Clipping – Valor Econômico – Receita anual dos cartórios no país chega a R$ 7 bilhões

Os cartórios de registro civil e de imóveis, e tabelionatos de notas e de protesto, que compõem um setor sobre o qual pouco se conhece como negócio, movimentaram em torno de R$ 6,844 bilhões no ano passado em transações oficiais de documentos no país. Os números mostram que este “mercado” no Estado de São Paulo em 2006 girou R$ 2,117 bilhões, volume que tem crescido a uma média de 10,06% ao ano no Estado desde 2003. Em 2005, foi R$ 1,892 bilhão. A expectativa é que estes valores aumentem ainda mais com a permissão dada pela Lei nº 11.441, de janeiro, para que os cartórios realizarem inventários, partilhas, separações e divórcios consensuais.

Se fossem reconhecidos como um setor da economia de fato, os cartórios teriam faturamento superior ao das empresas da construção civil com capital aberto no país, que somadas faturam R$ 3,629 bilhões ao ano. É mais também do que movimentam anualmente as companhias abertas do setor de máquinas – R$ 6,241 bilhões – e de minerais não metálicos, R$ 1,791 bilhão, de acordo com os últimos balanços.

A estimativa foi realizada pelo Valor a partir dos valores recolhidos ao Fundo Especial de Despesa do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), correspondentes a 3,29% do que é pago em emolumentos nos cartórios paulistas, de acordo com o artigo 19 da Lei Estadual nº 11.331, de 2002. Participantes do segmento avaliam que ele acompanha a distribuição do PIB, já que as documentações de todos os demais setores passam pelos cartórios – “mercado” longe de poder ser considerado informal, portanto. Como São Paulo representa 31% da riqueza produzida no país, chega-se aos números nacionais. Por essa conta, o Rio de Janeiro, com 12,6% do PIB, teria movimentado R$ 862 milhões ao ano, seguido por Minas Gerais, com cerca de R$ 645 milhões, ou 9,43%.

Os cartórios exercem atividade delegada pelo poder público em caráter privado, como define a Constituição Federal em seu artigo 236. Mesmo assim, há uma dificuldade de se chegar a dados consolidados pela falta de informações públicas: nenhum Tribunal de Justiça divulga autonomamente quanto arrecada dos cartórios. E são as as corregedorias dos tribunais as responsáveis por fiscalizar o trabalho deles. Da mesma forma, as associações de classe dos notários e registradores não falam de valores. Por ser atribuição estadual, o Ministério da Justiça possui apenas o cadastro dos cartórios.

O desconhecimento é tal que, enquanto as associações estimam existirem de 6.500 a 8.500 cartórios extrajudiciais no país, o Ministério da Justiça aponta a presença de 14.847 instalados (ver quadro). Alguns acumulam mais de uma atividade, dependendo de regras estaduais ou da baixa demanda para certos serviços. Registros civis com tabelionato de notas, e registros de títulos e documentos com registro de imóveis são os mais comuns, avalia Sérgio Jacomino, diretor de relações internacionais do Instituto de Registro de Imóveis do Brasil (Irib). Mas ainda há tabelionatos de notas com registros de imóveis, típico conflito de interesse entre quem faz a escritura e quem a analisará, ele diz.

Por esses números, a receita de cada cartório anualmente seria de R$ 461 mil em média, valor equiparável a empresas de pequeno porte, com faturamento de até R$ 2,4 milhões. Mas é uma média: há lugares com receitas melhores e piores. Os emolumentos são tabelados por cada unidade da federação. Além disso, um percentual também estabelecido por Estado – de 37,5% em São Paulo – fica para o próprio, para os TJs e para um fundo que cobre os atos gratuitos.

A metodologia da relação com o PIB foi proposta pelo professor de direito notarial Paulo Gaiger Ferreira, 26º Tabelião de Notas de São Paulo. Com os dados da numeração dos selos fornecidos aos cartórios de São Paulo, ele estima que somente os registros de notas – que reconhecem firmas, lavram certidões e procurações e autenticam documentos – movimentem R$ 1,7 bilhão ao ano no país. O número dá uma melhor dimensão do que o número de cartórios por Estado. Apesar de Minas Gerais ser o mais povoado por cartórios, o TJMG informou que recebe R$ 12,5 milhões por mês deles. Como em Minas a fatia dos emolumentos que fica para a corregedoria varia por serviço, a partir de 24%, isso significa cerca de R$ 600 milhões movimentados pelos cartórios ao ano, conforme a estimativa pelo PIB.

A atividade cartorial no Brasil sempre foi alvo de cobiça e tida como uma mina de ouro. Até a Constituição de 1988, os cartórios eram recebidos por indicação do governo do Estado. Ou do presidente da República, no caso do Rio de Janeiro quando capital do país, e dos territórios de Roraima, Rondônia, Amapá e Acre. Ou até do imperador, já que se trata de legado do regime monárquico, com alguns cartórios ainda em atuação com criação datando dos anos 1790.

O oficial tinha direito de escolher um substituto, que seria elevado a oficial em caso de aposentadoria ou falecimento do primeiro. Na prática, eram escolhidos parentes na maioria das vezes, o que criou a idéia de herança familiar, mesmo que cartórios não constassem de inventários ou testamentos. O argumento era que, como não havia aposentadoria para o notário ou registrador, o filho daria continuidade ao cartório para sustentar o ex-oficial. Em algumas unidades da federação, como Rio Grande do Sul, e Distrito Federal, já havia concursos antes de 1988, mas não era a prática no país. Não era proibido o concurso, mas priorizava-se o agrado político. Isso explica o desequilíbrio entre a quantidade de cartórios em determinados Estados e o PIB destes.

Outra estratégia para garantir a hereditariedade era a permuta: o filho era indicado ou fazia concurso para um cartório menor de outra cidade, e o pai que estava para se aposentar pedia ao Tribunal de Justiça para trocar com o filho e se aposentava lá. Um artifício para alcançar um cartório com boa renda era aceitar a indicação para um menor, deficitário, e depois se inscrever nos concursos de remoção – transferência de cartório – contando o tempo de serviço como pontos.

No meio do que ficou conhecido como o “Pacote de Abril” de 1977 do regime militar, o presidente Ernesto Geisel promoveu a reforma do Judiciário e estatizou os cartórios, por meio da Emenda Constitucional nº 7, que acrescentou o artigo 206 à Constituição Federal em vigor na época, a de 1967. Estatizar significaria transformar os donos de cartórios em funcionários públicos, mas o artigo não falava em concurso público, apenas em remuneração por salário dos cofres públicos, e não mais por emolumentos.

A lei complementar federal para regulamentar o serviço e o ingresso nele, de que falava o artigo 206, nunca veio. As novas nomeações ou transferências de titularidade ficaram congeladas. Com a aposentadoria ou o falecimento dos nomeados, os oficiais-maiores ou substitutos assumiam interinamente, conta Paulo Tupinambá Vampré, presidente da seção São Paulo do Colégio Notarial do Brasil, que representa os tabeliães.

Em 1982, a Emenda Constitucional nº 22 separou os cartórios judiciais – que servem diretamente ao Judiciário – dos extrajudiciais em artigos diferentes, 206 e 207, voltou atrás na estatização dos extrajudiciais e falou em concurso público, mas também não regulamentou. Sem concurso ou novas indicações, alguns substitutos permaneceriam como oficiais interinos por mais de dez anos e iam se firmando como os novos donos dos cartórios, mantendo indiretamente o regime de herança. Mais de mil cartórios ficaram vagos, relata Vampré, do 14º Tabelião de Notas de São Paulo.

A Constituição Federal de 1988 estipulou claramente o concurso público como meio de ingresso e remoção na carreira. Mas a Lei dos Cartórios, a Lei nº 8.935, que regulamentaria a atividade e os concursos, só veio em 1994. A norma restringiu os concursos públicos para bacharéis em direito ou pessoas com experiência de mais de dez anos trabalhando em cartórios. E estipulou que os concursos precisariam ser regulados por cada Tribunal de Justiça, e que nenhuma serventia ficaria vaga por mais de seis meses sem abertura de concurso para ingresso ou remoção. Alguns Estados começaram a realizar concursos mesmo antes de 1994.

Apesar da previsão constitucional, muitos Estados que já haviam estatizado o serviço após o “Pacote de Abril”, assim permaneceram. Na época indicaram pessoas já do funcionalismo ou fizeram concursos de remoção entre os servidores. Foi o caso do Acre e da Bahia. Somente no ano passado, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) – criado na última reforma do Judiciário para controle externo do poder – ordenou as desestatizações e a realização de concursos. O Acre já realizou. No Piauí, nem a separação entre escrivães judiciais e extrajudiciais foi feita, afirma Jacomino.

A indicação do substituto pelo dono do cartório ainda permanece, mas, em caso de morte ou aposentadoria do notário ou registrador, ele fica no cargo de oficial apenas até o concurso público que preencherá a vaga por ingresso – dois terços delas – ou remoção – um terço. Recentemente, o CNJ decidiu pela criação de uma comissão para analisar e exigir os concursos públicos para os cartórios, mas os membros ainda não foram designados. Desde que foi criado, o CNJ já foi chamado a intervir em vários casos de conflitos das regras dos concursos em relação à Constituição e à lei federal.

 

Fonte: Valor Econômico