante da complexidade e do dinamismo das relações sociais, nem uma nem outra são suficientes para a identificação da verdadeira paternidade. Basta observamos à nossa volta e veremos que as transformações ocorridas na família, como separações, uniões estáveis e tantos outros motivos acabam por colocar os filhos, que se afastam de seus pais biológicos, em uma nova família, abrindo caminho para mais uma forma de paternidade, a socioafetiva.
Como na ciência do direito não há uma resposta pronta e acabada para tudo, ainda mais quando se trata de intrincadas questões familiares, esses casos de paternidade, pautados apenas no afeto, exigem uma interpretação civil-constitucional, com fulcro no Código Civil de 2002. Daí, a moderna doutrina da paternidade socioafetiva, baseada nos princípios constitucionais de uma família genérica e plural, sedimentada na valorização da afetividade entre seus membros. Essa doutrina em muito se aproxima do referido dito popular, pois só o afeto, o amor e o carinho, oferecidos cotidiana e espontaneamente por quem quer exercer a função de pai com todas as obrigações a ela inerentes, possibilitam identificar a verdadeira paternidade.
Sobre a paternidade, Rubem Alves trata da questão em sua crônica O pai, quando afirma que “é fácil demais ser pai biológico. Pai biológico não precisa ter alma. Um pai biológico se faz num momento”. Das palavras do renomado escritor, é possível notar que os vínculos de sangue têm um papel secundário para a determinação da paternidade, uma vez que cedem lugar ao afeto e, a partir dele, cria-se a paternidade. E esta deve ser entendida como a que valoriza os laços afetivos e constrói a estrutura psíquica e social do indivíduo, transcendendo os vínculos biológicos.
Mas, como nem tudo são flores… Os desarranjos familiares ou a conscientização de que esse tipo de paternidade também produz direitos e deveres podem fazer com que esses casos cheguem aos nossos tribunais, nos quais uma das partes – o pai ou filho socioafetivo – exija o reconhecimento dos efeitos jurídicos decorrentes desse vínculo. Frise-se que os pais, além dos deveres, também têm direitos, porque a paternidade é uma via de mão dupla que gera direitos e obrigações recíprocos. O artigo 229 da CF/88 estabelece que os filhos maiores têm o dever de ajudar a amparar os pais na velhice, na carência ou na enfermidade. O que fazer, então, diante de tal situação?
Na busca por soluções mais justas, cabe aos juízes, na análise de cada caso concreto, com base nos princípios constitucionais que regem o direito de família, exercerem a difícil tarefa de interferir nos assuntos familiares e reconhecer o afeto como valor jurídico capaz de formar vínculos de paternidade. Para tanto, é necessário que o filho esteja, efetivamente, investido na “posse de estado de filho”, ou seja, use o nome do pai, seja tratado como filho por este, e assuma todas as obrigações exigidas pela relação paterno-filial, e também que esse vínculo seja reconhecido publicamente, além de ser habitual e estável a convivência.
Sendo assim, a paternidade socioafetiva deve ser reconhecida, se presentes seus elementos identificadores e, conseqüentemente, deferidos seus efeitos jurídicos, para garantir a igualdade com os demais tipos de filiação, pois, pela Constituição da República de 1988, não é permitido qualquer tratamento discriminatório entre filhos. E também para preservar o melhor interesse da criança, ou então, para efetivar os direitos dos pais que exerceram tão nobre função.
Mais uma vez, de acordo com Rubem Alves, “a aprendizagem da ciência é um processo de desenvolvimento progressivo do senso comum”. É isso o que ocorre com a ciência do direito ao reconhecer a juridicidade da paternidade socioafetiva, ou seja, confirma o que a sabedoria do senso comum há muito tempo já proclama: “Pai é quem cria”.
Junia Soalheiro, Aluna do 9º período de direito da PUC Minas/Serro
Fonte: Jornal Estado de Minas