Jurisprudência do STJ – Direito civil – Responsabilidade civil do registrador público – Lavratura de assento de nascimento com informações inverídicas

EMENTA

DIREITO CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO REGISTRADOR PÚBLICO. LAVRATURA DE ASSENTO DE NASCIMENTO COM INFORMAÇÕES INVERÍDICAS. FALHA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO. FILHA PRIVADA DO CONVÍVIO MATERNO. DANOS MORAIS. VALOR DA COMPENSAÇÃO. MAJORAÇÃO. 1. A doutrina e a jurisprudência dominantes configuram-se no sentido de que os notários e registradores devem responder direta e objetivamente pelos danos que, na prática de atos próprios da serventia, eles e seus prepostos causarem a terceiros. Precedentes.2. Da falta de cuidado do registrador na prática de ato próprio da serventia resultou, inequivocamente, a coexistência de dois assentos de nascimento relativos à mesma pessoa, ambos contendo informações falsas. Essa falha na prestação do serviço, ao não se valer o registrador das cautelas e práticas inerentes à sua atividade, destoa dos fins a que se destinam os registros públicos, que são os de “garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos”, assim como previsto no art. 1º da Lei n.º 8.935, de 1994.3. O dano moral configurou-se ao ser privada a vítima, ao longo de sua infância, adolescência e início da vida adulta, do direito personalíssimo e indisponível ao reconhecimento do seu estado de filiação, conforme disposto no art. 27 do ECA, desrespeitando-se a necessidade psicológica que toda a pessoa tem de conhecer a sua verdade biológica. Consequentemente, foi despojada do pleno acesso à convivência familiar, o que lhe tolheu, em termos, o direito assegurado no art. 19 do ECA, vindo a lhe causar profunda lacuna psíquica a respeito de sua identidade materno-filial.4. É da essência do dano moral ser este compensado financeiramente a partir de uma estimativa que guarde alguma relação necessariamente imprecisa com o sofrimento causado, justamente por inexistir fórmula matemática que seja capaz de traduzir as repercussões íntimas do evento em um equivalente financeiro. Precedente.5. Para a fixação do valor da compensação por danos morais, são levadas em consideração as peculiaridades do processo, a necessidade de que a compensação sirva como espécie de recompensa à vítima de sequelas psicológicas que carregará ao longo de toda a sua vida, bem assim o efeito pedagógico ao causador do dano, guardadas as proporções econômicas das partes e considerando-se, ainda, outros casos assemelhados existentes na jurisprudência. Precedentes.6. Recurso especial provido. (STJ – REsp nº 1.134.677 – PR – 3ª Turma – Rel. Min. Nancy Andrighi – DJ 31.05.2011)

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, prosseguindo no julgamento, após o voto-vista do Sr. Ministro Sidnei Beneti, por maioria, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Vencido o Sr. Ministro Massami Uyeda que negava provimento. Os Srs. Ministros Sidnei Beneti, Paulo de Tarso Sanseverino e Vasco Della Giustina votaram com a Sra. Ministra Relatora.

Brasília (DF), 07 de abril de 2011 (Data do Julgamento).

MINISTRA NANCY ANDRIGHI– Relatora.

RELATÓRIO

Cuida-se de recurso especial interposto por ROSIMARI MARQUES com fundamento nas alíneas “a” e “c” do permissivo constitucional, contra acórdão exarado pelo TJ/PR.

Ação (inicial às e-STJ fls. 6/16): de indenização, ajuizada por ROSIMARI MARQUES em face de LUIZ MARCELO REZENDE JULIÃO, Oficial do Cartório de Registro Civil do 2º Ofício da Comarca de Londrina-PR.

A autora sustenta, como causa de pedir, a falsidade constante dos assentos dúplices de seu nascimento, ambos lavrados sob o mesmo número (nº 1.969), mesmas folhas (091-v) e mesmo livro (A-014), emitidos pelo Cartório de Registro Civil do 2º Ofício da Comarca de Londrina-PR, de titularidade do réu, oficial registrador. Demonstra que, no primeiro registro, com data de 3.8.1976, constam como genitores seus avós paternos, Manoel Marques e Conceição Ferraz Marques, sendo esta última a declarante; no segundo registro, com data de 7.8.1976, consta corretamente o nome do pai biológico, Hamilton Marques, e, como mãe, a esposa dele, Maria José Marques, tendo sido declarante a avó paterna, Conceição Ferraz Marques.

Relata que somente em meados de 1999 tomou conhecimento acerca da verdadeira identidade de sua mãe biológica, Nilva Aparecida Schiavon, de modo que foi, ao longo de sua infância, adolescência e início da vida adulta, “privada da ciência e companhia de sua verdadeira genitora” (e-STJ fl. 8).

Assere que o titular do Cartório de Registro Civil do 2º Ofício da Comarca de Londrina-PR, em razão de “ato pessoal ou de preposto seu”, deve responder civilmente, de forma a

arcar com as despesas concernentes a necessária ALTERAÇÕES (sic) dos registros de NASCIMENTO da Autora e transtornos, incômodos, preocupações, expectativas, nervosismo e qualquer outra forma de alterações (sic) psicossomática ou físico-emocional, que configuram o DANO MORAL ou aquele sofrido pela pessoa prejudicada pelo ilícito (e-STJ fl. 9 – com destaques no original).

Sentença (e-STJ fls. 136/143): julgou improcedente o pedido, não obstante a decretação de revelia do registrador, ao entendimento de que ele teria sido induzido a erro pelos avós paternos e pelo pai da autora, o que afastaria a sua responsabilidade civil pelas informações inverídicas contidas nos assentos de nascimento de ROSIMARI MARQUES.

Acórdão (e-STJ fls. 212/226): em acolhimento ao parecer emitido pelo MP/PR (e-STJ fls. 194/199),o TJ/PR deu provimento ao recurso de apelação interposto pela recorrente para, com base na “concorrência de culpas” entre o registrador, os avós paternos e o pai da recorrente, condenar o primeiro a pagar à vítima dos dúplices registros falsos, o valor de R$ 3.500,00 (três mil e quinhentos reais), a título compensação dos danos morais, com correção monetária e juros de mora de 1% a partir da decisão.

Segue a ementa:

APELAÇÃO CÍVEL – INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS – EXISTÊNCIA DE DOIS REGISTROS DE NASCIMENTO DA AUTORA COM INFORMAÇÕES INVERÍDICAS – PRIMEIRO REGISTRO – AVÓS PATERNOS DECLARADOS COMO PAIS DA AUTORA – NOVO REGISTRO INFORMANDO O VERDADEIRO NOME DO PAI, MAS COM NOME DA MÃE INCORRETO – OFICIAL DO REGISTRO QUE NÃO AGIU COM A DEVIDA CAUTELA – DÚVIDA SOBRE O ASSENTAMENTO QUE DEVERIA TER SIDO LEVADA AO JUIZ COMPETENTE – ARTS. 52, §1º E 109, DA LEI 6.015/73 – PAIS E AVÓS QUE PRESTARAM DECLARAÇÕES FALSAS – CULPA CONCORRENTE – DANO MORAL CARACTERIZADO – INDENIZAÇÃO DEVIDA – INVERSÃO DOS ÔNUS DA SUCUMBÊNCIA – HONORÁRIOS FIXADOS EM 20% SOBRE O VALOR DA CONDENAÇÃO – ART. 20, § 3º, DO CPC – RECURSO PROVIDO (e-STJ fl. 212).

Recurso especial (e-STJ fls. 264/281): interposto sob alegação de ofensa aos arts. 159, 904 e 913, do CC/16; 186, 189, 275, 283, 884 e 927, do CC/02; 2º, 6º, 126, 131, 282, II, do CPC; além de dissídio jurisprudencial.

Prévio Juízo de admissibilidade recursal (e-STJ fls. 293/294): o recurso especial não foi admitido.

Decisão (cópia à e-STJ fl. 376): o agravo de instrumento (Ag 1.017.908/PR), interposto pela recorrente contra a decisão que inadmitiu o recurso especial, foi provido.

Parecer do MPF (e-STJ fls. 412/414): oParquet apresentou parecer da lavra do i. Subprocurador-Geral da República Durval Tadeu Guimarães, opinando pelo provimento do recurso especial.

É o relatório.

VOTO

A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relatora):

I. Da delimitação da lide e de sua base fática.

A lide versa a respeito da responsabilidade civil de registrador público por lavratura de segundo assento de nascimento da mesma pessoa, sem anulação prévia do já existente, contendo, ambos os registros, informações inverídicas, que privaram a filha do conhecimento e do convívio com a mãe biológica.

Apresenta-se, ainda, para discussão, a viabilidade ou não da incidência de culpa concorrente entre o registrador e outros possíveis causadores do dano: os avós paternos e o pai biológico da vítima – assim indicados no acórdão recorrido –, ainda que não figurem como partes no processo.

Busca-se, por fim, aferir a proporcionalidade e a razoabilidade na fixação do valor da compensação dos danos morais, decorrentes da “existência do erro presente na ocasião da lavratura das duas Certidões” (e-STJ fl. 112), conforme reconhecido e declarado em Juízo, nos autos de precedente ação de impugnação de maternidade cumulada com anulação de ato jurídico.

Para uma melhor elucidação da lide, segue a base fática descrita no parecer emitido pelo MP/PR, bem como a análise acerca da responsabilidade civil do registrador contida no acórdão recorrido:

Parecer emitido pelo MP/PR:

Consta dos autos que quando de seu nascimento, ocorrido em 25 de julho de 1976, na cidade de Londrina, a mãe biológica da autora, NILVA APARECIDA SCHIAVON, por não ter condições de criar e educar a criança entregou-a para o pai biológico, HAMILTON MARQUES, para que este a registrasse em nome de ambos. Todavia, o Sr. Hamilton Marques assim não procedeu e pediu ao pai dele, MANOEL MARQUES, que registrasse a neta como sendo filha. Assim, a Sra. CONCEIÇÃO FERRAZ MARQUES, avó da autora, compareceu ao Cartório de Registro Civil do 2º Ofício da Comarca de Londrina e solicitou que o registro de nascimento da autora fosse lavrado (fls. 16) em seu nome e em nome de seu marido, isto em 03 de agosto de 1976.

Posteriormente, provavelmente arrependido do que havia feito, o pai da autora tentou remediar a situação e assim foi lavrado novo registro de nascimento da autora, com o mesmo número, mesmas folhas do mesmo livro, porém com filiação diferente do primeiro (fls. 17), datado de 07 de agosto de 1976, onde consta como declarante a avó paterna, CONCEIÇÃO FERRAZ MARQUES.

No segundo registro de nascimento, lavrado quatro dias após o primeiro, consta corretamente o nome do pai biológico e dos avós paternos, todavia constou como sendo a mãe da criança a mulher de Hamilton Marques, Sra. MARIA JOSÉ MARQUES, que evidentemente não era a mãe biológica.

Assim a autora conviveu com seu pai biológico, pensando que era seu irmão, até o ano de 1988, quando o mesmo lhe revelou que na realidade era seu pai e não o seu irmão. Também disse que os pais da autora eram na verdade seus avós.

Mais tarde, em época não especificada nos autos, soube a autora, através de sua avó paterna, que a mãe biológica dela se chamava NILVA APARECIDA SCHIAVON, quando então pediu informações ao Hospital Evangélico de Londrina, para em seguida procurar sua verdadeira mãe, que confirmou os fatos.

(…)

Considerando o breve período em que foram lavrados os dois assentos de nascimento da autora – quatro dias – bem como o fato de que ambos foram registrados às mesmas folhas, sob mesmo número e no mesmo livro, sem que o primeiro tenha sido cancelado em razão da lavratura do segundo; que o prenome da criança, bem como o nome, era o mesmo, ou seja, ROSEMARI MARQUES; e principalmente porque em ambos os registros a declarante foi a mesma – Sra. CONCEIÇÃO FERRAZ MARQUES; o réu, na qualidade de oficial do cartório de registro civil, deveria necessariamente ter comunicado os fatos ao juiz da vara de registros públicos da comarca, buscando orientação de como proceder, pois ficou evidente que as declarações do primeiro registro não eram verdadeiras – prática, em tese, do crime previsto no artigo 242, CP (registrar, como seu, filho de outrem) – já que a parte compareceu e pediu a lavratura de um segundo registro de nascimento, da mesma criança.

Somente esta circunstância aponta para a manifesta negligência do Oficial do Cartório de Registro do 2º Ofício da Comarca de Londrina – LUIZ MARCELO REZENDE JULIÃO – que, no exercício de sua função pública, não agiu como deveria, foi negligente, causando assim os danos morais experimentados pela autora (e-STJ fls. 197/198 – com destaques no original).

Acórdão proferido pelo TJ/PR:

A questão a respeito da filiação da Autora foi desmascarada nos autos de impugnação de maternidade c/c anulação de ato jurídico (fls. 68/71), em que a prova testemunhal foi extremamente elucidativa.

É certo que o cartorário poderia retificar o registro de nascimento da autora, mas para isso deveria ter observado os trâmites legais. Assim, presente o ilícito no fato de não observar a legislação, efetivando uma retificação ilegal.

(…)

É de se ressaltar que, quando da feitura do primeiro registro, não há culpa alguma por parte do cartorário, uma vez que efetuado de acordo com as declarações da suposta mãe, como era costume, na época.

Porém, quanto ao segundo registro de nascimento, já não se pode afirmar o mesmo.

É que no caso o nome dos pais da autora foi alterado, sem que o Oficial de Registro adotasse as devidas cautelas.

(…)

Ora, quatro dias depois da lavratura do primeiro acento (sic), o fato de aparecer outra pessoa se declarando pai da autora, já era suficiente para gerar dúvida a respeito da segunda declaração.

E, se assim tivesse procedido, a dúvida teria sido remetida a juízo, onde se verificaria (fls. 35/44) que a mãe da criança não era MARIA JOSÉ MARQUES, muito menos CONCEIÇÃO FERRAZ MARQUES, mas sim, NILVA APARECIDA SCHIAVON.

Veja-se que a retificação de assentamento de registro civil só pode ser feita através de procedimento judicial, “em petição fundamentada e instruída com documentos ou com indicação de testemunhas, que o juiz ordene, ouvido o Ministério Público e os interessados, no prazo de cinco dias, que correrá em cartório” (art. 109, da LRP).

(…)

Assim, conforme restou demonstrado nos autos, houve negligência por parte do cartorário, que não cumpriu as disposições legais, ou seja, não suscitou a competente dúvida, a ser dirimida pelo juízo daquela circunscrição.

Ademais, a negligência restou confessada pelo próprio funcionário, pois quando citado para contestar o feito, manteve-se inerte.

Resta presente, inegavelmente, (…) a culpa do Apelado – por negligência.

Por outro lado, também é clara a culpa dos avós e pais da autora.

Em primeiro lugar porque os avós, conforme eles mesmos reconhecem em seu depoimento, prestaram declaração falsa, induzindo em erro o Oficial de Registro.

Em segundo lugar, porque o pai da autora também prestou declaração falsa, dizendo que a mãe da autora seria MARIA JOSÉ MARQUES e não NILDA APARECIDA SCHIAVON. Fatos estes que foram, inclusive, confirmados pelo pai e mãe da autora.

NILVA APARECIDA SCHIAVON declarou que:

“há época não tinha condições de criar a filha, sendo que o pai Hamilton assumiu os cuidados. Que o compromisso do Sr. Hamilton era registrar a criança em seu nome e em nome da depoente. Que somente mais tarde descobriu que a criança havia sido registrada como sendo os pais de Hamilton – avós paternos – como sendo (sic) os pais da criança…” (fl. 75).

(…)

E, aqui, tais atitudes podem e devem ser levadas em conta, pois contribuíram, de forma direta, para gerar o dano causado à autora.

Assim, restou incontroverso que o dano causado à apelada resultou, também e principalmente, da atitude de seus pais e avós, levando a conclusão que o caso é de culpa concorrente.

(…)

No presente caso, o dano está configurado pela (sic) abalo emocional que a autora sofreu, vez que“conviveu com seu pai biológico, pensando que era seu irmão, até o ano de 1988, quando o mesmo lhe revelou que na realidade era seu pai e não seu irmão. Também disse que os pais da autora eram na verdade seus avós” (fl. 161). Isso sem falar que a Sra. Maria José Marques, evidentemente, não era sua mãe biológica, mas Nilva Aparecida Schiavon.

(…)

O nexo de causalidade, entre a conduta negligente do cartorário e o prejuízo causado à apelada (sic), é indiscutível, uma vez que se o Oficial não tivesse realizado a retificação (sem observar o procedimento legal) a autora saberia, desde aquela data, a identidade de sua mãe biológica (e-STJ fls. 216/222 – com destaques no original).

Do traçado probatório acima destacado, verifica-se que a condenação do registrador a compensar os danos morais suportados pela recorrente deu-se com base na responsabilidade civil subjetiva. Levou-se em consideração, ainda, a concorrência de culpas, não entre a vítima e o autor do dano, conforme a definição legal da culpa concorrente prevista no art. 945 do CC/02, mas entre ele e familiares da lesada: os avós paternos e o pai. Assim entendeu o TJ/PR porque, ao prestarem declarações de maternidade e paternidade inverídicas, perante o registrador público, essas pessoas teriam contribuído, de forma decisiva, para gerar o dano.

II. Do prequestionamento.

As matérias jurídicas versadas nos arts. 275, 283, 884, do CC/02; 904 e 913 do CC/16; 2º, 6º, 126, 131, 282, II, do CPC não foram apreciadas pelo TJ/PR no acórdão recorrido, de modo a evidenciar o prequestionamento. Salienta-se que a recorrente sequer provocou, por meio de embargos declaratórios, a manifestação do Tribunal a respeito dos temas insertos nos aludidos dispositivos legais. Incide, portanto, na hipótese, a Súmula 282/STF.

Por outro lado, verifica-se o prequestionamento das matérias jurídicas insertas nos arts. 159 do CC/16; 186, 189 e 927, do CC/02, o que permite a abertura do debate, no que concerne aos tópicos jurídicos neles contidos.

III. Da responsabilidade civil do registrador público (arts. 159 do CC/16; 186, 189 e 927, do CC/02)

A recorrente alega que

não pode PAGAR (mais ainda) por aquilo (sic) ERRADO e ILEGAL que foi realizado por seus AVÓS e PAI, com os quais nem sequer tem mais contato, diálogo, afeto entre outros sentimentos decorrente (sic) do vínculo familiar, vez que foi totalmente excluída desse convívio (familiar) a partir do momento que BUSCOU a verdade e a JUSTIÇA (e-STJ fls. 269/270 – com destaques no original).

Aduz, na condição de vítima, que não concorreu, de forma alguma, para o evento danoso, de modo que a hipótese não comporta a aplicação da concorrência de culpas, a qual deve ser afastada.

Pugna, assim, para que a compensação por danos morais seja majorada, a fim de alcançar “valor compatível a (sic) trágica história de vida sofrida (…), com correção monetária a partir da propositura da ação (…); juros moratórios a partir da citação válida” (e-STJ fl. 281).

Muito embora a doutrina e a jurisprudência dominantes estejam configuradas no sentido de que os notários e registradores devem responder direta e objetivamente pelos danos que, na prática de atos próprios da serventia, eles e seus prepostos causarem a terceiros (REsp 1.163.652/PE, Rel. Min. Herman Benjamin, DJe 1º.7.2010; REsp 1.044.841/RJ, Rel. Min. Luiz Fux, DJe 27.5.2009), certo é que, na hipótese em julgamento, foi reconhecida pelo TJ/PR a conduta ilícita do registrador público, com base na responsabilidade civil subjetiva. E assim o foi, por não ter o registrador se revestido das cautelas necessárias por ocasião da lavratura do segundo assento de nascimento da recorrente, com informações discordantes não só da realidade dos fatos como também daquelas contidas no registro que o precedeu.

Da falta de cuidado do registrador na prática de ato próprio da serventia resultou, inequivocamente, a coexistência de dois assentos de nascimento relativos à mesma pessoa, ambos contendo informações falsas. Essa falha na prestação do serviço destoa dos fins a que se destinam os registros públicos, que são os de “garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos”, assim como previsto no art. 1º da Lei n.º 8.935, de 1994.

Na lição do professor Jairo Vasconcelos Rodrigues Carmo, sob o influxo de uma nova realidade normativa, os notários e registradores respondem objetivamente pelos danos comprovadamente causados, na prática de ato próprio da serventia, aos usuários e terceiros. Essa nova perspectiva é explicitada pelo professor em percuciente artigo jurídico, do qual extraio algumas linhas:

Com o advento do Código Civil de 2002 ainda mais se fecha o ideal de objetivar a reparação por danos civis. Todo o sistema infraconstitucional vai ao encontro do artigo 37, § 6º, da Constituição. A noção de culpa agoniza nas exceções, a favor dos profissionais liberais, no Código do Consumidor, chegando ao Código Civil como elemento meramente acidental, porquanto, neste, prevaleceu a ética do risco, assim o artigo 927, parágrafo único e outros (Responsabilidade civil do delegatário notarial e de registros públicos. In Revista da EMERJ. v. 9, n. 36, Rio de Janeiro: EMERJ, 2006. p. 177).

Conclui, o renomado Juiz de Direito aposentado e atual “delegatário de registros públicos”, dessa forma, que a responsabilidade civil do registrador e do notário, ao derivar

do artigo 37, § 6º, da Constituição, positiva-se no artigo 22 da Lei 8.935/94, que não discrepa, antes, ao reverso, harmoniza-se e é enriquecido pelo parágrafo único do artigo 22, do Código do Consumidor, que o subsidia como lei geral, assim como o Código Civil, nomeadamente os seus artigos 927, parágrafo único, e 933 (Responsabilidade civil do delegatário notarial e de registros públicos. In Revista da EMERJ. v. 9, n. 36, Rio de Janeiro: EMERJ, 2006. p. 174/175).

Com base nessas linhas e volvendo à situação fática descrita pelo acórdão recorrido – imutável nesta sede recursal –, conclui-se que restou suficientemente comprovada a falha na prestação do serviço, com evidente nexo de causalidade entre a conduta do agente e o resultado lesivo à vítima, elementos que se mostram suficientes para a configuração da responsabilidade objetiva do registrador.

Por conseguinte, deve ser afastada a concorrência de culpas, assim reconhecida pelo TJ/PR, porquanto absolutamente inocorrente na hipótese. Isso porque a vítima em nada concorreu para o evento danoso, requisito essencial para a configuração da culpa concorrente previsto no art. 945 do CC/02. Além do mais, as condutas reputadas como concorrentes para o evento danoso no acórdão recorrido, levadas a cabo pelos familiares paternos, ao prestarem falsas informações ao registrador, em nada elidem a responsabilidade exclusiva deste de, por meio de cautelas e práticas inerentes à sua atividade profissional, evitar o dano a que foi submetida a recorrente.

Consigne-se que a menina, hoje pessoa adulta, com 34 anos de idade, premida pelas circunstâncias do cenário posto, foi privada em sua infância, adolescência e início da vida adulta, do direito personalíssimo e indisponível ao reconhecimento do seu estado de filiação, conforme disposto no art. 27 do ECA. Desrespeitou-se, dessa forma, a necessidade psicológica que toda a pessoa tem de conhecer sua verdade biológica.

Para além dessa negativa de acesso à verdade acerca de sua identidade materna, a recorrente foi consequentemente despojada do acesso à convivência familiar no âmbito materno-filial, o que lhe tolheu, em termos, o direito assegurado no art. 19 do ECA. A respeito desse aspecto, a própria recorrente assevera que, ao buscar a verdade dos fatos, foi afastada também do convívio com a família paterna.

Esse considerável sofrimento a que foi submetida a recorrente evidencia o dano moral suportado, que deve, portanto, ser reparado.

Por fim, colho, do Parecer emitido pelo douto Subprocurador-Geral da República, a seguinte manifestação:

O dano moral sofrido pela autora foi relevante, pois permaneceu por longo período de sua vida sem conhecer a realidade, sem saber que a pessoa que se passava por seu irmão era na verdade seu pai biológico e que sua verdadeira mãe era outra pessoa, de cuja convivência, como mãe e filha, acabou sendo privada. As circunstâncias do caso, assim, reclamam a majoração do valor da indenização, a ser redefinido por essa Corte (e-STJ fl. 414).

Dessa forma, diante da configuração da falha no serviço prestado pelo recorrido, da qual resultou o dano moral suportado pela recorrente, cuja compensação foi arbitrada em patamar que se evidencia diminuto (R$ 3.500,00), passa-se à aplicação do direito à espécie, nos termos do art. 257 do RISTJ.

IV. Do valor da compensação dos danos morais (dissídio jurisprudencial).

De início, ressalte-se que alguns dos julgados trazidos à colação pela recorrente com o intuito de comprovar a divergência jurisprudencial são oriundos do mesmo Tribunal que proferiu o acórdão impugnado, o que atrai o óbice da Súmula 13 do STJ.

Todavia, a divergência jurisprudencial foi demonstrada mediante cotejo do acórdão recorrido com precedente desta Corte, que assinala no sentido de que é possível a alteração do valor arbitrado a título de dano moral em sede de recurso especial quando esse se mostra ínfimo ou exagerado, pois, nesses casos, reconhece-se a violação dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.

Esta Corte tem definido alguns parâmetros para a estipulação da compensação por danos morais, a fim de torná-la a mais adequada possível, sem, todavia, estabelecer qualquer tipo de tarifação de valores, pois, conforme salientado no REsp 663.196/PR, de minha relatoria:

É da essência do dano moral ser este compensado financeiramente a partir de uma estimativa que guarde alguma relação necessariamente imprecisa com o sofrimento causado, justamente por inexistir fórmula matemática que seja capaz de traduzir as repercussões íntimas do evento em um equivalente financeiro (DJ 21.3.2005).

Assim, considerando as peculiaridades deste processo – especialmente o fato de que a falha do registrador na prestação do serviço, ao não se valer das cautelas necessárias quando da lavratura do segundo assento de nascimento da recorrente, provocou-lhe profunda lacuna psíquica a respeito de sua identidade materno-filial – a necessidade de que a compensação sirva como espécie de recompensa à vítima de sequelas psicológicas que carregará ao longo de toda a sua vida, bem assim o efeito pedagógico ao causador do dano, guardadas as proporções econômicas das partes e considerando-se, ainda, outros casos assemelhados analisados por esta Corte (AgRg no Ag 1.000.779/RJ, Rel. Min. Ari Pargendler, DJe 18.11.2008; AgRg no Ag 636.734/RJ, Rel. Min. Massami Uyeda, DJe 14.4.2008), apresenta-se pertinente a fixação da compensação por danos morais em R$ 25.000,00 (vinte e cinco mil reais).

Forte nessas razões, DOU PROVIMENTO ao recurso especial para, afastando a concorrência de culpas, fixar a compensação por danos morais em R$ 25.000,00 (vinte e cinco mil reais), valor que deverá ser atualizado monetariamente pelo IPC a partir desta data.

VOTO-VOGAL

EXMO. SR. MINISTRO MASSAMI UYEDA (Presidente):

Srs. Ministros, meu voto diverge do voto da Sra. Ministra Relatora.

Nego provimento ao recurso especial.

Ministro MASSAMI UYEDA.

ESCLARECIMENTOS (1)

EXMO. SR. MINISTRO MASSAMI UYEDA (Presidente):

Eu fiz umas anotações aqui.

Em síntese, é o seguinte: uma pessoa foi registrada, no seu nascimento, duas vezes. Mas, a primeira vez foi registrada… Porque a declarante foi a avó paterna. Isso foi no dia 3 de abril de um mês lá. E acabou prestando informações incorretas com relação à mãe.

Ministro MASSAMI UYEDA.

ESCLARECIMENTOS (2)

EXMO. SR. MINISTRO MASSAMI UYEDA (Presidente):

Falsa.

Ministro MASSAMI UYEDA.

ESCLARECIMENTOS (3)

EXMO. SR. MINISTRO MASSAMI UYEDA (Presidente):

Três ou quatro dias depois do mesmo mês, ela vai lá, a mesma declarante, declara com outra filiação. Agora, essa pessoa que foi registrada anos atrás – hoje está com trinta e poucos anos…

Ministro MASSAMI UYEDA.

ESCLARECIMENTOS (4)

EXMO. SR. MINISTRO MASSAMI UYEDA (Presidente):

Então, mas está com trinta e poucos anos e, agora, pede uma indenização por dano moral porque ficou naquela situação de indefinição com relação à identidade biológica da mãe.

Ministro MASSAMI UYEDA.

ESCLARECIMENTOS (5)

EXMO. SR. MINISTRO MASSAMI UYEDA(Presidente):

Então, e aí propõe contra o titular da serventia lá, que lavrou…

Ministro MASSAMI UYEDA.

ESCLARECIMENTOS (6)

EXMO. SR. MINISTRO MASSAMI UYEDA (Presidente):

É, eu, aqui, pus uma interrogação bem grande. Voto divergindo. Digo assim: "As certidões foram lavradas em datas distintas. A responsabilidade, na verdade, é de quem declarou."

Isso, inclusive, tem aspecto penal. Agora, o cartório é de Londrina. Londrina é uma cidade, talvez, do Paraná, embora eu nunca tivesse estado lá, mas penso que é a maior cidade em termos de população, depois de Curitiba.

Ministro MASSAMI UYEDA.

ESCLARECIMENTOS (7)

EXMO. SR. MINISTRO MASSAMI UYEDA (Presidente):

Não, é menor que Curitiba, mas parece que é grande. Então, eu fico me perguntando como o escrivão, no Registro Civil…. Também nem tive essa possibilidade de verificar essa peça e quem foi o escrevente – aqui parece que se falava em preposto -, então alguém vai a uma mesa e faz o registro, outro vai e faz no outro, dois ou três dias depois…

Ministro MASSAMI UYEDA.

ESCLARECIMENTOS (8)

EXMO. SR. MINISTRO MASSAMI UYEDA (Presidente):

Não, mas se fosse um distrito como nós fomos corregedores de vários… Tive, em uma oportunidade, em uma comarca lá em que eu era o Corregedor do Registro Civil lá, e não tinha nada, apenas uma lavratura de nascimento por ano, um óbito a cada dois anos, e a cidade já estava para extinguir. Lá, todos se conheciam.

Agora, numa cidade maior, não sei se todos têm condições de conhecer…Vai o declarante lá e fala: "Quero registrar aqui uma criança que nasceu, e tal". Subjacente a isso, há o problema lá de sonegar, buscar ocultar o nome da mãe verdadeira.

A indagação, aqui, do fundamento da causa de pedir diz assim: "Eu fui impossibilitada de conhecer a minha origem biológica e, por isso, quando tomei conhecimento, levei um abalo moral muito grande e responsabilizo, agora, o escrivão que anotou."

Então, eu estava pensando… Mas isso não foi no mesmo dia, foi com uma diferença penso que de quatro dias.

Ministro MASSAMI UYEDA.

ESCLARECIMENTOS (9)

EXMO. SR. MINISTRO MASSAMI UYEDA (Presidente):

Três para sete: três num determinado mês e…

ESCLARECIMENTOS (10)

EXMO. SR. MINISTRO MASSAMI UYEDA (Presidente):

É, três ou quatro dias, numa cidade de porte… Também não sei se foi ele que fez, porque, muitas vezes se vê lá: o escrivão assina, tal, mas o ato é feito por um preposto. E esse preposto pode ser aquele e pode ser um outro.

Ministro MASSAMI UYEDA.

VOTO-VISTA

O EXMO. SR. MINISTRO SIDNEI BENETI:

1.- Ação de indenização por danos morais, movida contra o titular do Cartório de Registro Civil, julgada procedente, causados pelo fato de duplo registro de nascimento, com dados relativos a ascendência diversos, da autora, ora única recorrente visando à elevação do valor da indenização (R$ 3.500,00 em 8.3.2007, e-STJ fl.225), realizados, os registros, sob o mesmo número de livro e folha, em datas diversas de poucos dias (3.8.76 e 7.8.76).

2.- Só há recurso da autora, havendo o acionado sido revel em todo o processo e, agora, não havendo, em matéria recursal de Direito Privado, devolvido o julgado ao conhecimento deste Tribunal.

A questão fática, ademais, ficou extraordinariamente bem exposta no Acórdão proferido pelo Tribunal de origem, Rel. Des. FRANCISCO LUIZ MACEDO JÚNIOR (E-STJ fl. 225), que se transcreve, como razões deste Voto, não só porque firmou a matéria fática, mas também em homenagem à qualidade do trabalho jurisdicional prestado:

APELAÇÃO CÍVEL – INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS – EXISTÊNCIA DE DOIS REGISTROS DE NASCIMENTO DA AUTORA COM INFORMAÇÕES INVERÍDICAS – PRIMEIRO REGISTRO – AVÓS PATERNOS DECLARADOS COMO PAIS DA AUTORA – NOVO REGISTRO INFORMANDO O VERDADEIRO NOME DO PAI, MAS COM O NOME DA MÃE INCORRETO – OFICIAL DO REGISTRO QUE NÃO AGIU COM A DEVIDA CAUTELA – DÚVIDA SOBRE O ASSENTAMENTO QUE DEVERIA TER SIDO LEVADA AO JUIZ COMPETENTE – ARTS. 52, §1º E 109, DA LEI 6.015/73 – PAIS E AVÓS QUE PRESTARAM DECLARAÇÕES FALSAS – CULPA CONCORRENTE – DANO MORAL CARACTERIZADO – INDENIZAÇÃO DEVIDA – INVERSÃO DO ÔNUS DA SUCUMBÊNCIA – HONORÁRIOS FIXADOS EM 20% SOBRE O VALOR DA CONDENAÇÃO – ART. 20, §3º, DO CPC – RECURSO PROVIDO.

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 316.919-7, da Vara Cível de Cianorte, em que é Apelante Rosemari Marques e é Apelado, Luiz Marcelo Rezende Julião:

Trata-se de ação de indenização ajuizada por Rosemari Marques em face de Luiz Marcelo Rezende Julião.

Conta que nasceu em 25/07/76 e recentemente ficou sabendo que sua mãe verdadeira é a Sra. Nilva Aparecida Schiavon, pois todos os registros civis da Autora foram feitos constando dados dissonantes da realidade.

Esclarece que há dois assentos de nascimento sob o mesmo número, mesmas folhas e mesmo livro; que o primeiro assento, é datado de 03/08/76, onde consta como sendo seus pais seus avos paternos. E o segundo assento é datado 07/08/76, onde consta como seus pais Hamilton Marques e a senhora Maria José Marques.

Alega que o responsável pelo Cartório deve indenizar a Autora pelo abalo moral sofrido, em decorrência desses fatos.

Após regular instrução processual, o Magistrado singular verificou a revelia do Réu e julgou improcedente o pedido inaugural, condenando a Autora ao pagamento das custas processuais, ressalvando o fato de a mesma beneficiária da Justiça Gratuita.

Inconformada, apelou Rosemari Marques aduzindo, em síntese, que:

a) O Juiz monocrático ignorou o fato de que houve ato ilícito com a existência de segundo registro de nascimento com mesmo numero, livro e folha;

b) Os dois registros de seu nascimento constam pais e mães diferentes;

c) O Réu foi revel;

d) Foram bem delineados todos os transtornos, inconvenientes e situações vexatórias, sofridas pela Apelante em decorrência da sua documentação errada;

e) O Apelado não agiu com o devido cuidado, pois nos casos que gerem dúvida, cabem aos oficiais dos registros públicos provocarem os juízes competentes;

f) Houve dolo, ou no mínimo, negligência do Apelado;

g) Deve ser reformada a sentença julgando-se procedente o pedido de indenização por danos morais.

Devidamente intimidado, o Apelado não apresentou contra-razões.

Parecer da douta Procuradoria Geral de Justiça, às fls.158/163, pelo provimento do recurso interposto, para a condenação do Apelado ao pagamento de indenização por dano moral.

Relatados,

VOTO:

Presentes os requisitos de admissibilidade, intrínsecos e extrínsecos, de se conhecer o presente recurso.

A controvérsia restringe-se a ocorrência de ato ilícito, necessário para gerar o dever de indenizar.

Para que não restem dúvidas, cumpre analisar, especificadamente, a conduta do Oficial de Registro, bem como dos pais e avós da autora, perante a legislação civil.

Do art. 927, do Novo Código Civil Brasileiro, Retira-se que: “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), Causa dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. O ato Ilícito, por sua vez, é definido pelo art. 186 do CC, que estabelece: "aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.

Pela redação legal é possível identificar os elementos essenciais da responsabilidade civil e que, quando presentes, ensejam a reparação de danos:

a) ação ou omissão ilícita;

b) culpa ou dolo do agente;

c) dano causado á vítima; e,

e) relação de causalidade entre a ação e o dano.

Quanto ao primeiro elemento – ação ou omissão ilícita – Silvio de Salvo Venosa expõe que:

“Os atos ilícitos são os que promanam direta ou indiretamente da vontade e ocasionam efeitos jurídicos, mas contrários ao ordenamento. O ato voluntário é portanto, o primeiro pressuposto da responsabilidade civil”

No caso em tela, o oficial do cartório promoveu a alteração no registro de nascimento da autora, sem observar o trâmite legal.

Verifica-se, da análise dos autos, que a Autora foi registrada em 03/08/76 como sendo filha de: MANOEL MARQUES e CONCEIÇÃO FERRAZ MARQUES, sendo declarante a suposta mãe (fl.16).

Posteriormente, em 07/08/76, foi lavrada nova certidão,

Sob mesmo número e nas mesmas páginas que a primeira, onde consta que a Autora seria filha de HAMILTON MARQUES e MARIA JOSÉ MARQUES, sendo declarante Conceição Ferraz Marques, mães de Hamilton (fl.17). No entanto, a Autora veio a saber, recentemente, que sua verdadeira mãe chama-se NILVA APARECIDA SHIAVON.

A questão a respeito da filiação da Autora foi desmascarada nos autos de impugnação de maternidade c/c anulação de ato jurídico (fls.68/71), em que a prova testemunhal foi exatamente elucidativa.

É certo que o cartorário poderia retificar o registro de nascimento da autora, mas para isso deveria ter observado os trâmites legais. Assim, presente o ilícito no fato de não observar a legislação, efetivando uma retificação ilegal.

Presente, por conseguinte, o primeiro elemento essencial que compõe a responsabilidade civil.

A culpa, por sua vez, é o segundo elemento necessário à responsabilidade civil subjetiva. Não basta, para a caracterização da responsabilidade, uma ação ou omissão, sendo necessária a culpa.

Porém, difícil é a sua conceituação, embora não haja dificuldade em compreendê-la no caso concreto:

Para Venosa(op.cit,22), a culpa:

“em sentido amplo, é a inobservância de um dever que o agente devia conhecer e observar. (…) abrange não somente o ato ou conduta intencional, o dolo, mas também os atos ou condutas eivados de negligência, imprudência ou imperícia, qual seja, a culpa em sentido estrito”

É de se ressaltar que, quando da feitura do primeiro registro, não há culpa alguma por parte do cartorário, uma vez que efetuado de acordo com as declarações da suposta mãe, como era de costume, na época.

Porem, quanto ao segundo registro de nascimento, já não se pode afirma o mesmo.

É que no caso o nome dos pais da autora foi alterado, sem que o Oficial de Registro adotasse as devidas cautelas.

O artigo 52 §1º, Da Lei de Registros Púbicos (l.6015/73) prevê que:

“Quando o oficial tiver motivo para duvidar da declaração, poderá (…) exigir atestação do médico ou parteira que tiver assistido o parto…”.

Ora, quatro dias depois da lavratura do primeiro acento, o fato de aparecer outra pessoas se declarando pai da autora, já era suficiente para gerar dúvida a respeito da segunda declaração.

E, se assim tivesse procedido, a duvida teria sido remetida a juízo, onde se verificaria (fls. 35/44) que a mãe da criança não era MARIA JOSÉ MARQUES, muito menos CONCEIÇÃO FERRAZ MARQUES, mas Sim, NILVIA APARECIDA SHIAVON.

Veja-se que a retificação do assentamento de registro civil só pode ser feita através de procedimento judicial, “em petição fundamentada e instruída com documentos ou com indicação de testemunhas, que o juiz ordene, ouvido o Ministério Público e os interessados, no prazo de cinco dias, que correrá em cartório” (art. 109, da LRP).

Portanto, como bem destacou o Procurador de Justiça:

“o réu, na qualidade de oficial de cartório de registro civil, deveria necessariamente ter comunicado osfatos ao juiz da vara de registro públicos da comarca,buscando orientação de como proceder, pois ficouevidente que as declarações do primeiro registro nãoeram verdadeiras – prática, em tese, do crime previsto no artigo 242, CP (registrar, como seu, filho de outrem) – já que a parte compareceu e pediu a lavratura de um segundo registro de nascimento, da mesma criança” (fl. 162).

Assim, conforme restou demonstrado nos autos, houve negligência por parte do cartorário, que não cumpriu as disposições legais, ou seja, não suscitou a competente dúvida, a ser dirimida pelo juízo daquela circunscrição.

Ademais, a negligência restou confessada pelo próprio funcionário, pois quando citado para contestar o feito manteve-se inerte.

Resta presente, inegavelmente, o segundo elemento essencial da responsabilidade civil. A culpa do Apelado – por negligência.

Por outro lado, também é clara a culpa dos avós e pais da autora.

Em primeiro lugar porque os avós, conforme eles mesmos reconhecem em seu depoimento, prestaram declaração falsa, induzindo em erro o Oficial de Registro.

Em segundo lugar, porque o pai da autora também prestou declaração falsa, dizendo que a mãe da autora seria MARIA JOSÉ MARQUES e não NILVA APARECIDA SHIAVON. Fatos estes que foram, inclusive, confirmados pelo pai e a mãe da autora.

NILVA APARECIDA SHIAVON declarou que:

“há época não tinha condições de criar a filha sendo que o pai Hamilton assumiu os cuidados. Que o compromisso do Sr. Hamilton era registrar a criança em seu nome e em nome da depoente. Que somente mais tarde descobriu que a criança havia sido registrada como sendo os pais de Hamilton – avós paternos – como sendo os pais da criança …” (fl.75).

HAMILTON MARQUES afirmou que:

“reconhece ter errado quando conversou com os pais para que registrassem sua filha no nome de Rosimeire Marques como sendo filha dos mesmos (…) Que posteriormente quis reparar o erro e procurando um Advogado da cidade de Londrina – PR, cujo nome não se lembra, o mesmo alterou o registro de nascimento mas constou como nome da mãe Maria José Marques, quando, em verdade a mãe da Requerente chama-se “Nilva”.

E, aqui, tais atitudes podem e devem ser levadas em conta, pois contribuíram, de forma direta, para gerar o dano causado á autora.

Assim, restou incontroverso que o dano causado á apelada resultou, também e principalmente, da atitude de seus pais e avós, levando a conclusão que o caso é de culpa concorrente.

Como terceiro elemento, o dano é também fundamental para imposição da obrigação de indenizar, pois sem prejuízo, um comportamento ilícito pode, até, passar despercebido no mundo jurídico.

Neste sentido, observa Caio Mário da Silva Pereira (1999 p.45):

“É claro, então, que, se a ação se fundar em mero dano hipotético não cabe reparação. Mas esta será devida se se considerar, dentro da ideia de perda de uma oportunidade (perte d’une chance) e puder situar-se na certeza do dano”.

Há que se salientar a visão de Serpa Lopes (1962, p. 256), que entende o dano como composto por dois elementos diferenciados:

“1º elemento de fato – o prejuízo; 2º elemento de direito – as violação ao direito, ou seja, a lesão juridica. É preciso que haja um prejuízo decorrente de uma lesão de um direito”.

No presente caso, o dano esta configurando pela abalo emocional que a autora sofreu, vez que “conviveu com seu pai biológico, pensando que era seu irmão,. Até o ano de 1988, quando o mesmo lhe revelou que na realidade era seu pai e não seu irmão. Também disse que os pais da autora eram na verdade seus avós”(fl. 161). Isso sem falar que a Sra. Maria José Marques, evidentemente, não era sua mãe biológica, mas Nilva Aparecida Schiavon.

A jurisprudência, principalmente a do Superior Tribunal de Justiça, entende que basta a comprovação do ato indevido, para configuração do dano moral, sendo desnecessária a comprovação do prejuízo. Por oportuno, confira-se:

“dispensa-se a prova de prejuízo para demonstrar a ofensa ao moral humano, já que o dano moral tido como lesão a personalidade, ao âmago e a honra da pessoa, por vezes é de difícil constatação, haja vista os reflexos atingirem parte muito própria do individuo – o seu interior.” (REsp 85.019/RJ, 4º Turma, rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJU 18.12.98, p. 358).

Mas, a obrigação de reparação civil só surge quando há uma relação de causalidade entre a ação ou omissão do agente e o dano sofrido pela vitima. Torna-se, portanto, obrigatório que o dano decorra, clara e explicitamente, da atitude de culpa.

Sobre o tema, doutrina de Rui Stoco² esclarece que:

“(…) o elemento primário de todo ato ilícito é uma conduta humana e voluntaria no mundo exterior. Esse ilícito, como atentado a um bem juridicamente protegido, interessa à ordem normativa do direito justamente porque produz um dano. Não há responsabilidade sem um resultado danoso. Não há responsabilidade civil sem determinado comportamento humano contrario à ordem juridica. (…) Não basta que o agente haja procedido contra ‘jus’, isto é, não se define a responsabilidade pelo fato de cometer um erro de conduta. Não basta que a vitima sofra um dano, que é o elemento objetivo do dever de indenizar, pois se não houver um prejuízo a conduta antijurídica não gera obrigação de indenizar. É necessário que se estabeleça a relação de causalidade entre a injuricidade da ação e o mal causado pela culpa do sujeito, é preciso seja certo que, sem este fato, o dano não teria acontecido. O nexo causal se torna indispensável, sendo fundamental que o dano tenha sido causado por culpa do sujeito”.

O nexo de causalidade, entre a conduta negligente do cartório e o prejuízo causado à apelada, é indiscutível, uma vez que se o Oficial não tivesse realizado a retificação (sem observar o procedimento legal) a autora saberia, desde aquela data, a identidade de sua mãe biológica.

Do Arbitramento do Dano Moral

Como visto no tópico anterior, a responsabilidade civil do apelado está devidamente configurada.

Segundo dispõe o Código Civil no seu artigo 186, aquele que pratica ato ilícito deve responder pelos danos morais e materiais causados.

Com relação aos danos morais, a situação é complexa, cabendo ao juiz aferir o valor dos danos causados.

O Professor Clayton Reis³ bem define essa dificuldade:

“A dificuldade reside na profunda subjetividade que envolve a fixação de valores destinados a reparar o dano extrapatrimonial sofrido pela vitima. Afinal, como será possível avaliar extensão da dor vivenciada por uma pessoa para, em seguida, proceder à fixação de um ‘quantum’ indenizatório que seja capaz de satisfazê-la na sua pretensão ressarcitória ?”.

A indenização por danos morais tem por finalidade uma devida compensação pela dor sofrida e daí a dificuldade, pois o “preço da dor” trás, em si, uma característica extremamente subjetiva.

Assim, para que não existam diversidades gritantes, o correto é ter como parâmetro, a fixação jurisprudencial.

A dificuldade quanto à fixação dos danos morais reside, exatamente, em conseguir abstrair o cunho emocional que o pedido normalmente, carrega.

Nesse sentido, cumpre ressaltar, aqui, que os danos morais, ao contrário do que entende parte da doutrina, não devem ter caráter punitivo, mas tão somente um caráter compensativo – reparatório.

A indenização devida a titulo de danos morais deve consistir, então, numa forma de compensar a vitima, pelo sofrimento experimentado, isto sem que se insira em indevidos efeitos punitivos.

Nesse sentido, ouso afirmar que os partidários da teoria do valor do desestimulo, equivocam-se na base de seu raciocínio, pois a ausência da titularidade do direito, então invocado, retira tal com assento em tal base.

Ora, por definição constitucional, o direito de punir não é do particular. É do Estado. Não sendo legitima a indenização dada com assento em tal base.

A teoria do “valor do desestimulo”, que embasaria o “caráter punitivo” da indenização por danos morais, funda-se na ideia americana dos “punitive damages”, que traduzidos como “danos punitivos”, naturalmente, “nos conduz a uma expressão vazia e desprovida de conteúdo significativo no campo jurídico brasileiro”. Tal expressão, na verdade, segundo esclarece o ilustre magistrado Osny Claro de Oliveira Junior, Juiz de Direito em Porto Velho (RO): – “punitive damages quer significar punição por decorrência dos danos, por causa dos danos”

Mas uma indenização só é devida ao titular do direito por ofensa a direto de sua titularidade, não podendo, assim, se embasar em diretos alheios (do Estado), como pretendem alguns.

Saliente-se, também, que a estatização do direito à punição, estabelecida constitucionalmente, impede que os danos morais aos diretos particulares contenham caráter punitivo, mesmo que isto aparente ser o mais justo e correto.

Assim, portanto, concluímos que a indenização por dano moral somente pode contemplar o caráter compensatório, sem inserir punições injustificadas, sob pena de fixação em patamares muito elevados.

Observe-se que, no caso em análise, a culpa do apelado foi reduzida, pois se resumiu à não ter levantado a competente dúvida, procedendo a retificação ilegal.

Por outro lado, não se pode deixar de considerar que os pais e avós da apelante, contribuíram para que esta situação viesse a se concretizar, pelas razões já explanadas.

Assim, de acordo com os valores comumente fixados pela jurisprudência, para afastar qualquer ideia quanto a presente indenização ter caráter punitivo e levado em consideração a existência de culpa concorrente, entendendo razoável a fixação dos danos morais num valor R$ 3.500,00 (três mil e quinhentos reais), quantia que deverá ser atualizada monetariamente, bem como com juros de mora de 1% desde a data deste julgamento até a do efetivo pagamento.

Pela sucumbência, ordeno o apelado ao pagamento das custas processuais e dos honorários advocatícios, que, considerando o trabalho do advogado, a natureza da demanda, o grau de zelo profissional e o trabalho desenvolvido durante toda a instrução processual, fixo em 20% sobre o valor da condenação, com fundamento no art. 20, §3º, do CPC.

Diante do exposto, VOTO por CONHECER o recurso e DAR-LHE PROVIMENTO, para fins de, reconhecida a culpa concorrente, condenar o apelado ao pagamento de R$ 3.500,00 (três mil e quinhentos reais), à autora, a título de danos morais.

 

Fonte: STJ