Correio Popular – Bebês “invisíveis” são alvos de campanha

Pelo menos 10% das cerca de 19 mil crianças nascidas em Campinas no ano passado não têm certidão de nascimento

Com 1 ano e 4 meses de vida, Jennifer anda, come, dorme, chora, mas não existe de verdade. Filha da desempregada Dheymmy da Silva Dutra, de 20 anos, a menina que vive em um barraco apertado e calorento no Parque Shalon 3, em Campinas, ainda não tem uma certidão de nascimento. De acordo com dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de um total estimado de 3,3 milhões crianças nascidas no Brasil anualmente, 500 mil deixam de ser registradas de forma civil em seu primeiro ano de vida. Uma multidão de seres invisíveis que não têm acesso aos seus direitos mais básicos, como um nome e parentesco, por exemplo. Em Campinas, dos 18.967 bebês nascidos na cidade no ano passado, segundo dados da Secretaria Municipal de Saúde, pelo menos 10% deles estão na mesma situação. Simplesmente, não são ninguém.

Um panorama inaceitável, já que, por força de uma lei federal, desde 1997, a confecção da primeira via deste registro é gratuita para todos os cidadãos. Para combater este problema, o Unicef iniciou, em parceria com a Secretaria Especial de Direitos Humanos, uma campanha nacional para a erradicação do sub-registro no Brasil. A idéia é, até outubro, reduzir para 6% o número de crianças brasileiras que não são registradas. O objetivo deste trabalho ainda é mostrar que o direito a um nome e nacionalidade são as primeiras conquistas de uma criança e que ter uma certidão de nascimento é condição primária de acesso à cidadania.

A criança que não tem registro não existe oficialmente. Não pode se matricular nas escolas, fazer parte de programas sociais como o Bolsa Família, por exemplo, tem dificuldade de acesso a serviços de saúde e, quando adulta, não pode obter outros documentos. Também de acordo com a campanha do Unicef, é o registro civil que permite que o governo federal planeje e execute, de maneira mais eficaz, suas políticas públicas nas áreas de Saúde, Educação, Assistência, entre outros.

Em seu site na internet (www.unicef.org/brazil/unicef nobrasil.htm), a instituição alerta que, além de uma violação de um direito fundamental, a falta de registro compromete até mesmo o cálculo das doses de vacinas a serem distribuídas pelo território nacional.

“Com o registro, a criança passa a ser considerada nos dados, no planejamento e nas políticas públicas. Toda criança tem o direito a um nome e a pertencer a duas redes de parentesco”, afirma Cenise Monte Vicente, coordenadora do Escritório Zonal de São Paulo do Unicef. “O Estado e a sociedade têm um retrato incompleto da realidade. Isso afeta negativamente nossa percepção e ação em relação à infância. Com a campanha, estamos reconhecendo que existe uma sociedade de excluídos e fazendo uma grande mobilização a favor da inclusão social”, diz.

Cenise lembra que cada cidade pode fazer a sua parte. “Os municípios e seus cidadãos podem participar ativamente da discussão do orçamento destinado à criança e sua execução ou ainda fazer doações ao Fundo Municipal da Infância e Adolescência, por meio de dedução do Imposto de Renda devido (1% para pessoa jurídica e 5% para pessoa física)”, enumera. A representante do Unicef esclarece que há espaço para a Administração municipal engajar-se em ações garantidoras de direitos, sejam do primeiro, segundo ou terceiro setor; abrir vagas para jovens aprendizes, e acompanhar e colaborar para o sucesso escolar das crianças da cidade.

“O que falta, na minha opinião, é uma maior divulgação de que a confecção da certidão não é cobrada. As pessoas, principalmente as mais carentes, precisam saber disso. Ter um registro não significa apenas aumentar as estatísticas, mas obter uma ferramenta para garantir todos os seus direitos e contar com a proteção do Estado”, diz Rui Celso Reali Fragoso, especialista em Direito Civil e ex-presidente do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp). “O Estado, por sua vez, também deveria valorizar um exercício de cidadania móvel, indo até os mais carentes e impossibilitados. A presença de representantes de cartórios em maternidades é um exemplo de política pública interessante. Mais do que 6%, temos que reduzir o índice de sub-registros em 2% ou menos. Este é um ganho de cidadania que fortalece o País todo”, completa o advogado.

Outra medida que, aos poucos, traz dignidade às crianças carentes em Campinas foi tomada pela entidade Casa da Sopa, no Jardim Paraíso de Viracopos. Um total de 400 pequenos são atendidos com alimentação, roupas e remédios. Mas, para isso, precisam ter a sua certidão registrada. “Quando o documento era pago, o sacrifício era enorme. Muita gente tinha que ser encaminhada para a Assistência Social porque não achava de onde tirar. Agora, que é de graça, todos aqui têm registro. Se não tiver, a família não participa das atividades”, afirma a presidente, Benedita de Camargo.

Ásia e África lideram as estatísticas no mundo

Dados oficiais do Unicef apontam que mais de 48 milhões de crianças deixam de receber a sua certidão de nascimento antes de completar o primeiro aniversário em todo o mundo. As regiões com taxas mais altas de sub-registro civil são o Sul da Ásia — onde 63 em cada 100 crianças nascidas não são registradas — e na África, mais precisamente ao sul do deserto do Saara, onde o índice de sub-registro chega a 55%.

Na América Latina, onde o situação também é muito preocupante, a média colossal de cerca de 1,7 milhão de crianças deixam de receber a certidão no primeiro ano de vida. Isso representa 15% das crianças nascidas todo ano na região.

O NÚMERO

16,4% De todas as 3,3 milhões de crianças nascidas no Brasil em 2004 não tiveram uma certidão de nascimento até completarem um ano de vida

Certidão gratuita é garantida por lei federal

Benefício vale para todas as classes sociais, mas segunda via só é grátis para a população carente

A aprovação da Lei Federal n 9.534, em 1997, passou a garantir a primeira via do registro civil gratuito para todas as crianças brasileiras, independentemente de sua classe social.

Nos casos de necessidade de uma segunda via do documento, os mais carentes também podem obtê-la sem pagar nada, desde que façam uma declaração de próprio punho informando ser reconhecidamente pobre.

Como se não bastasse, em Campinas, os próprios representantes de cartórios colocaram postos avançados com funcionários dentro das maternidades para dar ainda mais comodidade e facilidade aos pais. Mesmo assim, o problema persiste.

“Estou pessimista em relação a este assunto. Mesmo a gente estando dentro das maternidades não há aumento no número de registros. Nós subimos nos quartos, chamamos os pais e a resposta não vem. Muitos passam na frente da nossa porta e não param. Eu já cheguei a ligar para uma família só para lembrar que era preciso fazer o registro. É preciso uma mudança cultural”, lamenta Marcelo Spinola, oficial substituto do Santa Cruz, o 2 Cartório de Registro Civil da cidade, que presta serviço, entre outros locais, na Maternidade de Campinas, onde nascem 700 bebês por mês. Para se ter uma idéia, a média mensal de registros deste cartório inteiro é de 500.

O auxiliar de escrevente Marcelo Perin, que trabalha no Cartório de Registro Civil do distrito de Barão Geraldo, já recebeu crianças de até 4 anos de idade para registrar. As desculpas dos pais sempre são as mesmas: falta de dinheiro, de tempo e até mesmo de condições para se deslocar.

Queda

O que parece ser um obstáculo intransponível, quando analisado de perto, se transforma em uma questão que está mais perto de chegar ao fim no geral do País. A lei determinando a gratuidade do registro provocou uma queda do número de crianças sem certidão de nascimento.

Entre 1997, quando a lei entrou em vigor, até 2004, ano da mais recente estatística, a taxa nacional de sub-registro caiu de 24,8% para pouco mais de 16%. Em 2000, por exemplo, 21,3% dos nascidos não foram registrados no mesmo ano.

Amazonas e Distrito Federal vivem situações opostas

Regiões Norte e Nordeste lideram número de sub-registros; no DF, índice é de apenas 0,6%

Enquanto o Brasil caminha para uma redução do número de sub-registros em seu placar geral, alguns Estados continuam sendo péssimos exemplos de falta de preocupação com os direitos das crianças. De acordo com dados do Unicef, no Estado do Amazonas, por exemplo, a cada 100 crianças que nascem, 41 não são registradas no primeiro ano de vida. O outro lado da moeda, muito mais positivo, pode ser visto no Distrito Federal, onde a taxa de sub-registro é de apenas 0,6%.

Nas regiões Norte e Nordeste, são encontrados os piores índices estaduais de sub-registro. No Pará, 37,6% das crianças não recebem a certidão. A taxa no Maranhão é de 35%, seguido por Tocantins e Piauí, com cerca de 32%, e Roraima, com 30% das crianças não-registradas no primeiro ano de vida.

Mato Grosso do Sul e São Paulo apresentam um índice estadual de 4,6%, o Rio de Janeiro tem 5,1%, o Rio Grande do Sul está com 7,5% e Santa Catarina, com 8,5% de crianças que não possuem suas certidões de nascimento.

Maranhão

Surge do Maranhão, o terceiro Estado com pior índice de sub-registro do País, algumas experiências que provam que é possível solucionar o problema. No ano passado, Santa Quitéria do Maranhão foi o primeiro município brasileiro a erradicar o sub-registro civil. Hoje, todos os cidadãos desta cidade têm sua certidão de nascimento. Com certeza, um exemplo a ser seguido por todos os governantes de Norte a Sul do País.

SAIBA MAIS

O que é o registro civil de nascimento?

É a anotação de informações sobre o nascimento no livro de registros do cartório. Legalmente, uma pessoa só existe quando for registrada.

O que é uma certidão de nascimento?

Documento no qual o oficial certifica que o registro de nascimento está no livro do cartório. Somente a primeira via da certidão de nascimento é gratuita, portanto, deve ser bem guardada pela família.

Por que registrar o nascimento?

O registro de nascimento de uma criança garante o seu direito a uma identidade. Só com o registro civil de nascimento, o cidadão pode matricular-se em uma escola, participar de programas sociais (saúde, assistência social, erradicação do trabalho infantil e outros), trabalhar com carteira assinada, casar e votar.

O que é preciso para registrar?

Declaração de “nascido vivo” emitida pela maternidade em que a criança tenha nascido ou por médico habilitado que tenha assistido o parto em residência, e documentos pessoais que identifiquem o declarante (identidade ou carteira profissional e certidão de casamento, quando os pais forem casados).

Fonte : Assessoria de Imprensa