JURISPRUDÊNCIA CÍVEL
DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL – AÇÃO ANULATÓRIA DE DOAÇÃO COM RESERVA DE USUFRUTO VITALÍCIO – RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL – MEAÇÃO DA PARTE INOCENTE QUE DEVE SER RESPEITADA – SIMULAÇÃO – NULIDADE ABSOLUTA – ART. 167, § 1º, INCISO II, DO CÓDIGO CIVIL – ARGUIÇÃO DE DECADÊNCIA – IMPERTINÊNCIA – ART. 169 DO MESMO DIPLOMA – SUCUMBÊNCIA RECÍPROCA – ÔNUS DA SUCUMBÊNCIA – DIVISÃO PROPORCIONAL – ART. 21, CAPUT, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL – PARCIAL PROVIMENTO
– Em regra, é nulo o negócio jurídico simulado. Haverá simulação quando o negócio jurídico contiver declaração não verdadeira. Inteligência do art. 167, § 1º, inciso II, do CC.
– “O negócio jurídico nulo não é suscetível de confirmação, nem convalesce pelo decurso do tempo” (art. 169 do CC).
– “Se cada litigante for em parte vencedor e vencido, serão recíproca e proporcionalmente distribuídos e compensados entre eles os honorários e as despesas” (art. 21, caput, do CPC).
Apelação Cível nº 1.0024.08.056890-0/001 – Comarca de Belo Horizonte – Apelantes: M.S. e outro, A.V.S.R., C.S.R. – Apelado: J.R.M.F. – Relator: Des. Edison Feital Leite
ACÓRDÃO
Vistos etc., acorda, em Turma, a 15ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos, em rejeitar a prejudicial de mérito e dar parcial provimento ao recurso.
Belo Horizonte, 11 de dezembro de 2014. – Edison Feital Leite – Relator.
NOTAS TAQUIGRÁFICAS
DES. EDISON FEITAL LEITE – Trata-se de apelação interposta contra a sentença de f. 175/177, que, nos autos da ação anulatória ajuizada por J.R.M.F. em desfavor de M.S., C.S.R. e A.V.S.R., julgou parcialmente procedente o pedido inicial, para declarar parcialmente nula a doação e o estabelecimento de usufruto vitalício de imóvel levados a efeito pela primeira ré, em benefício dos demais, passando ambos a incidir, tão somente, sobre a metade do bem doado.
Em face da sucumbência, os réus foram condenados ao pagamento das custas e despesas processuais, bem como dos honorários advocatícios, arbitrados em 15% (quinze por cento) sobre o valor da causa, restando suspensa a exigibilidade de tais verbas em razão do deferimento da benesse da gratuidade de justiça.
Inconformados, os réus apelaram à f. 180 e, em razões ofertadas às f. 181/189, suscitaram a decadência do direito do autor.
Quanto ao mérito propriamente dito, afirmaram que, “quando do ajuizamento da ação de reconhecimento e dissolução de união estável pelo autor (apelado), em face da primeira ré (apelante), o bem imóvel, localizado na […], já era de propriedade de A.V.S.R. e C.S.R., doado aos filhos pela mãe, enquanto legalmente solteira”, sendo certo ainda que, quando da doação, nem “sequer existia a ação relativa ao reconhecimento de união estável ajuizada pelo apelado” (f. 185), o que torna o ato praticado “perfeito e acabado”.
Sustentaram que o apelado concordou com a doação, ao combinar com a ex-companheira que deixaria a casa com ela e os filhos (f. 186).
Por fim, pleitearam o provimento do recurso, com a extinção do processo nos termos do art. 269, inciso IV, do CPC (reconhecimento da decadência), ou, caso superado, para que seja julgado improcedente o pedido inicial. Por fim, caso mantida a sentença, seja o apelado condenado também ao pagamento das custas e honorários advocatícios. Os recorrentes encontram-se amparados pela gratuidade de justiça (sentença – f. 177).
Contrarrazões às f. 193/210.
É o relatório.
Decido.
Conheço do recurso, presentes os pressupostos de admissibilidade e processamento.
Trata-se de ação anulatória de termo de doação c/c cláusula de usufruto vitalício ajuizada por J.R.M.F. em desfavor de M.S., C.S.R. e A.V.S.R., sob o fundamento de que o ato é nulo, haja vista o imóvel pertencer ao casal, e não unicamente à primeira ré. Sustenta o autor que:
“Tramitou perante a 6ª Vara de Família […], processo de reconhecimento e dissolução de união estável […], em que foram partes o autor da presente ação e a primeira requerida, M.S., tendo o juízo daquela secretaria, reconhecido a união estável durante o tempo em que o casal estabeleceu vida em comum, ou seja, de fevereiro de 1982 a dezembro de 1998. E, dessa união, nasceram os filhos C.S.R. e A.V.S.R. […].
No período em que se estabeleceu a união estável, de fevereiro de 1982 a dezembro de 1998, o casal adquiriu um imóvel residencial, por esforço comum, embora somente registrado perante o Cartório de Registro de Imóveis de Belo Horizonte em nome de M.S. […].
Ressalta-se que, na sentença, ficou estipulado que o bem imóvel adquirido, com o esforço comum, seria partilhado de forma igualitária entre o casal.
Acontece que a primeira requerida, M.S., em 13.02.2004, doou o imóvel aos filhos do casal, que, na época, ainda eram menores, gravando cláusula de usufruto vitalício em seu benefício, sem autorização do companheiro, ora autor da presente demanda. A doação realizada gera, por si só, a anulação do ato, uma vez que o autor possui outros filhos e não poderia privilegiar os filhos da segunda relação em detrimento dos filhos do primeiro casamento, já que o ordenamento jurídico busca estabelecer igualdade entre todos os filhos (petição inicial – f. 02/03).
Como relatado, o pedido foi julgado parcialmente procedente, sendo declarada a nulidade parcial da doação e do estabelecimento de usufruto vitalício, passando ambos a incidir, tão somente, sobre a metade do bem doado, pertencente à primeira ré.
Prejudicial.
Decadência.
Os apelantes arguem a decadência da pretensão do autor, com base no art. 179 do Código Civil, argumentando, para tanto, que a doação do imóvel ocorreu em 13 de fevereiro de 2004, sendo certo que, em 19 de março daquele mesmo ano, o autor ajuizou ação de reconhecimento e dissolução de união estável, tendo a sentença de procedência transitado em julgado no dia 19 de abril de 2006.
Ao proferir sentença, o d. Magistrado afastou a prejudicial, por entender aplicável a regra contida no art. 178, inciso II, do mesmo diploma legal, iniciando-se a contagem do prazo na data em que foi proferida a sentença na ação de reconhecimento e dissolução de união estável, qual seja 23 de fevereiro de 2006.
Passando à análise do caso concreto, vê-se que o imóvel objeto do litígio foi doado pela primeira ré, M.S., aos filhos comuns, C.S.R. e A.V.S.R., cujo ato foi registrado em 13 de fevereiro de 2004 (vide f. 09/10).
Posteriormente, em 19 de março daquele mesmo ano, fora ajuizada pelo apelado, em desfavor da primeira ré, ação de reconhecimento e dissolução de união estável, cuja sentença que julgou procedente o pedido e determinou que “o bem imóvel deverá ser partilhado na porcentagem de 50% (cinquenta por cento) para cada parte” foi prolatada no dia 23 de fevereiro de 2006 (cópia de f. 13/14), tendo transitado em julgado em 19 de abril daquele mesmo ano (f. 53).
A presente ação foi distribuída em 21 de maio de 2008 (f. 02).
Pois bem. Atento aos fatos, estou em que não há que se falar na ocorrência de decadência. Isso porque considero que o negócio jurídico realizado é absolutamente nulo, por ter sido simulado, já que dele constou declaração falsa (art. 167, § 1º, inciso II, do Código Civil), qual seja a de que a primeira ré era a única proprietária do bem, quando, na verdade, ela tinha plena consciência de que o bem não lhe pertencia por inteiro. Ora, cediço que, nos termos do art. 169 do mesmo Codex, “o negócio jurídico nulo não é suscetível de confirmação, nem convalesce pelo decurso do tempo”.
Assim sendo, rejeito a prejudicial.
Mérito.
Quanto ao mérito propriamente dito, e levando em consideração as razões acima alinhavadas, tenho que não há como fugir da conclusão a que chegou o ilustre Julgador.
Vale a transcrição:
“Doutro giro, ao tempo da doação, embora a requerida alegue que era solteira, já vivia em regime de união estável com o autor, o que afasta sua argumentação nesse sentido. Sendo que esse fato não cabe mais discussão, visto que reconhecido por sentença.
Margem outra, entendo também que não se trata de adiantamento da legítima, conforme alegado pelos requeridos. O adiantamento da legítima existiria se fosse o autor o doador, mas, ao contrário, a doadora é a requerida, não tendo o autor realizado qualquer ato de liberalidade, não há como trazer o bem à colação quando do inventário.
[…].
No caso dos autos, realmente não se aplica o adiantamento da legítima, visto que o autor não é o doador.
Acontece que o pedido do autor é de anulação do ato como um todo, o que entendo não ser necessário, visto que a parte que coube à requerida na partilha não está eivada de vícios na doação e tão pouco no usufruto, continuando válida e sem qualquer vício.
No entanto, concernente à meação do autor, a doação feita pela primeira requerida não tem qualquer validade.
Não se trata aqui de examinar as hipóteses de anulabilidade, não há coação, vício, erro ou dolo, estado de perigo, lesão ou fraude contra credores, e tão pouco as partes são incapazes, o caso é de nulidade com fincas no art. 167, II, do Código Civil, uma vez que a primeira requerida tinha total consciência de que a totalidade do bem não lhe pertencia” (sentença – f. 176 e verso e 177).
Aliás, a respeito da questão relativa à nulidade absoluta (art. 167, § 1º, inciso II, e art. 169, ambos do Código Civil), colhe-se de autorizadas doutrinas:
“É simulado o negócio em que, na definição de Manuel A. Domingues de Andrade, ocorre ‘a divergência intencional entre a vontade e a declaração, procedente do acordo entre o declarante e o declaratário e determinada pelo intuito de enganar terceiros’” (Teoria geral da relação jurídica. Coimbra: Almedina, 1974, v. 2, p. 169).
“Para se caracterizar a simulação são necessários a intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração, o acordo entre as partes e o objetivo de enganar. […].
Embora a lei comine de nulidade o negócio simulado, poderá prevalecer o que se desejou celebrar, se válido na substância e na forma, ou seja, se não encontrar óbice legal. Assim, por exemplo, uma doação dissimulada em compra e venda, se feita a quem não poderia receber a liberalidade, ou doado, por quem não pudesse doar, será nula; […].
No rol dos negócios simulados, encontram-se aqueles que aparentam negócio inexistente ou diverso do verdadeiro; os celebrados com pessoa diversa da que auferirá o proveito; os que encerram falsidade ideológica por conter disposições não verdadeiras; e os documentos com data anterior ou posterior à verdadeira.
Terceiros de boa-fé não terão prejudicados seus direitos, se verificada a simulação, embora esta determine nulidade absoluta, com efeito ex tunc.
‘Jurisprudência: Negócio jurídico. Cessão de cotas em sociedade empresária. Anulação. Simulação. Configuração. Casal em crise matrimonial. Transferência efetuada pelo marido e sócio-gerente em favor da sua irmã sem prova de desembolso do preço e sem concordância da esposa meeira. Marido que continua a atuar na sociedade formalmente como auxiliar de escritório. Doação dissimulada da parte da esposa. Nulidade absoluta (art. 167, § 1º, I e II, do CC/2002). Irrelevância de a ação de separação judicial não ter sido ainda julgada. Ação procedente. Apelação desprovida’ (TJSP – Ap. c/ Rev. nº 4.986.844.300 – 10ª Câmara de Direito Privado – Relator: Des. Guilherme Santini Teodoro – j. em 27.08.2008).
[…].
Em razão de serem incuráveis e perpétuas as nulidades absolutas, não podem os negócios nulos ser confirmados, e por isso também não podem ser objeto de novação (art. 367). Igualmente o decurso de tempo não faz desaparecer o vício” (PELUSO, Cezar (Coord.). Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. 8. ed. rev. e atual., Barueri-SP: Manole, 2014, p. 111-112). E:
“Consiste na celebração de um negócio jurídico que tem aparência normal, mas que não objetiva o resultado que dele juridicamente se espera, pois há manifestação enganosa de vontade. O propósito daqueles que simulam o negócio jurídico, e estão em concerto prévio, é enganar terceiros estranhos ao negócio jurídico ou fraudar a lei.
[…].
Questão de ordem pública, de interesse social, torna o negócio jurídico nulo. Independe de ação judicial para ser reconhecida. Pode ser alegada como objeção de direito material (defesa) e deve ser reconhecida de ofício pelo juiz (CC 168 par. ún.), a qualquer tempo e grau ordinário de jurisdição. É insuscetível de confirmação pelas partes […] ou de convalidação pelo decurso do tempo (CC 169). Reconhecida a simulação, os efeitos desse reconhecimento são retroativos à data da realização do negócio jurídico simulado (eficácia ex tunc).
[…].
Reconhecida e proclamada a nulidade de ato ou de negócio jurídico, esse reconhecimento tem eficácia declaratória, porque afirma a existência de uma circunstância preexistente, razão pela qual essa decisão retroage à data em que foi celebrado o ato ou negócio nulo. A eficácia da declaração de nulidade é ex tunc” (NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria Andrade. Código Civil anotado e legislação extravagante. 2. ed. São Paulo: RT, p. 229-231).
Por fim, assiste razão aos apelantes, no que respeita ao pedido de distribuição proporcional dos ônus sucumbenciais. Isso porque, conforme já visto, o pedido do autor não foi integralmente atendido. Assim, de se aplicar o disposto no art. 21, caput, do Código de Processo Civil, que dispõe que, “se cada litigante for em parte vencedor e vencido, serão recíproca e proporcionalmente distribuídos e compensados entre eles os honorários e as despesas”. In casu, cada parte deverá arcar com metade das custas, inclusive as recursais, e as despesas processuais, bem como com metade dos honorários advocatícios, que permanecem arbitrados tal como fixados na sentença – em 15% (quinze por cento) sobre o valor da causa -, permitida a compensação, nos termos do já citado artigo e da Súmula nº 306 do egrégio Superior Tribunal de Justiça, distribuídos na mesma proporção das custas, como acima especificado, observada a concessão da justiça gratuita a ambas as partes.
Dispositivo.
Ao ensejo de tais considerações, rejeito a prejudicial de decadência e, quanto ao mérito, dou parcial provimento ao recurso, tão somente, para distribuir proporcionalmente entre as partes a responsabilidade pelo pagamento dos ônus da sucumbência, observando-se que ambas se encontram amparadas pela gratuidade de justiça.
É o meu voto.
Votaram de acordo com o Relator os Desembargadores Maurílio Gabriel e Tiago Pinto.
Súmula – REJEITARAM A PREJUDICIAL DE MÉRITO E DERAM PARCIAL PROVIMENTO AO RECURSO.
Fonte: Diário do Judiciário Eletrônico – MG