Eles optaram por decidir o momento de interromper o tratamento

Pacientes já estão adotando o testamento vital, que permite ao doente dizer como e até que ponto deseja receber tratamento médico.

Casado, dois filhos, quatro netos, ele acaba de terminar um ciclo de quimioterapia para tratar um câncer no fígado. É o segundo, desde 2010, quando foi surpreendido pela mesma doença, então restrita ao intestino.

E é em meio a essa realidade, nos seus 79 anos de idade, que acaba de tomar uma decisão: se seu quadro se agravar, e tornar-se irreversível, João (nome fictício), não quer que médicos e enfermeiros o mantenham vivo artificialmente.

João acaba de registrar em cartório seu "testamento vital". Esse homem, que se define como previdente, colocou em prática uma norma baixada em agosto deste ano pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), assinando sua Diretiva Antecipada de Vontade – nome oficial do "testamento vital".

A norma nem prevê o registro em cartório, bastando que o documento integre o prontuário médico do paciente. Mas João, que já atuou no mercado financeiro, fez o que considera mais seguro.

Limite

"Deixei bem claro no documento que, após sete dias numa Unidade de Terapia Intensiva, sendo mantido por instrumentos, e sem perspectiva de melhora, devem me levar para o quarto. Aí, passado mais um período, com o quadro irreversível perdurando, poderão ser desligados os aparelhos. Meu único desejo é que não me deixem sentir dor. Não quero ser mantido artificialmente", diz ele.

Só um dos seus filhos sabe da sua decisão. João quer poupar os demais, que segundo ele não a aceitariam, e também sua mulher, que não está bem de saúde.

"Tudo o que faço é pensando na minha família", diz ele. O cuidadoso João há 15 anos registrou seu testamento, e há cerca de dez também deixou expressa a sua opção pela cremação, pós morte. "Não sou mórbido, sou previdente", argumenta.

Sofrimento

Um dos argumentos apresentados pelo Conselho Federal de Medicina para baixar a Resolução 1.995/2012, que dispõe sobre diretivas antecipadas de vontade dos pacientes, é o de que novos recursos tecnológicos "permitem a adoção de medidas desproporcionais que prolongam o sofrimento do paciente em estado terminal, sem trazer benefícios".

Isso não significa eutanásia – prática que provoca a morte de um paciente cujo quadro é considerado por médicos sem nenhuma possibilidade de reabilitação. A eutanásia não é permitida no Brasil.

Aqui, o paciente que opta pelo registro de sua diretiva antecipada de vontade pode definir, com a ajuda de seu médico, os procedimentos que considerar adequados e aqueles aos quais não quer ser submetido em caso de um estado terminal, por doença crônico-degenerativa.

Essa definição, estabelecida quando a pessoa tem plena condição de decidir, evita um problema vivido com certa frequência nos hospitais, quando alguém entra em estado terminal e a família dessa pessoa, ansiosa por vê-la recuperada, insiste para que lhe sejam aplicados procedimentos que, na visão dos médicos, só irão prolongar seu sofrimento.

"Se a pessoa tem uma doença incurável, nosso objetivo é dar a ela qualidade de vida. Suporte físico para tirar a dor, tratar o vômito", exemplifica a oncologista Kitia Perciano.

Ela explica que no Vitória Apart Hospital, onde atua, uma equipe formada por assistente social, psicólogo e enfermeiro, além de médicos, orienta e prepara a família do doente, nesses casos. Mas, admite, nem sempre é fácil.

Cultural

"Às vezes, a família sabe que a doença é incurável, mas insiste em medidas impossíveis. Esse é um problema cultural do latino. A gente não tem uma aceitação da morte", diz Kitia Perciano.

Ela lembra que, nos Estados Unidos, médicos pedem aos pacientes com doenças sem chance tratamento – mesmo que sejam adolescentes – autorização para realizar autópsia após a morte, com o objetivo de pesquisar a doença. "É tudo claro, desde o início".

Em casa

É claro que ter alguém que a gente ama com uma doença com um prognóstico ruim nos causa angús tia, insegurança, e um desejo forte de que algo seja feito para que o quadro se reverta. A orientadora pedagógica Maria Ignês Rabelo Guimarães, 54, viveu essa experiência com seu pai, mas diz que a opção foi pela não execução de nada invasivo, na fase terminal que ele atravessou.

Desde 2006, o pai da educadora permaneceu por seis anos acamado. Inicialmente, por causa de um acidente vascular cerebral (AVC), depois, por metástase óssea de um câncer.

"Papai odiava hospital, para onde ia somente quando descompensava – ele era diabético – e era mesmo muito necessário", diz Maria Ignês.

Ela e as suas duas irmãs tentaram oferecer ao pai todo o apoio e carinho necessários, em casa. Sua fase terminal durou duas semanas. "Uma das minhas irmãs teve mais dificuldades em lidar com a situação, mas decidimos que não era para entubá-lo, ressuscitá-lo. Ele ficou sedado, para não sentir dor", explica Maria Ignês.

Passada essa experiência, ela até pensa em fazer seu próprio testamento vital. Mas essa é uma decisão que depende de uma conversa com o marido, que tempos atrás também passou por uma experiência semelhante à sua, com uma pessoa da família com doença crônica. A opção, nesse caso, também foi por não entubar o doente.

Refém

A também oncologista Cintia Givigi fala da morte "com dignidade". Ela diz que há casos em que o paciente até pede para não ser entubado, caso entre na fase terminal, mas, quando chega essa hora, ele já não tem condições de decidir, e o médico fica refém da sua família.

Cintia Givig cita um exemplo em que é possível evitar a morte de uma pessoa com sofrimento. É o caso de um paciente que não consegue mais respirar sozinho, com um quadro terminal, absolutamente irreversível. "Sem o tubo, ele é sedado, e o quadro evolui para o óbito, com dignidade".

Quem tem possibilidade de dispor de suporte médico e de enfermagem às vezes opta por levar o doente para casa. Essa foi a escolha da apresentadora de TV Hebe Camargo, por exemplo.

A geriatra Janaína Alvarenga assiste a casos semelhantes como médica da Unimed, ligada à equipe de cuidados paliativos. O foco é o controle de sintomas – basicamente, evitar a dor.

Cintia Givigi diz que a norma do CFM evita que se prolongue um sofrimento desnecessário, para o paciente e sua família. Parte desse "ritual"de sofrimento para o doente terminal inclui pulsões venosas, entubação, retirada de líquidos do abdôme. Sem falar que, às vezes, chega-se a submeter o paciente à cirurgia.

A médica lembra do caso de um homem com tumor cerebral, com vida praticamente vegetativa há seis meses, e que morreu numa UTI, longe da família. "Isso é justo?", pergunta ela. Responda você.

 

 

Fonte: A Gazeta

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