Famílias à espera: outro ângulo de um mesmo problema

Estão em discussão algumas mudanças no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) no que concerne a adoção. Segundo dados do Cadastro Nacional de Adoção do Conselho Nacional de Justiça, existem 7.167 crianças e adolescentes para adoção e mais de 38 mil pessoas querendo adotar. Os números deixam claro que poderíamos praticamente não ter crianças para adoção se não houvesse problemas como a morosidade na Justiça e a dificuldade com a destituição do poder da família biológica, entre outros, mas não podemos deixar que o afã de ver o “problema resolvido” faça com que etapas sejam puladas ou passem por elas sem a devida atenção.

 

Concordo que abrigo não seja a melhor opção para se criar uma criança, mas temos que levar em consideração que a celeridade do processo de adoção pode trazer um aumento de casos de “devolução”. Quem não tem familiaridade com a questão pode pensar que estou falando um absurdo, mas a devolução é um fato que acontece. Passar pela perda dos pais biológicos, por um abrigo, uma adoção, viver e conviver numa família e depois ser “devolvida” é uma situação que computo como irreparável. Tenho experiência de crianças que cresceram na Viva Cazuza e posso garantir que fomos pais melhores do que aqueles que fizeram a tal devolução, assim como muitos pais biológicos. Não estou fazendo apologia de abrigo por presidir um, mas gostaria de ver um ESTADO que não pense só no número de crianças adotadas ou reintegradas, mas sim na qualidade desses processos, na escolha e acompanhamento pré e pós adoção, pré e pós reintegração.

 

Os fatores que levam as pessoas a adotar uma criança nem sempre são o desejo de maternidade e/ou paternidade. A busca por um sentido num momento difícil da vida, o desejo de “fazer o bem” podem em determinado momento fazer com que pessoas se inscrevam no cadastro de adoção sem que de fato tenham o princípio de “se doar”, de abrir mão da “individualidade” que são, no meu ponto de vista, o cerne de ser pai e mãe.

 

Há mais de 26 anos presido a Sociedade Viva Cazuza e por nossos quartos e corações já passaram mais de 160 crianças e adolescentes. O número é pequeno se formos comparar com outros abrigos. Quando iniciamos o trabalho, o interesse na adoção de uma criança HIV positiva era praticamente inexistente. Isso nos deu muitos “filhos de abrigo”, como disse a Dra. Silvana Monte Moreira, presidente da Comissão Nacional de Adoção do Instituto Brasileiro de Direito da Família (IBDFAM), no jornal O GLOBO, e ainda hoje me surpreendo como os abrigos são tratados como a pior opção para uma criança. Infelizmente nossa sociedade, apesar de ter uma legislação moderna (ECA), tem uma realidade bem distante dela.

 

Enquanto estou sentada escrevendo esse artigo, várias crianças vivem embaixo do viaduto em frente à Viva Cazuza, sem ir à escola, em condições de higiene precária, com adultos utilizando drogas e fazendo sexo na frente delas. Por outro lado, as que estão aqui frequentam escola, têm atividades culturais e de lazer fora da instituição, vão a festas na casa de amigos, praticam esportes em clubes e academias parceiros. Quando recebemos visita do Ministério Público e/ou do Juizado de Menores, temos sempre uma lista de coisas que devemos implementar, que sempre tentamos cumprir, mas me pergunto quando vão tomar alguma providência no sentido de prevenir o abandono de crianças como as que estão debaixo do viaduto?

 

Lucinha Araújo é presidente da Sociedade Viva Cazuza


Fonte: O Globo