A escolha do nome do filho pode ser motivo de conflitos e divergências entre casais. Não raro, há descontentamento de um dos genitores após o registro civil quando um deles acaba ficando com a palavra final. Já chegaram ao Poder Judiciário casos de pessoas que buscam alterar o assento de nascimento da criança, insatisfeitas com o prenome dado pela outra figura parental no ato em cartório.
Há uma defesa de que o procedimento seja feito na presença de ambos os genitores, a fim de impedir que surjam, no futuro, conflitos judiciais desta ordem. Tradicionalmente, quem vai ao cartório dar nome à prole é o pai – o que, para alguns, reflete uma estrutura patriarcal ainda persistente na sociedade brasileira. Aliado a isso, o período posterior ao parto torna inconveniente à mãe o comparecimento no ato de registro.
“Os valores patriarcais estão presentes em todas as situações da vida. Eles estruturam a sociedade e se impõem, mesmo sem que tenhamos tal percepção. Penso que, historicamente, os pais fazem o registro em razão do puerpério. Nesse momento, é mais racional que o homem, que não pariu, diligencie junto ao cartório para as providências burocráticas”, destaca a juíza Andréa Pachá, vice-presidente da Comissão de Magistrados de Família do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM.
Para ela, a decisão final sobre a escolha do nome e o possível abuso na hora do registro não são sintomas do comportamento tradicional. “Poucos são os casos nos quais o monopólio da escolha é atribuído ao pai, quando registrador. Tanto é assim que nos assombramos quando um ou outro caso aparecem. É uma boa questão acadêmica, mas não devemos ceder à tentação de tentar normatizar ou judicializar questões que não encerram conflitos sociais de fato”, defende.
A juíza não vê como pertinente a exigência da presença de ambos os genitores no momento do registro. “Acredito que seja mais um degrau burocrático a atrapalhar o registro, o que inegavelmente impactará o subregistro, ainda tão grande no Brasil. Penso que quanto menos exigências, melhor para a cidadania”, opina Andréa.
“Durante os 26 anos em que exerço a magistratura, só julguei um processo dessa natureza. O registro era muito recente e, após a realização da audiência, a alteração foi feita, com a anuência do Ministério Público. O nome era um anglicismo que poderia beirar o ridículo”, lembra. Para a magistrada, esse tipo de conflito revela um processo de adoecimento social. “O diálogo é inexistente e adultos precisam da intervenção do Estado, para ações e decisões mais banais do cotidiano. É um comportamento que, penso, deva ser coibido”, pontua.
Presença de ambos os pais evitaria possíveis erros, sugere advogada
A advogada Karin Regina Rick Rosa, vice-presidente da Comissão de Notários e Registradores do IBDFAM, avalia que o registro do nome pelo pai está relacionado ao prazo estabelecido pela Lei de Registros Públicos (6.015/1973). “Esse prazo, que é de 15 dias, via de regra, coincide com o momento de adaptação para a mulher, pós-parto. Assim, o pai é quem acaba se responsabilizando pelas providências mais burocráticas”, diz.
“O que se observa é que, mesmo hoje, com os convênios estabelecidos entre os hospitais e os Ofícios de Registro Civil das Pessoas Naturais, que autorizam o registro do assento de nascimento no próprio hospital, quem comparece para o registro é o pai. Talvez seja possível fazer uma leitura deste comportamento como reflexo dos valores patriarcais em nossa sociedade”, opina a advogada.
Para a atribuição do nome, a presença de ambos os pais no momento do registro evitaria possíveis erros ou equívocos. “Contudo, isso poderia fazer surgir um novo problema, caso um quisesse um nome diferente do outro. Neste caso, o que faria o registrador? Teria que encaminhar a questão para o juiz decidir? Não parece de bom senso que pais não cheguem a um acordo prévio sobre o nome do filho, e que esta escolha seja desprezada por quem se encarrega do registro”, salientar Karin.
Influência da mãe é forte, percebe registradora civil
Em sua experiência cartorária, a registradora civil Joana Malheiros, membro da Comissão de Notários e Registradores do IBDFAM, não presencia conflitos entre pais e mães. Afinal, as divergências, passadas ou futuras, não costumam se revelar na ocasião do registro. Os profissionais presumem, naquele momento, que a escolha do nome não tenha sido restrita ao pai, ainda que só ele compareça ao cartório.
“Ao contrário, são fortes as evidências de que a escolha foi da mãe da criança ou de ambos, conjuntamente. Tanto que, em alguns casos, o pai chega a expressar em linguajar popular: ‘Não vai trocar o nome, senão a mulher me mata!’. Ainda há situações em que o pai apresenta um bilhetinho com o nome escrito e grafado com a letra da mãe, portanto, já escolhido”, relata Joana.
A registradora ressalta: “O motivo, sob minha ótica, que impulsiona uma pessoa a mover uma ação judicial, para fins de retificar o seu nome, tem muito mais a ver com sua identidade, da maneira como ela se identifica e se reconhece como pessoa na sociedade, do que uma divergência dos pais, que remonta ao passado. O nome é uma questão de identidade e dignidade”.
Divisão de tarefas entre figuras parentais
A tabeliã de notas Priscila Agapito, fundadora da Comissão de Notas e de Registro Civil do IBDFAM e segunda vice-presidente da Comissão de Família e Tecnologia, observa: “É um número pequeno de divergências, mas que, quando acontecem, são marcantes porque normalmente são acompanhadas de histórias inusitadas, engraçadas ou tristes”.
“Existe, pela lei, um rol de pessoas que podem proceder ao registro. Muitas vezes, é o pai que faz isso por ser uma tradição. É um momento no qual ele se sente relevante na vida do filho, tendo em vista que, no processo inteiro da maternidade, a protagonista é indubitavelmente a mãe”, avalia a especialista.
Para ela, não há resquício patriarcal no procedimento, pois não se trata de imposição ou vedação, mas de divisão de tarefas entre as figuras parentais quando uma delas está impossibilitada de comparecer. A exigência de comparecimento de ambos os genitores já existiu em lei, mas foi superada na década de 1990 com o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA e a Lei de Reconhecimento de Filhos (8.560/1992), em atenção à taxa de subregistro.
“Minha sugestão é que, se a mãe desconfia da honestidade do genitor, não lhe entregue a Declaração de Nascido Vivo e vá ela própria, depois, ao cartório. Estamos tratando aqui de igualdade de direitos. Tanto o pai quanto a mãe podem escolher o nome da criança. O ideal é que haja consensualidade e urbanidade neste momento tão importante da vida de uma pessoa”, opina Priscila.
Ela lembra que a possibilidade de se fazer o registro civil da criança ainda na maternidade, disponibilidade de boa parte das unidades no país, traz grandes benefícios. “A criança já sai do hospital com seu registro de nascimento e CPF, tudo emitido gratuitamente. Ocorre que, mesmo para a feitura do registro no posto do registro civil no hospital, a mãe também não é obrigada a comparecer. Normalmente, o pai vai sozinho, munido dos documentos de praxe. Serve apenas para que o registro seja mais célere e imediato, mas não resolve o problema de divergência de nome, se houver”, observa.
“Esse fenômeno revela o usual no Direito de Família: existem casais e casais, famílias e famílias. Em alguns casais e em algumas famílias, prevalecem a boa-fé, a honestidade e valores virtuosos. Nessas, esse tipo de conflito não existirá. Em outros casais e em outras famílias, orbitam a competição, a desconsideração pelo outro, a falta de valores mínimos para a parentalidade”, afirma Priscila.
Segundo a tabeliã de notas, violar um acordo sério como a denominação do filho, que envolverá imutavelmente a vida de um indivíduo, denota apenas “a ponta do iceberg de uma relação familiar que já pode estar muito mais avariada do que se percebe. Nestes casos, apenas acompanhamento psicológico poderia ajudar, pois, do contrário, o desfecho triste é inexorável.”
Fonte: Ibdfam