O Distrito Federal tem a maior taxa de relações gays registradas em cartório no país e um dos menores índices nacionais de crimes homofóbicos O escritor Nelson Rodrigues (1912-1980) assegurava que só se ama uma vez na vida. Quem não acredita nessa premissa, segundo ele, ainda não conhece o verdadeiro amor. Na primavera de 2008, o diplomata Luiz Felipe Czarnobai, de 27 anos, encontrou em Brasília o seu par definitivo, o oficial de chancelaria Alécio Guimarães, de 39. Quatro anos depois, eles tiveram a coragem de se casar numa cerimônia com toda a pompa que a ocasião pede. A união foi registrada em cartório, sacramentada por um juiz de paz e contou com a presença de parentes dos noivos, inclusive os pais, que subiram ao altar e posaram para a foto ao lado. No mês de maio, eles comemoram bodas de algodão.
Ao pesquisar dados nacionais e conversar com doze casais gays unidos de papel passado na capital, VEJA BRASÍLIA confirmou que a nossa cidade se tornou um aprazível recanto para quem deseja oficializar uma relação homoafetiva no país. Durante o Censo de 2010, por exemplo, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) perguntou à população sobre quem no DF vivia uma relação estável com outra pessoa do mesmo sexo. Eis que 1¿489 indivíduos levantaram a mão. Nessa contagem, a capital ficou atrás apenas da cidade do Rio de Janeiro. Pelos números da Associação dos Notários e Registradores do Brasil, 180 pares de pessoas do mesmo sexo (com ampla maioria formada por homens) procuraram os cartórios do Plano Piloto para oficializar a união desde maio do ano passado, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) equiparou a relação homossexual à heterossexual. Considerando a devida proporção, com 6,5 enlaces para cada 100¿000 habitantes, o Distrito Federal lidera o ranking do país nesse tipo de matrimônio. Na sequência aparecem o Rio, exibindo 5,2 casamentos por 100¿000 moradores, e a capital paulista, com taxa de 3,7.
Essa vocação de Brasília como um destino cor-de-rosa para a comunidade gay nacional não é algo que brotou do dia para a noite. Na década de 60, em pleno regime militar, o cantor Ney Matogrosso morou aqui, quando era funcionário do Hospital de Base. Tempos mais tarde, chegou a declarar que sentia a cidade como “uma das mais libertadoras” em que viveu. Mas nem tudo eram flores, e casos de discriminação salpicavam em alguns lugares. Ainda no longínquo ano de 1978, um casal de homens resolveu se beijar no Beirute da 109 Sul e recebeu, depois do ato, um pedido de um garçom para que eles se retirassem do local. O troco, porém, veio rápido. No dia seguinte, vinte casais foram até o estabelecimento e promoveram o primeiro beijaço gay do DF. “A cidade já demonstrava naquela época que seria vanguarda na libertação sexual dos gays. Nos anos 80 já nos beijávamos na calçada do Conic”, lembra o diretor teatral Alexandre Ribondi, de 69 anos, um dos fundadores do extinto Grupo Homossexual Beijo Livre. Para o consultor de eventos César Serra, que realizou seis casamentos homoafetivos em 2013, essas conquistas foram reforçadas pelo fato de Brasília, historicamente, ter uma população com bom grau de instrução e alto poder aquisitivo. Na leitura dele, outro traço comum na constituição da sociedade local, o grande fluxo de pessoas chegando sozinhas para trabalhar na cidade, teria propiciado mais autonomia e confiança aos que desejavam viver relações homossexuais. “Muitos casamentos gays celebrados aqui são de indivíduos de outros estados, que tiveram a chance de encontrar em terras candangas o seu par ideal.”
Um simples carinho
Apesar de terem toda a vida pela frente, as designers Rayane de Souza, de 22 anos, e Raíssa Rocha, de 23, estão amando e juram que esse sentimento é eterno. Elas terminavam relacionamentos conturbados quando se conheceram na faculdade, em 2009. Com o perdão do clichê, foi amor à primeira vista. Desde que se beijaram numa festa de amigos, não se desgrudaram mais. “Nunca imaginei que fosse tão fácil encontrar a mulher da minha vida”, diz Rayane. Há seis meses, compraram alianças e passaram a morar juntas. “Ainda estamos em processo de adaptação. A minha esposa é muito espaçosa na cama e sempre acordo no meio da madrugada com uma cotovelada na costela ou um soco na cara”, conta, rindo. Raíssa pede desculpas pelos sopapos noturnos com uma declaração de amor. “Teu olhar de menina me faz voar para um lugar lindo”, derrete-se. As duas vão ao cartório ainda neste ano registrar a relação. “Antes, achava que conhecia o amor. Estava enganada. Nunca tinha amado de verdade”, admite Rayane. O maior prazer do casal é ficar em casa. “Poucas pessoas sabem o valor de um simples carinho”, diz Rayane.
Um vazio na casa e no coração
A psicóloga Jane Vasconcelos atende jovens que são rejeitados pela família por causa da orientação sexual. Com dois filhos gays, ela não enfrentou conflitos desse tipo. Nem por isso deixou de sofrer. Quando o filho mais velho, Ricardo Lucas, de 28 anos, saiu de casa para se casar com Armando Abranches, ela sentiu um baque emocional. Agora é o mais novo, Paulo Mateusz, de 20, que se prepara para voo-solo.
Tenho apenas dois filhos jovens e ambos são gays. Quando alguém me pergunta se eu os acolhi quando descobri que eles gostam de homens, sempre respondo: esse acolhimento existe desde o dia do nascimento deles. E não falo isso porque sou psicóloga. Antes de tudo, sou mãe. O que importa mesmo são os valores nobres que passei a eles, como caráter, ética e respeito mútuo. Meu filho Ricardo tinha 17 anos quando deixou de namorar meninas e passou a se envolver com rapazes. Mas isso não me trouxe nenhum tipo de sofrimento. Comecei a padecer mesmo foi quando ele saiu de casa para se casar. Até hoje ele não sabe disso, mas, enquanto ele empacotava cada caixa no dia da mudança, eu sentia uma dor causada por tristeza. Ainda me pego pondo no carrinho do supermercado coisas que ele gostava de comer. Logo me dou conta de que ele não mora mais comigo e devolvo os produtos à prateleira. A maioria dos gays jovens sofre rejeição na escola e na rua a cada instante. No seio familiar, temos obrigação de aceitá-los do jeito que eles são. Eu sei que é difícil por uma série de fatores, como religião e cultura. Mas é nossa obrigação entendê-los. Hoje sinto falta dos dias em que o Ricardo deitava a cabeça no meu colo e pedia dengo. Agora já me preparo psicologicamente para o dia em que o meu filho mais novo, Paulo, me deixará para viver o sonho de trabalhar com cinema. Sentirei na pele o vazio da casa e do meu coração. Queria lhe dizer, Ricardo, que aprendi muito com a sua perseverança e com a sua força de vontade para o trabalho. O seu casamento tem a minha bênção, meu filho.
Jane Vasconcelos
Apesar desse aparente clima vanguardista, nem a capital federal nem o Brasil são pioneiros na aceitação jurídica das uniões homoafetivas. O primeiro país a autorizar casamentos entre pessoas do mesmo sexo foi a Holanda, em 2001. Em 2003, a vizinha Bélgica garantiu o mesmo direito, seguida, em 2005, pela Espanha. Nosso país, no ano passado, tornou-se a 14ª nação a fazer parte dessa lista. Dentro do contexto nacional, não parece exagero dizer que Brasília ganhou status de uma São Francisco, cidade americana famosa como destino gay friendly. Foi, aliás, nos Estados Unidos que o chamado “movimento gay” nasceu e se consolidou, especialmente a partir de 1969, após a chamada Rebelião de Stonewall (nome de um bar em Nova York), quando homossexuais se rebelaram contra a polícia local, que costumava agir com violência desmedida e de forma discriminatória. O dia do levante, 28 de junho, virou data oficial de passeatas mundo afora, e elas costumam envolver milhões de pessoas. A que ocorre em São Paulo desde os anos 90 se mostrou tão importante que daqui a duas semanas será citada no Sambódromo carioca como parte do enredo da Mangueira sobre festas brasileiras — a escola de samba levará uma grande bandeira de arco-íris para a avenida. Parece haver, sim, bons ventos para a causa gay. Nesse sentido, Brasília, com suas particularidades favoráveis à causa, de certo modo acompanha um impulso que tem características mundiais, e que não por acaso foi parar na faixa nobre da TV, com um beijo sendo dado, em close, no último capítulo da novela das 9.
Tentei, mas me faltou coragem
Professor de 29 anos revela à mãe, em carta aberta, que é gay
Até os 18 anos, o professor universitário e estilista Sann Thiago Marcuccy namorava apenas meninas. No início da vida adulta, começou a sentir atração por rapazes. Para viver plenamente a nova fase, resolveu mudar-se para São Paulo em 2003. Três anos depois, voltou para a capital e até agora ele não conseguiu contar à mãe, Maria do Socorro Oliveira, que é gay. Ao saber por amigos que VEJA BRASÍLIAestava produzindo uma matéria sobre casais de mesmo sexo, Marcuccy, de 29 anos, decidiu escrever uma carta aberta.
Mãe, eu sei que a senhora vai ficar chateada por causa da forma que escolhi para lhe contar que eu sou gay. A verdade é que eu tento fazer essa revelação há dez anos. Depois que voltei para Brasília, tentei em três ocasiões lhe contar, mas me faltou coragem. Na última vez que fui à sua casa, estava decidido a olhar nos seus olhos e revelar toda a verdade porque acabei de iniciar um namoro sério. Queria poder compartilhar esse período de felicidade com a senhora. Mas não é fácil. Todos os momentos em que tento começar o assunto, minhas mãos ficam geladas e minhas pernas tremem. Sempre desisto imaginando que a senhora vai chorar e sofrer muito. Queria dizer que eu não escolhi gostar de homens. Posso afirmar que é uma coisa tão natural quanto o pôr do sol, acredite. Quero muito lhe apresentar o meu namorado novo. Ele é bonito, trabalhador, bom-caráter e muito carinhoso. Pode ser o homem da minha vida. Mãe, sinto muito a falta do seu afeto, da época em que morávamos juntos e trocávamos confidências. O tempo passa rápido demais para eu esperar pelo dia em que voltaremos a ser uma família novamente. Olhe, aquele garoto carinhoso e apegado ainda está aqui, louco para cobri-la de beijos. Apesar de gostar de homens, nada mudou, viu? Continuo o mesmo. Só estou lhe dizendo essas coisas todas porque tenho certeza de que a senhora me ama muito. E, se me aceitar, prepare aquela carne moída com legumes que no próximo domingo eu estarei aí.
Sann Marcuccy
De olho na boa receptividade da cidade, o casal Willy Davis Rocha, de 34 anos, assessor parlamentar, e Franco Boeira, de 27, advogado, adotou a capital como lar. O depoimento dos dois dá indícios de que, no interior e nos rincões mais afastados do país, a vida dos gays ainda não é um mar de rosas. “É como se Brasília nos abençoasse. Hoje, nas nossas cidades de origem, Fortaleza e Campo Grande, não conseguiríamos demonstrar afeto em público sem preocupação. Aqui, vamos ao cinema, jantamos fora e sentimos que as pessoas nos aceitam”, conta Rocha. No próximo ano, os dois, que moram juntos desde 2012, vão se casar ao ar livre. “Em nossos planos, a cerimônia terá um pôr do sol lindo ao fundo”, sonha Boeira. O publicitário Francisco Brasil, de 26 anos, é outro que vislumbra um casamento pomposo com o seu companheiro, Paulo Lara, também de 26, empresário. Ele acha que o melhor palco seria uma chácara no Distrito Federal. “Nenhuma cidade acolhe os gays tão bem quanto Brasília. Aqui, podemos beijar na boca na rua e ninguém nos incomoda”, assegura.
Tinha tudo para dar errado
Foi tão rápido que ninguém pôs muita fé. Servidor público, Tom Siqueira, de 35 anos, conheceu seu colega de profissão André Lacerda, de 36, numa mesa de bar recifense em 2005. No primeiro encontro, não rolou nem um beijinho. Por força das circunstâncias, Siqueira veio para Brasília e Lacerda mudou-se para São Paulo. O destino, porém, encarregou-se de uni-los pelas redes sociais. Na internet, começou um namoro virtual que parecia não ter muito futuro. Até que uma viagem de Lacerda à capital causou uma reviravolta na vida da dupla. No aeroporto, eles protagonizaram um beijo de novela. Não aquelas bitocas à la Tarcísio Meira. “Foi um beijo bem quente”, define Siqueira. Lacerda deixou tudo para trás e passou a morar com o seu amado no primeiro dia de namoro. “Já começamos casados”, contam. Estão juntos há nove anos, com registro em cartório e tudo. O documento que prova o status de casados tem cinco páginas. Graças a ele, abriram uma conta conjunta, compraram um carro, alugaram um apartamento e conseguiram que um fosse dependente do outro em um plano de saúde. “Não me esqueço do dia em que recebi a carteira na qual consta que sou o esposo dele”, diz Siqueira. Seu parceiro tem guardado até hoje o calor do abraço que recebeu do sogro no último Natal. “Ali, naquele momento, passei a fazer parte da família do meu marido.”
Comparada a outras capitais, Brasília ostenta índices baixos de crimes homofóbicos. Recente relatório sobre a violência contra os gays da Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência da República diz que, no período de um ano, foram registrados no DF três homicídios ligados à homofobia. Em todo o país, no mesmo espaço de tempo, ocorreram 310 assassinatos com motivação semelhante. Isso não impede que a capital seja palco de casos de forte repercussão. Na semana passada, o aluno da Universidade de Brasília (UnB) Júnior Lisboa Gomes, de 19 anos, virou notícia ao ter a casa pichada com ameaças de vizinhos do Núcleo Bandeirante. Na terça (11), ele foi à delegacia registrar queixa. Nas mensagens, havia insultos do tipo: “Te pego, sua bicha”. “Queria poder viver em liberdade, sem opressão por causa da minha sexualidade”, desabafa.
Apesar dos casos isolados de intolerância, a sociedade brasiliense caminha a bons passos em direção a uma convivência pacífica com os gays — pelo menos essa é a tese da juíza de paz Eunice Pennaforte, uma das mais requisitadas nas celebrações de união civil entre pessoas do mesmo sexo no DF. No ano passado, ela oficializou 960 casamentos e pelo menos 100 deles foram entre homens. “Percebo nas cerimônias que as pessoas estão mais abertas para aceitar a troca de alianças entre iguais”, diz.
Fonte: Revista Veja Brasília