A CF aboliu toda diferenciação entre filhos legítimos, ilegítimos ou adotados, sem qualquer ressalva de situações preexistentes. Todos os filhos passaram a ter os mesmos direitos e igualdade de condições, inclusive quanto a direitos sucessórios.
A partir desta premissa o juiz de Direito Milton Biagioni Furquim, de Guaxupé/MG, concordou com o argumento de duas jovens de que foram discriminadas, distinguidas e excluídas por serem fruto de relacionamento não marital de seu pai e que por tal motivo não foram contempladas no testamento da avó paterna.
Para o magistrado, as jovens estão albergadas pelo caput do art. 227 do texto constitucional; quando da confecção do testamento uma possuía 19 anos e outra 15 anos; quando a avó faleceu, uma contava com 23 anos e a outra com 19 anos.
“Esses indivíduos protegidos, enquanto crianças, adolescentes, jovens e filhos de qualquer espécie ou natureza, não podem sofrer discriminação, seja de tratamento, de respeito e de dignidade, seja quanto aos seus direitos, inclusive patrimoniais, dispensados a uns em detrimento de outros.”
Segundo o julgador, a igualdade e a não discriminação dos filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, é imperativo imposto pela ordem constitucional vigente que o intérprete da lei civil não pode ignorar quando se confronta com uma questão como a sob foco.
Milton Biagioni Furquim explicou que, agora, qualquer que seja o filho, ele pode, a qualquer tempo, ajuizar a ação de investigação de paternidade com amplos efeitos, e não apenas reclamar alimentos em segredo de Justiça, como impunha o art. 40. da lei 883/49 aos filhos espúrios, enquanto perdurasse o casamento do genitor.
“Desse modo, pode-se dizer que as discriminações existentes entre os filhos foram definitivamente banidas do ordenamento jurídico pátrio, seja no plano da Constituição Federal de 1.988, seja no plano da lei ordinária, infraconstitucional. A partir de então, ficou clara a determinação constitucional pela não recepção de qualquer norma que implicasse discriminação entre os filhos, mormente no que tange ao reconhecimento dos filhos (sem distinção) como herdeiros legítimos para efeitos de sucessão.”
Assim, considerou o juiz, a questão é se pode ser considerada moral e juridicamente válida disposição testamentária eivada dessa discriminação vedada pela nova ordem constitucional.
“Chama atenção o fato de a disposição testamentária contemplar exatamente os cinco netos (que são filhos das filhas havidos da relação de casamento) e, ao mesmo tempo, de forma indisfarçavelmente discriminatória, não contemplar as outras duas netas (que são filhas do filho, não havidas da relação de casamento). A defesa do testamento chega a cogitar de questões de foro íntimo — sem as especificar ou as identificar — com as quais, supostamente, teria se pautado a testadora para excluir duas de suas netas, exatamente, as únicas duas havidas fora do casamento.
Ora, o direito não tolera o abuso. Não tolera a que, no exercício de um direito reconhecido, o agente, ao exercê-lo, exceda manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico e social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. Na verdade, na análise do alcance do abuso de direito, a doutrina tem admitido utilizar critérios subjetivo e objetivo.”
O magistrado também anotou na sentença que no próprio testamento do avô se vê a censura ao comportamento do filho e a inegável discriminação em relação a sua prole, no estabelecimento de restrições e ônus aos bens recebidos por sucessão.
“No seio da mesma família, por força da discriminação imposta, um verdadeiro abismo se formará entre os primos, uns milionários, e outras, em petição de miséria. Situação que atenta contra a dignidade da pessoa humana, fere os princípios da igualdade, da lealdade e da eticidade, e os princípios constitucionais implícitos, da razoabilidade e proporcionalidade, desvirtua o instituto do testamento para, através dele, dar vazão aos chamados planejamentos sucessórios, que, em verdade, são instrumentos de perseguição e de discriminação que a ordem jurídica não mais tolera, contrariando os bons costumes e, de resto, aniquilando a harmonia familiar.”
Dessa forma, o juiz concluiu que as requerentes somente foram excluídas do testamento porque o pai foi considerado como “problemático” e que passou longe de levar uma vida considerada como ideal por sua genitora, de ter filhos após casar-se.
O pedido inicial das requerentes foi então acolhido para declarar seu direito à 1/3 da parte disponível dos bens deixados pela avó paterna. Veja a sentença.
Processo: 0058435-49
Fonte: Migalhas